Migalhas de Peso

Moradia por assinatura e novas modalidades de negócio no âmbito dos direitos obrigacionais e reais

Os processos contratuais contemporâneos da área imobiliária consagram a primazia da autonomia da vontade nas relações negociais.

8/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)
  1. Introdução

Há muito se trata os Direitos Reais como um instituto intangível e, por diversas vezes, imutável. Não tem sido esta, no entanto, a realidade fático-jurídica que se contrapõe à concepção arraigada deste ramo do direito, especialmente, no ordenamento jurídico brasileiro, objeto desta anotação crítica.

O que aqui se quer dizer é que, a ideia restritiva, até então, imposta pelo paradigma: “os direitos reais são estabelecidos por lei, são figuras de tipo fixo1; é, a cada dia, mitigada. Exsurgem, dessarte, inovações negociais e legislativas que positivam processos contratuais jurídico-obrigacionais (formais e informais) inerentes – há muito – em grandes empreendimentos imobiliários e na residência de muitos brasileiros, devendo-se citar, por exemplo: incorporação imobiliária, condomínio edilício, parcelamento do solo, direito de laje, shopping center; fundo de investimento, multipropriedade imobiliária, time-sharing, coworking, aplicativos de locação por temporada e/ou hospedagem (Airbnb, Booking) e, mais recentemente, a “Moradia por Assinatura”.

Diga-se de passagem, que, o presente comentário, não lhe serve para lançar críticas a respeito de cada intervenção legislativa e modalidade de negócio jurídico, mas sim para suscitar a possibilidade de dilatação dos limites pré-estabelecidos pela tipicidade dos Direitos Reais. Imperioso examinar, nessa linha, o papel da autonomia da vontade na flexibilização da tipicidade real, com o avanço dos processos contratuais (cunho pessoal/obrigacional) em detrimento à taxatividade/imutabilidade do Direito Real.

A partir desta amplitude legal é que se valem os empreendedores para lançar ao mercado (imobiliário) novidades que põem em verdadeira ebulição o sistema jurídico relacionado entre o campo contratual e real.

  1. A Moradia Por Assinatura, sobreposição da autonomia da vontade nos negócios jurídicos de cunho real e os impactos advindos da lei da Liberdade Econômica (lei 13.784/2019).

Como citado acima, observa-se, quase que diariamente, uma série de inovações e modelos de negócio jurídico. Dentre tais novidades, o objeto desta anotação se restringe a “Moradia por Assinatura”, também chamada de “Casa por Assinatura” ou “Residência por Assinatura”, a depender da sociedade empresária que lança a oferta.

Aqui, nota-se um conceito de moradia em que se tem como o principal alicerce a facilitação (desburocratização) na locação de imóveis. Isto é, o locatário pode escolher o imóvel que lhe interessa, na localidade, prazo, preço e demais opções de acordo com sua vontade, tudo isto, pela internet.

O pagamento se dá através de cartão de crédito, o contrato é firmado de forma eletrônica, não se exige, por exemplo, fiança, detalhes como pagamento de taxas condominiais, IPTU, taxas acessórias, entre outros itens que consubstanciam a formação de um contrato de locação tradicional.

Importante mencionar que, a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (lei 13.874, de 20 de Setembro de 2019) impacta diretamente no setor imobiliário, tentando, ao menos, reduzir algumas dificuldades enfrentadas pelos empreendedores. Pode-se citar a aprovação tácita das solicitações de atos públicos de liberação de atividade econômica, ou seja, licenças e alvarás necessários para a atividade da construção civil.

A abertura legal às novas modalidades de negócio é clara, ao se analisar o art. 3º, inciso VI, que traz a possibilidade de: “desenvolver, executar, operar ou comercializar novas modalidades de produtos e de serviços quando as normas infralegais se tornarem desatualizadas por força de desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente”.

Outrossim, no inciso X, do art. 3º, da citada lei, é possível se constatar a equiparação de documentos físicos àqueles documentos digitais, desde que, preenchidos requisitos e regulamentos técnicos para tanto.

O que se nota, portanto, é uma tendência (cada vez mais presente) de unir as tecnologias (startups, a título ilustrativo) a modalidades tradicionais de negócio, como a hospedagem, moradia e locação. Vale dizer que, um dos grandes facilitadores para que haja essa invasão ao mercado, chama-se economia do compartilhamento, espécie de negócio, em que se possibilita o acesso de bens móveis ou imóveis a um número maior de consumidores, haja vista o fracionamento do uso e consequentemente das despesas.

Observa-se, atualmente, uma mudança por completo de duas estruturas do direito privado: a propriedade e o contrato. Pode-se apontar que o regime jurídico geral representa atualmente um duplo estatuto: um de garantia e outro de acesso. O enfoque, portanto, não é mais a exclusão, mas, sim, o acesso aos bens.2

Diante deste novo aspecto, não apenas a posse ganha considerável autonomia em relação ao direito de propriedade, mas também tomam corpo novas figuras, contribuindo para a superação de um modelo arcaico de negócio, permitindo-se, por conseguinte, uma utilização mais racional dos bens capaz de adequar o instituto da moradia às suas reais funções econômicas e sociais. Isso porque, a utilização racional das coisas permite que um número maior de pessoas tenha acesso a elas.

Nas palavras do Professor Venceslau Tavares, os novos modelos de negócios reais se inserem no contexto da transição das sociedades disciplinares para as sociedades de controle, nas quais se verifica uma tendência à virtualização e abstração dos valores em vista da submissão do capital produtivo ao capital financeiro. No direito privado, essa transição se manifesta na massificação (ou despersonalização) das relações jurídicas, bem como na valorização do acesso aos bens de consumo, “agora considerados como serviços que se evidenciam como tão ou mais importantes do que a propriedade tradicional dos bens”.3

  1. Considerações Finais

Os processos contratuais contemporâneos da área imobiliária consagram a primazia da autonomia da vontade nas relações negociais. É importante mencionar que, esse avanço deve ser contraposto a princípios inerentes a qualquer ordenamento jurídico, como, por exemplo, direito à ampla informação, veracidade dos informes publicitários e, principalmente, boa-fé e lealdade negocial.

Como conclusão, é de que é salutar a positivação e amplitude de novos fatos reais, os quais orientam muitos dos negócios jurídicos celebrados contemporaneamente, a fim de lhes atribuir segurança jurídica, enaltecendo, portanto, a autonomia da vontade e a boa-fé objetiva como princípios essenciais ao direito civil brasileiro.

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BEVILAQUA, Clovis. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, vol. I, 1941.

COSTA FILHO, Venceslau Tavares. A lei da multipropriedade: pequena anotação crítica. Cit. O direito civil brasileiro em face das transformações econômicas e sociais da posse. Revista Jurídica, 397 (nov./2010). Porto Alegre: Notadez, p. 28.  Disponível aquiAcesso em: 15 de abril de 2019.

MAIA, Roberta Mauro Medina. Teoria Geral dos Direitos Reais. São Paulo. Ed.: Revista dos Tribunais, 2013.

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1 BEVILAQUA, Clovis. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, vol. I, 1941, p. 306.

2 MAIA, Roberta Mauro Medina. Teoria Geral dos Direitos Reais. São Paulo. Ed.: Revista dos Tribunais, 2013. P. 20

COSTA FILHO, Venceslau Tavares. A lei da multipropriedade: pequena anotação crítica. Cit. O direito civil brasileiro em face das transformações econômicas e sociais da posseRevista Jurídica, 397 (nov./2010). Porto Alegre: Notadez, p. 28.  Acesso em: 15 de abril de 2019.

Marcelo Araújo Carvalho Júnior
Sócio e especialista em Direito Imobiliário do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.

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