"A vacina contra Covid pode provocar Aids".
Essa frase, que chocou o mundo (e nem tanto o Brasil), não foi dita pelo pastor impostor a meia dúzia de fanáticos ou pela beata apocalíptica para suas amigas no chá da sacristia. Não é piada de mau gosto da barbearia da esquina ou do comediante decadente para atrair a atenção da plateia bêbada e dormitante.
A frase foi proferida pelo chefe de uma das maiores nações do mundo, em plena era da Ciência e Tecnologia, em meio à maior crise sanitária global do século.
Comportou-se como o moleque travesso que descobriu o velho "truque" para a impunidade: disse o que disse, dizendo que não iria dizer. Fez isso confessadamente, para não tomar pito do bedel e ter sua "live" derrubada, num estratagema tão covarde quanto pueril e manjado.
Pior de tudo é que o menos importante, aqui, é o ridículo do chefe do poder público externar seu medo de "ficar de castigo" por um veículo privado de mídia social.
O que se vê, em verdade, é uma estratégia instintiva em busca da inimputabilidade, da irresponsabilização. Uma espécie de "teflon" político-jurídico, justamente por parte da autoridade que reúne as maiores responsabilidades da nação, num de seus momentos mais críticos desde sua origem. Estratégia que vem funcionando em boa medida.
A frase, claro, é criminosa. Vindo de quem vem, mandatário-mor, contribui para a causação e propagação de contágios virais, na proporção direta ao descrédito que a afirmação incute, em parte da população, contra a única arma que restou para debelar a doença (já que nunca fizemos testagem e monitoramento para manejo populacional e contenção de focos). Além de ímpobra, preconceituosa e imoral, desdiz todos os esforços públicos e privados, nacionais ou internacionais, para mobilização da população no esforço de imunização vacinal, sem falar na conscientização das questões inerentes ao HIV.
Esse agente público, agindo como age, vem construindo, deliberadamente, uma artificial condição de inimputabilidade para nela se aninhar. Consegue não ser levado muito a sério no campo obrigacional; suas faltas "não valem", assim como as do garotinho "café com leite" em meio a jogos de adulto.
No Direito esse estratagema não funciona: é fulminado pela milenar teoria "actio libera in causa", pela qual se mantém a punibilidade de quem se coloca em estado deliberado de inconsciência ou ignorância. O exemplo clássico é de quem se embriaga voluntariamente e depois invoca sua bebedeira em busca do perdão, da exclusão de responsabilidade.
Essa condição de busca de inimputabilidade artificial parece vir sendo construída cuidadosamente. A cada novo ato, a cada novo absurdo, menor a surpresa, maior a acomodação. Menor o repúdio, maior a "normalização". Menor o choque, maior a "dessensibilização" do destinatário (que é a própria vítima).
A inimputabilidade construída tijolo a tijolo edifica o abatedouro público para onde a vítima ruma voluntária, desdenhando de seu próprio carrasco, ali disfarçado de bobo da corte.
Ao menos no âmbito interno.
No exterior, essa dessensibilização não ocorre, e o líder local se isola como pária, carregando consigo toda uma nação. O ceifador que assombrou o mundo em meados do século passado é claramente reconhecido sob as vestes do bobo tupiniquim de hoje.
Ao que parece, nosso "café com leite" está adoçado com calculadas doses de cianeto. A Nação, o respeito ao povo e a democracia, já intoxicados, estão sendo destruídos paulatinamente.
E com o beneplácito das instituições, cujos representantes, cegos pela própria arrogância, negligenciam os sintomas da overdose. Como velhos bedéis, pensam-se superiores e inatingíveis. "Ai, ai, ai, seu traquinas! Se fizer isso de novo na próxima série ficará de castigo!".