Migalhas de Peso

A MP 1068/21 E O PL 3227/21 - A obsessão por “fake news” e o (des)controle social

O acesso à informação, direito fundamental, tem como escopo a garantia de acesso à verdade e não à mentira.

18/10/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A MP 1068/21, popularmente conhecida como MP das “fake news”, teve sua tramitação sumariamente obstada pelo Senado Federal, a partir da análise da admissibilidade constitucional do rito, função da inexistência de urgência e relevância, esta última, sob o aspecto formal, haja vista, que matéria contendo a mesma temática já havia tramitado no Congresso Nacional, resultando na lei 12.965/14. (BRASIL, 2014; BRASIL, 2021)

Simetricamente, o Supremo Tribunal Federal, em sede de liminar, retirou a eficácia da medida, após a manifestação da Procuradoria Geral da República pela suspensão dos seus efeitos, na Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), sob alegação de afetação do Marco Civil da Internet de 2014.

De forma obtusa, o executivo, obcecado pela “liberdade para velhaquear”, transvestida em liberdade de expressão, enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 3227/21, praticamente replicando o texto derrogado.

Deveras, o mecanismo ardiloso editado às vésperas de um fatídico 7 de setembro não teve outro objetivo senão impor aos provedores e gestores de redes sociais uma impotência para o combate às notícias falsas, “fake news”, por consequência, aos crimes digitais, o que seria obtido por força da Lei, sabido que a eficácia das medidas provisórias é plena, ou seja, o dispositivo vigora de imediato, quando de sua publicação no Diário Oficial.

Por mais paradoxal que pareça, trata-se de uma tentativa de descontrole social por força de lei, em absurdo atentado ao exercício da cidadania, fundamento da República esculpido no artigo 1º da Magna Carta, flagrante o que se pretendia com a MP e, doravante, se pretende com o novo Projeto de Lei, a imposição de tolerância às “fake news” e a publicação de conteúdos em afronta ao Estado Democrático, bem como uma autorização legal para o cometimento de crimes reais no ambiente virtual: calúnia, injúria, difamação, ameaça, dentre outros.(BRASIL, 1988)  

Cabe ressaltar que apesar de suscitada e declarada a inconstitucionalidade formal da referida medida, por afronta aos requisitos de urgência e relevância, no mérito, a Constituição Federal veda expressamente a edição de medidas provisórias que versem sobre cidadania, por efeito, sobre o seu exercício, conforme escupido no artigo 62, § 1º, I, a, da Norma Maior. (BRASIL, 1988)

Essa cidadania, protegida e colocada em proeminência pelo Constituinte, vai muito além do exercício do voto e dos direitos políticos, cuja aferição se perfaz com a posse do título de eleitor válido e regular, conforme preceituado na única norma que define o que é cidadão em nosso ordenamento jurídico, a Lei da Ação Popular, ou mesmo, pelo direito de eleger e ser eleito, no regular processo eleitoral. (BRASIL, 1965)

Vale lembrar que a cidadania, no dizer de Hannah Arendt, “é direito a ter direitos”, e pressupõe a igualdade, a liberdade e a própria existência com dignidade humana, sendo que, para se sub-rogar a esses direitos é condição “sine qua non“ o acesso seguro às informações verdadeiras, com reprodução fidedigna dos fatos, não havendo espaço para disseminação de mentiras como forma de controle ou, melhor dizendo, de descontrole social objetivando a manipulação do cidadão, mitigando ou tolhendo o pleno exercício da cidadania. (ARENDT, 2011, p. 332).

A pretensão de uma norma que enseja o descontrole dos órgãos públicos e da própria iniciativa privada sobre os conteúdos ventilados pelas mídias, em especial, pelas redes sociais, como forma de tolerância às” fake news”, significaria o Estado incentivando o descontrole social, na contramão das premissas em que se fundam o contrato social.

Cabe pontuarmos que o controle social decorre de um arcabouço de mecanismos aptos a garantir uma “conformidade” de comportamentos do indivíduo pertencente a um grupo social. Entretanto, atualmente, considerando o nível de agitação do caldo social, fermentado, aquecido e requentado, diuturnamente, por crises de toda natureza sob diferentes enredos tecidos aos mesmos fatos, ou mesmo, por enredos sobre não fatos – voltaremos aos não fatos – o que pode ser considerado conformidade? Conforme o que? Como adotar ou considerar um referencial ou um padrão para possível controle?

Norberto Bobbio, em sua definição de controle social, defendia duas formas de controle: intrínseco, através do inculcamento do indivíduo, função do processo de construção da sua identidade, ou seja, autocontrole regulado pela coerção social e consubstanciado na aprovação ou reprovação do seu comportamento pelo grupo; e extrínseco, resultado do poder de tutela do Estado, através da aplicação das leis e do poder de polícia, como forma de garantir a discutível conformidade. (BOBBIO, 2002)

As incessantes dúvidas sobre questões sanitárias nesse trágico momento de pandemia do covid-19, como a aceitação das vacinas, disparidades nas recomendações sobre comportamentos proferidos pelos diferentes entes da federação, citando como exemplos, a obrigatoriedade do uso das máscaras respiratórias, realização de distanciamento social e outros procedimentos divergentes descortinam a fragilidade do referencial capaz de aferir conformidades e, consequentemente, determinar o controle social: a informação.

Essa informação, que na era digital tornou-se de fácil acesso, também ganhou a possibilidade de naufrágio pela oportunidade de ser fabricada por qualquer indivíduo, as “fake news”, o que permite voltarmos aos “não fatos”.

Embora seja um tecnicismo, mas não se pode desconsiderar o erro lógico à menção de fatos inverídicos, falsos fatos, fatos inexistentes ou expressões similares. Etimologicamente, todo fato é verdadeiro e se denominado fato é porque ocorreu, ainda que, por perspectivas ou narrativas díspares, mas ocorreu. A inocorrência de um fato é o “não fato”.

Neste sentido, a percepção da política não é ofuscada somente pela “inverdade factual” ou, tecnicamente, pelos não fatos, mas sobremaneira e, de forma lastimável, pelos múltiplos e antagônicos enredos sobre os mesmos fatos.

Essa realidade é sopesada pelo notório e gigantesco analfabetismo funcional, resultado do longínquo déficit educacional, permitindo ao indivíduo da grande massa conhecer das narrativas, verbalizadas ou escritas, sem entender seus reais significados, fazendo com que a tentativa de exercício de algum controle social, ou mesmo da própria democracia, simplesmente, seja um ato de remar contra a maré.

De forma ainda mais grotesca, cabe destacar o analfabetismo “disfuncional”, que atinge dos semialfabetizados aos pós-doutores e catedráticos de diversas áreas do “pseudoconhecimento”, sendo adjetivo a ser atribuído às múltiplas interpretações que o indivíduo, de forma intencional, atribui às mesmas circunstâncias e aos mesmos fatos, como sendo a verdade absoluta a predominar sobre qualquer outra.

Interpretações produzidas em linhas de produção seriada e motivadas por paixões político-partidárias, ideológicas, culturais, religiosas ou, simplesmente, por total contrariedade às mesmas paixões, produção que não possui outro objetivo, senão o de conquistar o título de time de futebol com a maior torcida, seja esse time capitaneado por técnico mitológico ou, conforme prega o time rival, pelo técnico da pureza e honestidade, somente equiparadas as dos deuses, o que pode haver certa coerência, pois, fazem parte desse rol “divino” os deuses da morte, da mentira, da trapaça e até da travessura. 

Nessa esculhambação, os fatos são narrados sob a perspectiva do interlocutor e, ainda mais grave, promove-se a irradiação em massa, invariavelmente, com a ajuda de robôs e máquinas virtuais, das interpretações fabricadas sobre esses fatos, antevendo-se, inclusive, suas consequências políticas, sociais, econômicas, até mesmo culturais, “arte” da futurologia.

Em uma sociedade eminentemente desigual, precária, de maioria invisível e solapada por sucessivos escândalos, enquanto assiste na arena pública os discursos que se alternam entre o conformismo e o inconformismo, proferidos pelos atores (em seu significado mais popular) políticos, então “representantes democráticos”, com visíveis transtornos bipolares e constatadas crises de amnésia seletiva, a verdade nunca morre, mas realmente sobrevive numa miséria ad aeternum.

Enquanto na via lateral às reais necessidades da sociedade ocorrem engarrafamentos de fatos e, na via marginal à verdade, colisão entre os não fatos, na via expressa, trafegam na velocidade digital, opiniões de todas as marcas e modelos, inverdades e alucinações, a maioria com as placas cobertas para se evitar a identificação do condutor, sabotando qualquer tentativa de controle social, intrínseco ou extrínseco.

Nesse trânsito de constantes acidentes, feridas provocadas por mentiras, falsidades e interpretações disfuncionais, muitas das vezes, produzidas ou patrocinadas pelos próprios representantes “democráticos”, são de cicatrização lenta e deixam muitas sequelas, sem contar que, malformada a casca de uma ferida, outras são imediatamente abertas, ainda maiores, num processo interminável de suturas e esparadrapos.

Difícil ousar responder à provocação inicial, de forma objetiva, mas o controle social, tal como preconizado pelos filósofos do iluminismo, nesse estranho momento, parece utópico, restando pressupor que a alta temperatura de fervura acabe entornando esse caldo social, forçando um período de resfriamento e rearranjo do fogareiro.

Caso ocorra, que o rescaldo permita rediscutir e implementar novas ferramentas de controle social capazes de garantir o pleno exercício da cidadania, com supedâneo apenas nos fatos, renegando os não fatos e propiciando o amadurecimento da democracia, que deve ser garantida pelas instituições e pelos poderes da República, sobretudo, pela atuação rigorosa e austera do Ministério Público, fiscal da lei por determinação constitucional, e que não pode utilizar venda nos olhos, em deslumbre pela Thêmis grega, mas exercer sua necessária parcialidade defendendo a justiça e a manutenção do Estrado Democrático, sob a égide do Direito.

Resta a expectativa para que os possíveis desastres na cozinha social resultem apenas sujeiras, ou melhor dizendo, imundices que não resistam a uma boa faxina. Embora demande retrabalho e jornadas extras das instituições, que as bactérias e corpos estranhos ao contrato social sejam esfregadas e tomem um sabão da democracia, deixando para a história o papel de passar a limpo os fatos e não fatos, revelando a melhor interpretação sobre eles.

Da mesma forma, que não ocorram queimaduras mais graves, tampouco, colapsos ou repiques no processo democrático, com a preservação das instituições e respeito incondicional à Constituição Federal, cuja leitura para alguns, ficou restrita apenas às quatro primeiras linhas do seu preâmbulo, talvez, revelando a origem da famigerada expressão: “ficar nas quatro linhas”.

Quiçá, ainda que a passos curtos e lentos, tenhamos a evolução da democracia formal, constitucional-liberal, cuja classificação didática é definida pelo exercício do voto e dos processos eleitorais com sufrágio universal, rumo a uma democracia verdadeiramente participativa e, sobretudo, representativa da vontade geral de Rousseau, que decorre do interesse comum em detrimento da vontade de todos, que não passa da soma das vontades particulares, por ora, quimera. (ROUSSEAU, 1757)

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BRASIL, 1965. Lei 4.717 de 29 de junho de 1965. Regula a ação popular. Disponível em: clique aqui. Acessado em 24/09/2021. 

BRASIL, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988. Disponível em: clique aqui. Acessado em 23/09/2021. 

BRASIL, 2014. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: clique aqui. Acessado em 24/09/2021.

BRASIL, 2021. Medida Provisória 1068/2021. Altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, e a Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, para dispor sobre o uso de redes sociais. Disponível em: clique aqui. Acessado em: 24/09/2021. 

BRASIL, 2021. Projeto de Lei nº 3227/2021. Altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, e a Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, para dispor sobre o uso de redes sociais. Disponível em: clique aqui. Acessado em 24/09/2021. 

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo – Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 

BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 8. ed. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

ROUSSEAU, J-J. O contrato social. In: Oeuvres completes, tome III. Collection “Pléíade”. Paris: Gallimard, 1757.

Ricardo Leonel da Silva
Mestrando e Especialista em Direito Previdenciário. Professor Universitário nos Cursos de Pós-graduação da Unifenas/MG, Unisal/SP, Escola Mineira de Direito - EMD, Faculdade de Direito de Varginha - FADIVA/MG e Faculdade de Ciências e Tecnologias de Campos Gerais - FACICA. Escritor, Publicista, Pesquisador, Advogado em Minas Gerais e São Paulo. Consultor e Parceiro no Escritório "Advocacia Especializada Trabalhista & Previdenciária".

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