Breve histórico
Antes de analisar o caráter da sanção é preciso compreender a trajetória da sociedade para se pensar em medidas socioeducativas para crianças e adolescentes, para assim, analisar a sua função dentro da sociedade.
Em 1927, o presidente Washington Luiz assinava a primeira lei do Brasil dedicada "à proteção da infância e da adolescência". Isso ocorreu, pois, no final do século XIX e início do século XX, os estados de São Paulo e Rio de Janeiro apontavam elevado crescimento nos centros urbanos, o que gerava preocupação das elites com o aumento da criminalidade.
O código de menores tinha foco na prevenção da criminalidade, disciplinando jovens marginalizados e estigmatizados pela sociedade, razão pela qual aplicava-se medidas tanto para os jovens considerados criminosos quanto àqueles em situação de "abandono", havia uma forte intervenção estatal com o recolhimento de modo indiferenciado para estas crianças e adolescentes.
No Brasil, as ambivalências, presentes na justiça criminal adulta, marcaram também a justiça juvenil, apesar dos argumentos que as instituições de isolamento de adolescentes seriam locais livres de violências corporais, e eram considerados castigos bárbaros, estes locais não estavam livres destas características.
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA
Com a aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança resultou na aprovação da lei Federal 8.069/90 que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), considerada e celebrado como uma das mais avançadas legislações em relação a proteção dos direitos da criança e do adolescente, nas palavras de Emílio García Méndez, de acordo "com os mais altos padrões internacionais de respeito aos direitos humanos" (MÉNDEZ, 2006, p.22).
A adolescência, é uma fase marcada e associada a problemas, riscos, rebeldia e tantos outros adjetivos veiculados em filmes e mídias. Essa etapa, marcada por dificuldades, estresses, questionamentos e tantos outros sentimentos, é necessária para o amadurecimento: físico, emocional e psicológico.
Uma das grandes dificuldades da sociedade moderna, é a complexidade dos problemas inerentes a ela. As dificuldades da criminalidade juvenil é também uma questão social, política e institucional.
Adolescentes submetidos às práticas socioeducativas, especialmente as de privação de liberdade, tem raiz em sua grande maioria em jovens que antes de terem algum contato com a própria criminalidade, antecedem de situações de carência afetiva, educacional e material, sendo precariamente socializados (ESTEVAM, 2005; Volpi, 1997,2001).
Diante deste entendimento, o ECA passou a conceber a criança e o adolescente como seres em desenvolvimento, e sujeitos de direito que devem receber proteção integral, por isso, diz-se que tal legislação é inovadora.
O ECA é insculpido por alguns princípios, dentre eles: (i) proteção integral e prioritária; (ii) condição da criança e do adolescente como sujeito de direitos; (iii) proporcionalidade e atualidade, ou seja, a intervenção deve ser necessária e adequada; e (iv) interesse superior, logo, havendo a intervenção deverá atender aos interesses da criança e do adolescente.
No entanto, apesar da base principiológica e do rompimento com o Código de Menores, ao estabelecer limites à imposição da medida de privação de liberdade, e teoricamente, o atendimento a bases éticas, de modo que qualquer intervenção feita deva garantir o desenvolvimento sadio e adequado, visando garantir os direitos e oportunizar a inserção na vida do adolescente na vida social, surge o questionamento: "a privação liberdade cumpre com seu papel de socialização? Ou apenas restringe a liberdade e depois os devolve à sociedade como marginais e excluídos?"
Em primeiro plano, é importante ter em mente o objetivo da medida socioeducativa, ou seja, finalidade pedagógica, mas de natureza sancionatória, de modo que possibilite o adolescente em conflito com a lei ressocializar-se. Não se confunde com a pena que tem um fim em si mesmo, sendo uma retribuição proporcional ao fato, e visa impedir que o réu volte a causar lesões à sociedade.
Isto posto, denota-se que o caráter predominante das medidas previstas no ECA, em tese, diferencia-se das penas previstas no Código Penal, todavia é de suma importância questionar-se se a finalidade pedagógica tem o caráter de socioeducação, ou o autor do ato infracional reconhece a natureza retributiva do Estado.
Um estudo, realizado no Lar do Garoto, na cidade de Campina Grande, na Paraíba (Estevam, I.D; Coutinho, M.P.L & Araújo, L.F, 2008.p.67), usando a metodologia de Representações Sociais (RS), que através de um estímulo e palavras pronunciadas pelos participantes, foi possível identificar que adolescentes em privação de liberdade, enxergam sua condição como uma perda, os erros cometidos os quais refletem geram um sentimento de culpa, saudades da família e dos amigos. A instituição, que a priori deveria ser vista como um ambiente ressocializador, reflete a esses jovens uma prisão.
Neste mesmo estudo, outro grupo de jovens em instituição ressocializadora, representam a privação de liberdade pelos sentimentos de tristeza e angústia, o ambiente é malicioso – segundo os jovens e, assim sendo, não condiz com os objetivos educacionais.
Grande parcela destes adolescentes expressam a situação como um inferno, onde o tempo não passa e, enquanto sujeitos sociais, enxergam-se cada vez mais à marginalização e à criminalidade (ESTEVAM, 2005; OZELLA, 2003).
Ora, tais questionamentos são fundamentais, uma vez que o levantamento feito pelo Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e das Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça (DMF/CNJ), demonstrou que no Brasil, existem mais de 22 mil jovens internados em 461 unidades socioeducativas em funcionamento em todo país, o estudo apenas inclui adolescentes que cumprem medidas em meio fechado, sendo uma "punição" mais rigorosa.
Diante dos dados levantados pelo CNJ, é possível vislumbrar a superlotação das poucas unidades socioeducativas no território nacional, e no HC 143988/ES, chegou-se ao diagnóstico que "a seletividade e a reação estatal aos atos infracionais reproduz as mesmas variáveis detectadas no sistema prisional brasileiro".
À face do exposto, levando em consideração o ambiente superlotado e hostil das unidades socioeducativas, somada a ociosidade que os jovens restritos da sua liberdade são submetidos, contribuem para a estigmatização e, uma vez identificado como criminosos, além de assumir tal identidade, passam a corresponder ao papel, devolvendo esses adolescentes marginalizados e excluídos da sociedade, contrário ao objetivo da instituição da ressocializadora.
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Andrade, P. & Fariello, Luiza. Há mais de 22 mil menores infratores internados no Brasil. Publicado em 9 de novembro de 2018. Acesso em 12 de julho de 2021.
BRASIL, Superior Tribunal Federal. Habeas Corpus - 143.988 Espírito Santo. Cumprimento De Medidas Socioeducativas De Internação. Impetração Voltada a corrigir alegada superlotação em unidades. Admissibilidade da via Eleita para o exame da questão de fundo.
Estevam, I. D. (2005). As representações sociais da prática socioeducativa de privação de liberdade. Dissertação de Mestrado, Departamento de Psicologia, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa-PB. (não-publicada).
Estevam, I.D; Coutinho, M.P.L & Araújo, L.F. Os desafios da prática socioeducativa de privação de liberdade em adolescentes em conflito com a lei: ressocialização ou exclusão social? 2009
Ozella, S. (Org.). (2003). Adolescências construídas: a visão da psicologia sócio-histórica. São Paulo: Cortez.
Volpi, M. (1997). Adolescentes privados de liberdade: A normativa nacional e internacional, reflexões acerca da responsabilidade pessoal. São Paulo: Cortez.