Migalhas de Peso

Os vetos parciais sobre a lei 14.181/21 e a necessidade de promoção suficiente dos superendividados

Análise das quatro culturas desperdiçadas do Direito do Consumidor.

31/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Introdução

É dever que se impõe ao Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor - BRASILCON, esgrimir, respeitosamente, as razões pelas quais compreende como insubsistentes (jurídica e valorativamente) os vetos presidenciais1 havidos quando da sanção da lei 14.181/21, que dispõe sobre a prevenção e tratamento ao superendividamento e atualiza na essência o Código de Defesa do Consumidor.

Tal conclusão impende em impostergável acompanhamento na reapreciação da matéria que está em trâmite no parlamento, nos termos do § 4º do art. 66 da Constituição Federal, pelos órgãos e entidades civis de defesa do consumidor, contribuindo para urgente reversão deste cenário, a fim de que seja mantida a integralidade do texto outrora aprovado pelo Senado Federal quando do Projeto de Lei 1805/21.

Cumpre por isso demonstrar que a Lei 14.181/21 tratou em aproveitar, internalizar e consolidar não apenas a experiência internacional concernente ao fenômeno econômico e jurídico do superendividamento, mas singularmente atualizar o Código de Defesa do Consumidor, consoante novas situações e percalços existentes na sociedade, bastante diferenciados dos trinta anos em tempos pretéritos que levaram à vigência da Lei 8.078/90.

O atento observador poderá constatar que a Lei 14.181/21 não modifica a ‘metodologia’ do Código de Defesa do Consumidor, ao contrário a mantém e reafirma na idêntica estrutura e funcionalidade idealizada (e levada à concretude) há mais de trinta anos. Cuida a nova legislação em ‘atualizar’, ‘modernizar’ e ‘melhorar’ aplicação dos direitos dos consumidores, entretanto não é reforma e muito menos recodificação.

Ratifica-se a opção por enraizamento da ‘cultura jurídica2 brasileira alicerçada em modelos codificados, mas sempre sob atualização legislativa conforme os valores a serem promovidos não apenas perante as relações jurídicas privadas, mas também relações jusfundamentais (especialmente os deveres fundamentais de proteção pelo Estado), assim como na recepção, mesmo em parte, de modelos culturais estrangeiros.3

A lei 14.181/21, reforçou a cultura do adimplemento e a cultura do dever de renegociação (corolários da boa-fé) em detrimento da cultura da dívida. Entretanto, quando ainda PL 1805/21, também tratava em fortalecer outras culturas já existentes no microssistema consumerista e que foram desprezadas pelos vetos, são elas: i – a cultura do humanismo; ii – a cultura da verdade; iii – a cultura da proporcionalidade; iv – a cultura da reflexão. É o que se pretende demonstrar.

2. A cultura do adimplemento e a cultura do dever de renegociar

A vigência da Lei 14.181/21, inspirada no modelo francês de enfrentamento ao superendividamento, novamente coroou a ‘ordem pública’ nas relações privadas através do princípio catalisador da boa-fé. E exatamente nesse viés, predica além da ‘cultura do adimplemento’, a ‘cultura do dever de renegociação’.

A ‘cultura do adimplemento’ é aquela vertida sobre o consumidor, que não está de má-fé, vítima de acidentes corriqueiros da vida, mas que impactantes na órbita da acessibilidade aos inúmeros direitos fundamentais. O dever de adimplemento se aplica ao consumidor, contudo trata-se de ‘adimplemento solidário’, repactuado e fundado nas forças econômicas do núcleo familiar ou pessoal superendividado. Intimamente ligado à educação financeira, tem por escopo solapar a ‘cultura da dívida’, enraizada no mundo.

A ‘cultura do dever de renegociação’ é a que recai sobre o fornecedor do crédito, especialmente aqueles cativos ou de longa duração.4 Veio provocada pelo advento da revisão contratual, inicialmente no âmbito das relações de consumo (CDC, art. 6º, inc. V) e mais tarde robustecida perante o macrossistema, tanto mais abstratamente nas obrigações excessivamente onerosas (CC, arts. 156 e 157), como ainda na onerosidade excessiva superveniente (CC, arts. 478) que, inclusive, propõe a renegociação entre as partes através da figura da reductio ad aequitatem (art. 479).5

Na novel legislação o ‘dever de renegociação’ flui mais acentuadamente na medida em que há imposição de sanções ao fornecedor que tanto não comparece injustificadamente na audiência global de repactuação (CDC, art. 104-A, §2º), bem como naqueles casos em que não observa as regras gerais do crédito responsável (CDC, arts. 54-B, art. 54-C e art. 54-D e parágrafo único).

3. A cultura do humanismo

Foi vetada a inserção no art. 51 do CDC do inciso XIX com a seguinte redação: “prevejam a aplicação de lei estrangeira que limite, total ou parcialmente, a proteção assegurada por este Código ao consumidor domiciliado no Brasil”.

Cumpre observar que o veto olvidou a história evolutiva do direito do consumidor no Brasil e no mundo. Direito esse que foi positivado na Constituição Federal, já no Título II, que dispõe sobre direitos, deveres e garantias fundamentais, justamente porque objeto de mobilização-resistência-reivindicação por parte da população antes de outubro de 1988.6 O que redunda dizer: o direito do consumidor é direito humano na essência.7 E, via de consequência, os tipos de interpretação em hipótese de conflito espacial devem estar norteados consoante as balizas do direito internacional dos direitos humanos, nos termos do art. 7º do Código de Defesa do Consumidor, inclusive sob a técnica de diálogo das fontes.

À decisão jurídica que ostenta o veto cabia prestigiar a utilização da hermenêutica humanista relativa à ‘interpretatio pro hominis’ (lei mais adequada aos direitos humanos do consumidor)8 ou mesmo refletir quanto ao emprego do ‘princípio da proteção internacional mínima do consumidor’.9 Não há dúvidas que a cultura humanista prevista no CDC há mais de trinta anos foi banalizada.

E neste ponto há o pior: sequer as razões do veto apresentam eventuais repercussões quanto à aplicação de lei estrangeira com menor potencial de tutela e promoção ao consumidor residente no Brasil, o que vai contra a dicção constitucional dos deveres fundamentais de proteção ao consumidor, consoante art. 5º, inc. XXXII, Constituição Federal.

Não menos a importante a questão relacionada à ordem pública. O art. 17 da Lei de Introdução às Normas no Direito Brasileiro deduz que “as leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes”. Ora, o veto não levou em consideração que o Código de Defesa do Consumidor é norma de ordem pública e de interesse social (CDC, art. 1º), portanto cogente. O dispositivo vetado apenas reafirmava o que a ‘lex legum’ de 1942 trouxe como regra nos conflitos espaciais.

4. A cultura da verdade

Igualmente quando da sanção parcial, foi vetada a proposição contida no inciso I do art. 54-C e, em arrastamento, o parágrafo único do mesmo dispositivo. Assim previa: “inc. I - fazer referência a crédito ‘sem juros’, ‘gratuito’, ‘sem acréscimo’ ou com ‘taxa zero’ ou a expressão de sentido ou entendimento semelhante;”.

Inicialmente, o dispositivo vetado tinha claro escopo em reforçar a ‘cultura pela verdade’ desenvolvida pelo CDC. A matéria pertinente à oferta, nos termos do art. 30 e seguintes da lei protetiva, cuidou em estabelecer regime jurídico à publicidade dirigida ao consumidor. Há, por isso, trilogia minuciosamente já detalhada pela festejada doutrina: princípios – licitude – efeitos obrigacionais da publicidade.10

Essa abordagem do sistema jurídico foi (e é) necessária porque a publicidade é na realidade o ‘discurso’ de mercado, caracterizando-se excessivamente muito mais pela persuasão do que pelo caráter informativo. E nestas circunstâncias a publicidade influencia acendradamente a vontade do consumidor, inclusive impondo ‘necessidades’ que no plano material inexistem.11 A situação ainda é pior na medida que se chocam no ambiente de relações financeiras as avançadas tecnologias digitais e a hipervulnerabilidade de grande massa de consumidores com severas limitações no juízo e cognição: espaço propício ao superendividamento.

Desnecessário relembrar que os juros são “frutos civis, constituídos por coisas fungíveis, que representam o rendimento de uma obrigação de capital”.12 Destarte, se o crédito nada mais é que obrigação de capital, os juros (e outras incontáveis taxas muitas vezes sequer informadas) constituem a remuneração a ser auferida por aquele que concede o empréstimo. Se não houvesse tal ‘remuneração’ não fazia sentido conceder crédito.

E para finalizar a abordagem sobre essa cultura desprezada pelo veto, vale uma indagação: como pensarmos em ‘educação financeira’ (como princípio, direito básico e prevenção ao superendividamento) quando na mesma legislação admite-se o desprezo à verdade? Não se faz educação à base de artifícios enganosos.

5. A cultura da proporcionalidade

Ainda dentre os vetos parciais houve discordância com a integralidade da proposição contida no dispositivo do art. 54-E que estabelecia limites ao crédito consignado em trinta por cento.

A limitação da margem consignável auxilia diretamente na prevenção ao superendividamento, já que estabelece patamar ‘proporcional’ para o empréstimo ou financiamento, deixando incólume o restante da folha de pagamento, ou seja, o mínimo existencial ou mínimo vital, a depender do caso. Está-se diante da ‘cultura da proporcionalidade’ sempre levada a efeito na promoção dos vulneráveis.

A lei protetiva se pauta em matéria referente à ordem pública contratual na promoção dos consumidores, possibilitando a revisão dos contratos, a redução dos encargos e, especialmente, dos juros. Evitando a resolução das relações contratuais, o CDC garante a modificação das cláusulas mediante integração, cumprindo ao Estado-juiz afastar as vantagens ‘exageradas’, assim compreendidas aquelas ‘excessivamente’ onerosas para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso (CDC, art. 51, § 1º, inciso III).

O advérbio ‘excessivamente’ é pura demonstração do desequilíbrio e injustiça, o que continuamente impulsionou a utilização da proporcionalidade como função de correção ao contrato. E esse limite, repita-se ‘proporcional’ de trinta por cento para custeio da soma dos débitos contratados para pagamento na origem (folha de pagamento) aos poucos ganhou espaço nos precedentes jurisprudenciais, especialmente considerando o pensamento tópico.13

Mais que demonstrado que o direito do consumidor construiu, através da doutrina, legislação e jurisprudência, a referência sólida ao princípio da proporcionalidade, altamente propositivo na redação contida no art. 54-E como prevenção ao superendividamento e que, a todos os olhos, foi propositadamente esquecido. Ao seu tempo, a vigência da Lei 14.131/21 que fixou a margem consignável em quarenta por cento tem  limitação temporal nos termos do art. 2º, ou seja, até o dia 31.12.2021. Essa previsão de vigência temporária não incidiria em conflito normativo, porque a margem consignável da Lei 14.181/21 é permanente e para o futuro.

6. A cultura da reflexão

O veto sobre a redação do art. 54-E ainda teve reflexo em arrastamento ao § 2º e seguintes do mesmo dispositivo que regulam o direito ao arrependimento. O direito de arrependimento tem função precípua em proteger o vulnerável considerando a qualidade e quantidade da contratação que está a celebrar e que, inicialmente, não tem condições de melhor avaliar, ver, presenciar e cotejar o objeto contratual com as obrigações que daí advirão. Excepcionalidade na teoria dos contratos e objeto de conquista dos consumidores.

As razões do veto sequer abordam a natureza do direito ao arrependimento, a inerente funcionalidade e estrutura no âmbito da vulnerabilidade e muito menos foi capaz em desenvolver esse importante instituto perante a estratégia ex ante própria da prevenção, na medida em que afastaria igualmente situações de riscos concernentes ao superendividamento, especialmente o assédio.

O mais interessante (senão curioso) é que a FEBRABAN – Federação Brasileira de Bancos em suas “boas práticas de operações de empréstimo pessoal e cartão de crédito com pagamento mediante consignação” possibilita o direito à desistência, enquanto o Poder Público descura de dever fundamental de proteção.14

8. conclusão

O direito do consumidor no Brasil merecia fundamentações em veto que fossem adequadas e honestas frente às culturas jurídicas desenvolvidas (humanismo, verdade, proporcionalidade e reflexão) ou então que não houvesse veto algum quando da apreciação do PL 1805, atual Lei 14.181/21. Aliás, mesmo boa parte da doutrina publicista compreendendo que não há remédio judicial contra vetos, é relevante vislumbrar que a matéria, aprovada por unanimidade no Senado Federal e com amadurecimento há mais de dez anos no Congresso Nacional, era digna de atenção redobrada.

O direito do consumidor do Brasil pelo que foi, pelo que é e pelo que será forçosamente é a melhor expressão de interesse público e seu enfraquecimento é mais que retrocesso, é banalização.

No mínimo, cumpre ao Congresso Nacional derrubar o veto ao parágrafo 2º do art. 54-E que não foi analisado nos fundamentos expostos, apenas mencionado no relatório, bem como porque, como demonstrado, o direito de arrependimento já está sendo praticado pela própria Federação Brasileira de Bancos – FEBRABAN, não fazendo sentido algum a manutenção do veto quando o fornecedor de crédito (agente econômico mais regulado pela Lei 14.181/21), nos meandros internos e administrativos, já aceita a desistência pelo consumidor.

Com estas razões o Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor posta-se totalmente favorável à derrubada dos vetos.

___________

1 Os vetos estão contidos na Mensagem nº 314 de 01-07-2021 da Presidência da República. Ver: Clique aqui. Consulta em 15-08-2021.

2 RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz. Direito civil contemporâneo: estatuto epistemológico, constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2019, p. 117.

3 LOPES, José Reinaldo Lima. Crédito ao consumidor e superendividamento – uma problemática geral. In: Doutrinas essenciais de Direito do Consumidor. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 737-747.

4 MARQUES, Claudia Lima; BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz; LIMA, Clarissa Costa de. Exceção dilatória para os consumidores frente à força maior da pandemia de Covid-19. Pela urgente aprovação do PL 3515/2015 de atualização do CDC e por uma moratória aos consumidores. In: Revista de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 44-71.

5 MARTINS, Fernando Rodrigues. Princípio da justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 2014.

RIOS, Josué. A defesa do consumidor e o direito como instrumento de mobilização social. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

7 BARBOSA, Fernanda Nunes. O dano informativo do consumidor na era digital. Uma abordagem a partir do reconhecimento do direito do consumidor como direito humano. In: Revista de Direito do Consumidor. v. 122. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

8 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direito internacional e direito interno: sua interpretação na proteção dos direitos humanos. Instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 1996.

9 Ver MARQUES, Claudia Lima. A insuficiente proteção do consumidor nas normas de direito internacional privado – da necessidade de uma convenção interamericana (CIDIP) sobre a lei aplicável a alguns contratos e relações de consumo. In: Doutrinas essenciais de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 1097-1157.

10 Ver por todos PASQUALOTTO, Adalberto. Os efeitos obrigacionais da publicidade no código de defesa do consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.

11 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos. O controle jurídico da publicidade. In: Doutrinas essenciais de Direito do Consumidor. v. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

12 VARELA, João Antunes de Matos. Das obrigações em geral. Coimbra: Almedina, 1980. vol. I, p. 742.

13 Ver STJ - REsp: 1584501 SP 2015/0252870-2, sob a Relatoria do eminente Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.

14 Art. 7º. Nas contratações de operações de crédito consignado realizadas por telefone, dispositivos móveis de comunicação (mobile), caixas eletrônicos (ATM), internet ou por correspondentes, o cliente poderá desistir do contrato no prazo de até 07 (sete) dias úteis a contar do recebimento do crédito, devendo restituir o valor total concedido que lhe foi entregue, acrescido de eventuais tributos incidentes sobre a operação. Parágrafo único. O procedimento para desistência previsto neste artigo será devidamente informado aos consumidores no momento da contratação.

Fernando Rodrigues Martins
Mestre e doutor em direito das relações sociais pela PUC-SP. Professor, adjunto de Direito Civil na Universidade Federal de Uberlândia. Ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia.

Clarissa Costa de Lima
Doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Juíza de Direito em Porto Alegre, RS. Ex-presidente e atual primeira vice-presidente do BRASILCON.

Guilherme Magalhães Martins
Promotor de Justiça titular da 5ª Promotoria de Tutela Coletiva do Consumidor e do Contribuinte - Rio de Janeiro. Doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ.

Sophia Martini Vial
Doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Assessora parlamentar, DF. Diretora Secretária-Geral do BRASILCON.

Claudia Lima Marques
Professora titular de Direito Internacional Privado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutora pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e mestre em Direito (L.L.M.) pela Universidade de Tübingen (Alemanha).

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