O assunto não é novo, tampouco a tese firmada, isto é: "o mero deslocamento entre estabelecimentos do mesmo titular, na mesma unidade federada ou em unidades diferentes, não é fato gerador de ICMS".
No entanto, o julgamento da ADC 49, na qual o estado do Rio Grande do Norte (RN) buscava a validação da exigência, prevista na LC 87/1996 (Lei Kandir)1, tem levantado uma série de questionamentos pelos contribuintes.
Isso porque, embora a jurisprudência sobre a matéria seja pacífica em favor da não incidência do imposto estadual nas transferências entre estabelecimentos do mesmo contribuinte (as primeiras decisões nesse sentido remontam aos anos 70!), a maior parte dos contribuintes segue a previsão da legislação (LC 87 e leis estaduais), efetivando o regular débito do ICMS na saída de cada estabelecimento, com o respectivo crédito no estabelecimento de destino, ambos de sua titularidade.
Além disso, muitos se beneficiam de incentivos fiscais, como pagamento a menor de ICMS, via redução de base de cálculo, e/ou créditos presumidos, nas transferências entre seus estabelecimentos, sobretudo nas remessas a Centros de Distribuição (CD) e filiais localizados em outros estados da Federação.
Outro ponto que merece destacada atenção é que a Corte também declarou inconstitucional trecho do art. 11, §3º, inciso II, da LC 87/96, que previa como "autônomo cada estabelecimento do mesmo titular", o que pode impactar nas obrigações acessórias de cada filial, como as informações declaradas no Sped (Sistema Público de Escrituração Digital) e na EFD (Escrituração Fiscal Digital).
De fato, em se tratando o ICMS de imposto não-cumulativo, para os contribuintes que adotam o creditamento nas transferências intercompany, notadamente nas remessas interestaduais, há o receio de os créditos serem anulados no destino, já que a Constituição Federal veda o aproveitamento de créditos anteriores à operação sobre a qual não incide o tributo (art. 155, § 2º, II, "a" e "b2).
Sobre esse aspecto, há quem defenda – e a essa corrente nos filiamos - que não se trataria de isenção ou, tampouco, de "não-incidência" do imposto, o que exigiria o seu estorno, mas mera movimentação física (em que não há a ocorrência do fato gerador do ICMS).
Com efeito, esse entendimento encontra amparo nos próprios conceitos de operação (negócio jurídico), que é o núcleo do ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação), e de circulação (mudança da titularidade), que corroboram se tratar de simples deslocamento, a invalidar a necessidade de estorno do crédito no destino.
Assim, se a empresa é uma unidade, independentemente de quantas filiais e estabelecimentos tiver – o que foi reforçado pelo STF no julgamento da ADC 49 – por quais razões haveria de se estornar o crédito? Seria como "passar de uma mão para a outra", pois não há operação, isto é, mudança de titularidade, com previsão de não-incidência, a ensejar a anulação do crédito relativo às operações anteriores.
Nesse sentido, inclusive, o STF, no julgamento do RE 1.141.756 (tema 1.052 da repercussão geral, 28/9/20), decidiu que a saída de bens em comodato não acarreta o estorno do crédito, uma vez que "ausente operação de saída, descabe cogitar de situação reveladora de exoneração tributária – isenção ou não incidência –, a fim de impedir-se o aproveitamento dos créditos, conforme as balizas versadas no preceito", exatamente o que ocorre na remessa entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica, visto que não há saída jurídica.
No caso de transferências de bens de uso/consumo e ativo fixo, o cenário é simples: a remessa, ainda que entre diferentes estados, não é tributada e ponto.
A dificuldade começa a aparecer no caso de mercadorias que são transferidas de um estado a outro para então serem vendidas, já que poderia se presumir que o crédito ficaria no estado de origem e o débito no estado de destino. Há uma incongruência de natureza operacional nesse aspecto, pois não há previsão para a transferência de créditos entre os estados.
Ou ainda, partindo-se do pressuposto que a empresa é uma entidade única e indivisível, a consolidação dos créditos deverá se dar sempre na matriz da empresa? E daí todas as operações, ainda que realizadas integralmente pelas filiais, serão interestaduais?
Isso seria um verdadeiro gatilho para a guerra fiscal, já que os estados em que as filiais estão situadas ficariam sempre com a diferença da alíquota.
Considerando, entretanto, que outros dispositivos da LC 87, que também tratam da autonomia dos estabelecimentos, não foram alterados, bem como que o pedido da ação não ultrapassa essa seara – e, em decorrência, tampouco a decisão proferida – nos parece seguro afirmar que a autonomia dos estabelecimentos restou mantida quanto às verdadeiras operações.
Já no que se refere a eventuais benefícios fiscais concedidos, como redução na base de cálculo, vale a lógica adotada nas promoções: se o contribuinte não paga nada, o desconto é maior.
Além disso, pensando nos casos em que há reais vantagens financeiras, nenhum benefício foi revogado. Portanto, se há previsão nas legislações estaduais (o que poderia ter sido afastado por arrastamento pelo STF) e convênio firmado entre os estados, é possível a manutenção da sistemática, pelo menos até que sobrevenha ato específico de revogação.
Nada obstante, diante de todos esses impasses e questionamentos, é esperado que o Supremo module, em alguns aspectos, a decisão, o que foi pleiteado pelo estado do RN, por meio de embargos de declaração.
Em seu recurso, o estado do RN aduziu que os reflexos da decisão são impactantes não apenas para os estados, que sofrerão perdas com a distribuição federativa da arrecadação do ICMS, mas também para os contribuintes, que deverão sofrer o estorno dos créditos nas suas filiais.
Embora se discorde desse último aspecto, como já adiantado, é certo que alguns pontos merecem esclarecimento, como é o caso do alcance da decisão quanto à autonomia dos estabelecimentos. Isso porque, caso não se limite os efeitos da decisão, o que pode ser feito por meio de "declaração parcial de inconstitucionalidade, sem redução de texto", poderá emergir novas discussões acerca da competência dos entes federativos.
Além disso, o estado do RN pleiteou a suspensão dos efeitos da decisão até o julgamento dos embargos e modulação dos efeitos a partir de 2022.
A previsão de modulação, a nosso ver, é bem-vinda, sobretudo em relação às transferências do passado, já que, embora a jurisprudência fosse pacífica, é certo que a segurança jurídica não pode estar adstrita apenas ao Judiciário, mas à realidade das relações entre sociedade e Estado, como já entendeu a própria Corte:
"O postulado da segurança jurídica, enquanto expressão do Estado Democrático de Direito, mostra-se impregnado de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de direito público (RTJ 191/922), em ordem a viabilizar a incidência desse mesmo princípio sobre comportamentos de qualquer dos Poderes ou órgãos do Estado, para que se preservem, desse modo, sem prejuízo ou surpresa para o administrado, situações já consolidadas no passado. A essencialidade do postulado da segurança jurídica e a necessidade de se respeitarem situações consolidadas no tempo, especialmente quando amparadas pela boa-fé do cidadão, representam fatores a que o Poder Judiciário não pode ficar alheio."3
E a realidade nos mostra que os contribuintes estão confusos e os tributaristas divididos em relação aos efeitos do julgamento.
Há que se ressaltar, entretanto, que, embora a modulação venha ocorrendo com frequência no âmbito da Suprema Corte, a exemplo do julgamento da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, o ministro relator Luiz Edson Fachin votou contra a modulação naquele caso.
Segundo destacou em seu voto, a modulação deve "ocorrer em situações excepcionais, ou seja, quando há alteração jurisprudencial à luz do interesse social e da segurança jurídica". E, em que pese a existência de evidente interesse social, bem como necessidade de se preservar a segurança jurídica, é fato que a jurisprudência sobre o assunto não sofreu qualquer alteração nos últimos 50 anos.
Se, como dizia Tom Jobim, "o Brasil não é um país para principiantes", o seu sistema tributário não facilita nem para os mais experientes.
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1 Artigos 11, § 3º, II, 12, I, no trecho "ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular" e 13, § 4º, no trecho "autônomo cada estabelecimento do mesmo titular".
2 "Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
(...)
§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
(...)
II - a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:
a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes;
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores".
3 STF, 2ª turma, RE 646.313 AgR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, julgado em 18/11/2014.