Faz parte dos jogos e dos processos de disputa a possibilidade de questionar as decisões tomadas ao longo do percurso. Não utilizar impugnações formais e contestar o resultado fora de campo, por exemplo, são atitudes que apenas revelam o inconformismo irracional e desonesto dos jogadores. A culpa da incompetência ou da incapacidade de alcançar a vitória passa a ser atribuída ao juiz e aos procedimentos utilizados, rompendo a ética competitiva. Nesse sentido, o fair play é atribuído não apenas à necessidade de que os atletas evitem causar deliberadamente prejuízos aos oponentes, mas também que atuem em conformidade com as regras do jogo, inclusive aceitando os resultados, ainda que adversos.
Seguindo essa lógica, percebe-se que o processo eleitoral é um jogo com possibilidade de impugnação a cada lance. Os competidores podem utilizar alguma técnica de impugnação a cada fase, seja no registro de candidatura, na propaganda, no financiamento, na estratégia de campanha ou na apuração do resultado das eleições. Essa mecânica decorre do devido processo eleitoral, em virtude do qual cada momento da disputa é contemplado com a possibilidade de exercício do contraditório e ampla defesa, direito este a ser exercido no tempo certo, sob pena de preclusão, como se dá em todos os processos judiciais, a fim de evitar a insegurança jurídica e a perpetuação de inconformismos, muitas vezes, infundados.
Não é supérfluo destacar que a segurança jurídica é um valor indispensável ao funcionamento do Estado Democrático de Direito, na medida em que, além de garantir a integridade das decisões e dos procedimentos, permite a manutenção das "grades de proteção da democracia"¹, isto é, do conjunto de regras informais que fortalecem o sistema legal e garantem o respeito mútuo e a lisura nas disputas políticas. Por isso, a contestação dos resultados pelas vias adequadas é um elemento essencial para afastar a tentativa de deslegitimar o processo eleitoral.
De modo alheio a esses pressupostos, eleições presidenciais anteriores estão tendo sua legitimidade atacada, com alegado fundamento na falta de confiabilidade da urna eletrônica. O discurso, porém, vem sendo desenvolvido por pessoas que poderiam ter impugnado o resultado no lugar próprio e no tempo certo, mas não o fizeram. Na verdade, elas não apenas poderiam, como deveriam ter questionado o resultado se tinham qualquer suspeita de fraude. Ou seja, pessoas com conduta pública não confiável - porque deixaram passar despercebido um fato democrático relevante (se é verdade a fraude que sustentam) - procuram plantar o discurso da desconfiança no desfecho do jogo depois de atuarem de modo estrategicamente omisso. Juridicamente, esse tipo de comportamento é rejeitado pelo princípio segundo o qual ninguém pode se valer da própria torpeza.
Admitir o contrário, seria semelhante a beneficiar um técnico de futebol que, imaginando ter visto um pênalti não marcado a favor de seu time, optasse por permanecer de braços cruzados no momento do jogo, sentado, em silêncio, para, apenas após o término da partida, vociferar que o juiz errou, foi corrupto e ideias do gênero. Discursos e condutas dessa natureza não têm a finalidade de afastar defeitos no processo e resolver problemas, mas sim de plantar o medo e o descrédito, semeando negatividade e insegurança. Por essa razão, há, nesse cenário, preclusão discursiva quando a questão não é travada em ambientes institucionais e espaciais adequados e no tempo apropriado. Trazendo a questão para o campo eleitoral, é inválido alegar fraude nas eleições fora do âmbito institucional pertinente e depois de passado o prazo para impugnação.
Mas não só. A situação de invalidade do discurso se agrava quando se constata que o seu alvo é a propagação do medo. Tem-se debatido sobre o discurso de ódio, porém pouco se tem atentado para o discurso de medo em uma democracia. Na verdade, essa estratégia discursiva é, muitas vezes, a semente para o discurso de ódio.
O medo, como tem estudado Martha Nussbaum², traz não apenas esse sentimento em si, como também contamina outros. Ele leva à incapacidade de articular ações eficientes e de decidir com autonomia, cria barreiras que germinam o preconceito, a inimizade entre os cidadãos e a suspeita contra as instituições. Também é destacado por Nussbaum que "as teorias são somente uma influência na vida das pessoas, mas são uma influência. Imagens de quem somos e por que nos unimos uns com os outros têm o poder de moldar nossos projetos"³. Às vezes, o medo adota uma roupagem de defesa frente às situações com as quais o ser humano não sabe lidar e, então, impõe-se como um motor de ação, especialmente diante de elementos desconhecidos, como ocorreu no contexto da pandemia do coronavírus.
O caminho para combatê-lo é a união de saberes, com a iluminação do percurso pela ciência e pela solidariedade. Em uma sociedade democrática, o medo não pode fazer parte de uma estratégia política perversa de dominação, pautada no ataque generalizado aos pilares da ciência e das instituições, fazendo pairar sobre os cidadãos uma nuvem de dúvida e angústia. O indivíduo tem direito a viver em um ambiente saudável para o exercício da razão e das emoções, sob pena de violação de sua dignidade. Razão e emoção, aliás, são capacidades do rol de competências imprescindíveis ao florescimento humano.
Em uma república, governantes e representantes têm o dever de prestação de contas com a sociedade e, apesar de eventual imunidade discursiva, suas falas devem ser confrontadas com parâmetros científicos e de respeito institucional. O presidente da República, após meses ameaçando provar as fraudes nas eleições e depois de ser institucionalmente pressionado, fez uma live, em 29/07/21, atacando novamente a validade da apuração dos resultados e destacando o que seriam os supostos indícios de falha. Num discurso sem embasamento, insistiu em alegações que foram desmentidas em tempo real pelo Tribunal Superior Eleitoral e confessou que não tem provas de fraude alguma, o que ficou marcado pela frase "e digo mais, não temos provas". Apesar do caráter quase jocoso do evento, o que seria suficiente para desconsiderá-lo se a política fosse feita apenas de razão, tem-se a repetição do chefe de governo agredindo verbalmente instituições e procedimentos essenciais à democracia. Seu discurso, por mais infundado que possa parecer, cativará alguns eleitores e possui relevante simbolismo de desprezo democrático.
A política é feita de ações e de palavras. O uso da linguagem é sempre um ato político. É com ela que se tecem os direitos, as expectativas e os sonhos cívicos. Do novelo de vocábulos utilizados na elaboração de discursos, tem-se medo, ódio ou esperança. É preciso refletir sobre a teia infundada de medo com que se pretende atacar as eleições. O frágil equilíbrio do regime democrático requer verdade, demanda uma realidade íntegra e confiável, mas também legitimidade, ou seja, crença na forma como a realidade foi vivenciada. A Justiça Eleitoral possui relevante papel na defesa da legitimidade das eleições. Ataques irresponsáveis que procuram tornar vulneráveis essa legitimidade são também atentados à democracia, portanto devem ser combatidos política e juridicamente.
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1- LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 99.
2- NUSSBAUM, Martha. The Monarchy of Fear: A Philosopher Looks at Our Political Crisis, Oxford University Press, 2018, passim.
3- NUSSBAUM, Martha. Fronteiras da Justiça: Deficiência, Nacionalidade, Pertencimento à espécie, São Paulo: Martins Fontes, p. 275.