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Teto Constitucional e sua incidência sobre remuneração, proventos e pensão no entendimento do STF

O teto constitucional deve incidir de forma isolada quando da cumulação de remuneração, aposentadoria ou pensão, de forma a unificar o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria.

6/8/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Quando o tema é a análise do alcance do artigo 37, inciso IX, da Constituição Federal de 19881 e a cumulação de cargos públicos ou cumulação de remuneração, proventos e pensão, o Supremo Tribunal Federal, ao nosso sentir, possui dois entendimentos conflitantes. 

O primeiro entendimento foi fixado nos autos do RE 602043, de Relatoria do Ministro Marco Aurélio, tendo a Corte Suprema entendido que nas situações jurídicas em que a Constituição Federal autoriza a acumulação de cargos, o teto remuneratório é considerado de forma isolada. Nesses termos: 

TETO CONSTITUCIONAL – ACUMULAÇÃO DE CARGOS – ALCANCE. Nas situações jurídicas em que a Constituição Federal autoriza a acumulação de cargos, o teto remuneratório é considerado em relação à remuneração de cada um deles, e não ao somatório do que recebido.

(RE 602043, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 27/04/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-203  DIVULG 06-09-2017  PUBLIC 08-09-2017) 

Merecem destaque as três premissas básicas que serviram para fundamentar o voto vencedor do Relator. Vejamos: 

Consoante destaca Celso Antônio Bandeira de Mello, não se pode desconsiderar que “as possibilidades que a Constituição abre em favor de hipóteses de acumulação de cargos não são para benefício do servidor, mas da coletividade”, no que o disposto no artigo 37, inciso XI, da Lei Maior, relativamente ao teto, não pode servir de desestímulo ao exercício das relevantes funções mencionadas no inciso XVI dele constante, repercutindo, até mesmo, no campo da eficiência administrativa (Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 27ª edição, 2010, p. 277).

Em segundo lugar, por ensejar enriquecimento sem causa do Poder Público. A incidência do limitador, tendo em vista o somatório dos ganhos, sendo acumuláveis os cargos, viabiliza retribuição pecuniária inferior ao que se tem como razoável, presentes as atribuições específicas dos vínculos isoladamente considerados e respectivas remunerações.

Em terceiro lugar, ante a potencial criação de situações contrárias ao princípio da isonomia. Não se deve extrair do texto constitucional conclusão a possibilitar tratamento desigual entre servidores públicos que exerçam idênticas funções. O preceito concernente à acumulação preconiza que ela é remunerada, não admitindo a gratuidade, ainda que parcial, dos serviços prestados, observado o artigo 1º da Lei Maior, no que evidência, como fundamento da República, a proteção dos valores sociais do trabalho.

A interpretação constitucional não pode conduzir o absurdo, de modo a impedir, por exemplo – o mais gritante –, a acumulação de cargos por aqueles, como os Ministros do Supremo, que já tenham alcançado o patamar máximo de vencimentos 

A primeira premissa, diz respeito ao desestimulo que seria gerado ao servidor que cumula dois cargos públicos e, em virtude da incidência do teto constitucional sobre a soma das remunerações teria parte substancial, quando não integral, da sua remuneração de um dos cargos subtraída. 

A segunda premissa do voto vencedor é no sentido de que a incidência do teto constitucional sobre a soma dos valores recebidos pelo servidor nos cargos que cumula consistiria em enriquecimento ilícito por parte do Estado, uma vez que o valor recebido pelo servidor não seria equivalente às atribuições desempenhadas no cargo. 

A terceira premissa é no sentido de que em virtude do princípio da isonomia não poderiam ser criadas situações em que servidores em idêntica condição, exercendo atribuições correspondentes, recebam remunerações distintas, sendo que a Constituição Federal veda a prestação de serviços gratuitos no âmbito da Administração Pública. 

Essas premissas são importantes para demonstrarmos na sequência a incoerência dos entendimentos firmados pela Suprema Corte. 

O segundo entendimento sobre o tema firmado pelo Supremo Tribunal Federal se deu nos autos do RE 602584, também de relatoria do Ministro Marco Aurélio, em que analisando situação bastante similar o Supremo Tribunal Federal entendeu que em se tratando de cumulação de remuneração, proventos ou pensão, após o advento da Emenda Constitucional nº 19/1998, o teto constitucional deve incidir sobre a soma dos valores recebidos. Nesse sentido: 

TETO CONSTITUCIONAL – PENSÃO – REMUNERAÇÃO OU PROVENTO – ACUMULAÇÃO – ALCANCE. Ante situação jurídica surgida em data posterior à Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998, cabível é considerar, para efeito de teto, o somatório de valores percebidos a título de remuneração, proventos e pensão.

(RE 602584, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 06/08/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-277  DIVULG 20-11-2020  PUBLIC 23-11-2020) 

O voto vencedor, proferido pelo Ministro Relator, aplicou, ao contrário do primeiro julgado citado, uma interpretação literal do teor do artigo 37, inciso XI, com as redações que lhe deram as Emendas Constitucionais nº 19/1998 e 41/2003. Vejamos trecho do voto: 

Com a Emenda de nº 19, de 4 de junho de 1998, deu-se a mudança do preceito, lançando-se o teto de forma mais abrangente, ou seja, alcançando, além da remuneração, subsídio, proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, “percebidos cumulativamente ou não”. Confiram a redação dada ao inciso XI do artigo 37 da Carta da República: 

Art. 37. […] […] XI - a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal; 

O dispositivo veio a ser modificado novamente por intermédio da Emenda de nº 41/2003, ficando mantida, no texto, a expressão “percebidos cumulativamente ou não”. 

O dispositivo veio a ser modificado novamente por intermédio da Emenda de nº 41/2003, ficando mantida, no texto, a expressão “percebidos cumulativamente ou não”.

Ocorrido em 1999 o óbito do instituidor da pensão, ou seja, após a Emenda nº 19, publicada em 1998, a situação jurídica da recorrida – viúva – é apanhada pelo preceito transcrito, cabendo limitar ao teto constitucional o resultado da soma dos proventos com a pensão recebida. Provejo o extraordinário, para indeferir a ordem. 

 Proponho a seguinte tese, a ser observada sob o ângulo da sistemática da repercussão geral: “Ocorrida a morte do instituidor da pensão em momento posterior ao da Emenda Constitucional nº 19/1998, o teto constitucional previsto no inciso XI do artigo 37 da Constituição Federal incide sobre o somatório de remuneração ou provento e pensão percebida por servidor”. 

Ao simplesmente ignorar as premissas fixadas no primeiro julgado, nos parece que o Supremo Tribunal Federal incide em flagrante contradição. Isso porque das três premissas que fixou quando tratou da incidência do teto sobre a cumulação de cargos, nos parece que duas delas se aplicam de forma bastante clara também no tocante a cumulação de remuneração, proventos e pensão. 

Em primeiro lugar, cumpre destacar que o raciocínio de que a Constituição Federal autoriza e estabelece o instituto da cumulação de cargos, portanto, a incidência do teto sobre a soma das remunerações o esvaziaria, também se aplica a também constitucionalmente autorizada cumulação de remuneração, proventos e pensão, vide artigo 24, §1º, incisos I a III da Emenda Constitucional 103/20192. 

Note-se, portanto, que uma vez autorizada pela Constituição Federal a cumulação de remuneração, proventos e pensão, o dispositivo que trata do teto constitucional deve ser interpretado, assim como o foi em relação a cumulação lícita de cargos públicos, observando-se esse preceito, sob pena de, frise-se, esvaziar essas possibilidades e ignorar-se esse instituto, criando-se nítido conflito no texto constitucional, o qual, por sua vez, desaparece adotando-se a correta técnica de interpretação do texto normativo. 

No tocante as premissas fixadas no RE nº 602043 e sua possível aplicação ao caso concreto julgado nos autos do RE 602584 entendemos que a primeira premissa é a que possui maior dificuldade de demonstrar a identidade entre os fundamentos. 

Isso porque no caso de cumulação de remuneração, proventos e pensão, estamos, nessas duas últimas hipóteses, a tratar de benefícios previdenciários, de modo o beneficiário dos proventos ou da pensão, diante da compulsoriedade do sistema, mostra-se sem alternativas no tocante ao recolhimento ou não da contribuição previdenciária e, no caso da pensão, ele não será o beneficiário direto da prestação, de modo que se mostra dificultoso falar-se em desestimulo nesse contexto. 

No entanto, no tocante a segunda premissa, nos parece que o raciocínio se aplica de forma perfeita e adequada a ambas as hipóteses, isso porque caso ocorra a incidência do teto constitucional sobre a soma dos valores recebidos a título de remuneração, pensão e aposentadoria, inequivocamente haverá enriquecimento ilícito por parte do Estado. 

Isso porque, aposentadorias e pensões são custeadas com base em contribuições previdenciárias previamente definidas para o pagamento de benefícios previdenciários também em valores, em regra, previamente definidos. Dessa forma, haverá inequívoca “sobra” de contribuições, quebrando o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema, caso esses benefícios deixem de ser pagos ou sejam pagos em um valor a menor do que o previamente estipulado. 

Esse enriquecimento nos parece bastante claro nas hipóteses em que o servidor, em atividade, receba remuneração já no valor do teto constitucional e, ao mesmo tempo, faça jus, uma vez preenchendo os requisitos, ao recebimento de pensão por morte. Caso prevaleça o entendimento atual esse servidor ficaria impedido de receber os valores à título de pensão, de modo que o Estado irá se enriquecer, de forma ilícita, com as contribuições previdenciárias que foram vertidas para o custeio dessa pensão. 

A terceira premissa também nos parece se aplicar a ambos os casos, ou seja, em ambas as hipóteses existe a necessidade de observância ao princípio da isonomia, de modo que não nos parece adequado que no tocante aos proventos e pensões, servidores ou pensionistas, cuja contribuição previdenciária para custeio desses benefícios foi recolhida em idêntico valor e sob às mesmas regras legais, possam recebem benefícios em valores distintos em virtude da indevida incidência do teto constitucional, quebra-se, também, o princípio da segurança jurídica. 

Assim sendo, concluímos entendendo que, por se tratar de uma hipótese autorizada pelo texto Constitucional, visando evitar o enriquecimento ilícito por parte do Estado, bem como em homenagem ao princípio da isonomia, o teto constitucional deve incidir de forma isolada quando da cumulação de remuneração, aposentadoria ou pensão, de forma a unificar o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria.

_____________

1 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:  
(...)
XI - a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos;  

2 Art. 24. É vedada a acumulação de mais de uma pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro, no âmbito do mesmo regime de previdência social, ressalvadas as pensões do mesmo instituidor decorrentes do exercício de cargos acumuláveis na forma do art. 37 da Constituição Federal.

§ 1º Será admitida, nos termos do § 2º, a acumulação de:

I - pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro de um regime de previdência social com pensão por morte concedida por outro regime de previdência social ou com pensões decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal;

II - pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro de um regime de previdência social com aposentadoria concedida no âmbito do Regime Geral de Previdência Social ou de regime próprio de previdência social ou com proventos de inatividade decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal; ou 

III - pensões decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal com aposentadoria concedida no âmbito do Regime Geral de Previdência Social ou de regime próprio de previdência social.

Odasir Piacini
Advogado, sócio proprietário do escritório Piacini Advocacia. Mestre em Direito pelo Centro Universitário do Distrito Federal. Autor do livro Prescrição e Decadência dos Benefícios Previdenciários.

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