Conforme dados da TV Justiça¹, oitenta e três mil bebês foram concebidos por técnicas de reprodução assistida, como inseminação artificial e fertilização in vitro, nos últimos 25 anos no Brasil. Na reportagem, valendo-se dos dados da Organização Mundial da Saúde, informa-se que cerca de 8 milhões de brasileiros têm problemas de infertilidade, enquanto no mundo estima-se que de 50 a 80 milhões de pessoas possam ter tal dificuldade.
Ainda, a reportagem aponta que 83 mil bebês já nasceram no país por meio de procedimento de reprodução assistida; e que dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária informam que, somente no ano de 2019, mais de 99 mil embriões foram congelados.
A maioria destes procedimentos são realizados pela iniciativa privada, tendo em vista que apenas sete unidades realizam os procedimentos no âmbito do Sistema Único de Saúde.
Se números impressionam pela abrangência da população atingida, causa perplexidade a inexistência de Lei específica para regular as complexas questões atinentes à reprodução humana assistida.
No âmbito infraconstitucional, algumas Leis tratam, ainda que de forma oblíqua superficial, da questão.
A Lei do Planejamento Familiar, 9.263/96, dispõe que (grifo nosso):
Art. 1º O planejamento familiar é direito de todo cidadão, observado o disposto nesta lei.
Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.
Parágrafo único - É proibida a utilização das ações a que se refere o caput para qualquer tipo de controle demográfico.
Art. 3º O planejamento familiar é parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde.
Parágrafo único - As instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde, em todos os seus níveis, na prestação das ações previstas no caput, obrigam-se a garantir, em toda a sua rede de serviços, no que respeita a atenção à mulher, ao homem ou ao casal, programa de atenção integral à saúde, em todos os seus ciclos vitais, que inclua, como atividades básicas, entre outras:
I - a assistência à concepção e contracepção;
(...)
Art. 9º Para o exercício do direito ao planejamento familiar, serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção.
Parágrafo único. A prescrição a que se refere o caput só poderá ocorrer mediante avaliação e acompanhamento clínico e com informação sobre os seus riscos, vantagens, desvantagens e eficácia.
O Código Civil pátrio trouxe três dispositivos acerca da temática, conforme excerto abaixo transcrito:
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
(...)
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
Em que pese a existência de previsões em normas primárias, ainda que de modo tímido e não exaustivo, as Leis existentes representam um certo avanço, pois a mora dos nossos legisladores, especialmente em questões polêmicas e relativas aos recentes avanços do processo civilizatório, como nos casos de união homoafetiva, impõe a judicialização da saúde e de outros ramos.
Em 15 de junho de 2021, foi publicada a resolução 2.294 do Conselho Federal de Medicina, de 27 de maio de 2021. A norma trata de questões éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, com objetivo de aperfeiçoar práticas aderentes aos princípios éticos e bioéticos que ajudam a trazer maior segurança e eficácia a tratamentos e procedimentos médicos.
Sem sombra de dúvida, a suprarreferida norma tem natureza deontológica, e deve ser seguida por todos os médicos brasileiros.
Contudo, causa estranheza o conteúdo constante de dois dispositivos do Anexo à resolução nº 2294, que estabelecem obrigação de judicialização por parte de pacientes, pessoas que compõe o corpo médico nacional, a saber:
V - CRIOPRESERVAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES
(...)
4. Os embriões criopreservados com três anos ou mais poderão ser descartados se essa for a vontade expressa dos pacientes, mediante autorização judicial.
5. Os embriões criopreservados e abandonados por três anos ou mais poderão ser descartados, mediante autorização judicial.
Na primeira hipótese, há possibilidade descarte de embriões criopreservados, com três anos ou mais, mediante manifestação expressa dos pacientes, acrescida de autorização judicial.
Já na segunda hipótese em comento, há possibilidade descarte de embriões criopreservados e abandonados por três anos ou mais.
Note-se que o referido "abandono" configura um limbo para os profissionais que os preservam e não possuem documentos comprobatórios a expressar a vontade dos pacientes, que não raras vezes abandonam os tratamentos e o contato com os laboratórios e as empresas prestadoras de serviços de reprodução assistida. Nessa última hipótese, não há clareza quanto a quem é dirigido o comando de obter a autorização judicial.
Como é público e notório, o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina, criados pela lei 3.268/57, considerados autarquias, órgãos da administração pública indireta, têm competências normativas e fiscalizatórias, para supervisionar a ética profissional e o exercício da profissão.
Em que pese a possibilidade de produção, atípica, de produção de efeitos externos que possuem alguns atos normativos, salvo melhor juízo, no caso em comento, as resoluções do Conselho Federal e dos Conselhos Regionais de Medicina não podem criar obrigações para particulares que não integrem os seus quadros, tampouco criar hipótese de procedimento judicial, ainda que de jurisdição voluntária.
Não se está aqui a negar o poder normativo dos conselhos, mas há de se ponderar que a estes não é dado o legislar para toda coletividade, sendo certo que sua produção regulatória não tem o condão de contrariar a lei, tampouco criar obrigações, proibições e sanções que Lei não estejam previstas, sob pena de usurpar a função legislativa do Congresso Nacional.
Nesse sentido, mutatis mutandis, não é razoável e proporcional que a resolução normativa infralegal exija, além do consentimento líquido, ou seja, que é livre, informado e esclarecido, a judicialização destes casos, pois vai de encontro a todos os influxos de resolução consensual de demandas que buscam desafogar um Poder Legislativo abarrotado de complexas questões envolvendo a saúde da população, situação exponencialmente agravada pela pandemia da covid-19.
Nesse universo, o Conselho Nacional de Justiça, por meio da resolução 388, de 13 de abril, busca promover o diálogo interinstitucional com os diversos atores do sistema de justiça e do sistema de saúde, de forma a contribuir com ações referentes às demandas de saúde, especialmente quanto à racionalização e à qualificação da judicialização no Brasil, buscando mitigar a litigiosidade oferecendo uma prestação célere por meio da mediação.
Cumpre posicionar que, fruto da evolução biotecnológica, o direito à reprodução humana assistida trata-se de legítimo direito fundamental, com bases constitucionalmente assentadas, notadamente, nas feições do direito à saúde, do direito ao planejamento familiar, do livre acesso à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação, e da dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto, entende-se possível o ajuizamento de Ação de contra Resolução de Conselho Profissional que extrapolou o exercício de competência regulamentar, pois expressa conteúdo normativo que lidou diretamente com direitos e garantias tutelados pela Constituição.
Conforme recente decisão do plenário do STF, corroborando Jurisprudência sedimentada, é possível o manejo de Ação Direta de Inconstitucionalidade contra normativa de Conselho Profissional que exorbite sua atribuição regulatória, a saber (com destaque):
Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. RESOLUÇÃO DO CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. RESTRIÇÃO AO COMÉRCIO E USO DE TESTES PSICOLÓGICOS. CABIMENTO. LIMITAÇÃO DESPROPORCIONAL À LIBERDADE DE ACESSO À INFORMAÇÃO (ART. 5º, XIV, CF) E À LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, CRIAÇÃO, EXPRESSÃO E INFORMAÇÃO (ART. 220, CAPUT, CF). 1. A Jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL admite o uso da ação direta de inconstitucionalidade contra atos normativos infralegais que inovem originariamente no ordenamento, em confronto direto com o texto constitucional. 2. A competência dos Conselhos Profissionais para regulamentar o exercício das respectivas profissões não permite a limitação ao comércio e uso de livros, revistas, apostilas ou qualquer meio editorial pelo qual se veiculem conteúdos relacionados ao exercício profissional. 3. A regulamentação deve recair sobre as situações concretas em que se realiza diagnóstico, orientação ou tratamento, mas não sobre a mera aquisição e leitura de material bibliográfico destinado a subsidiar materialmente a prática de atos privativos de profissional habilitado. 4. A restrição da aquisição de testes psicológicos apenas a psicólogos habilitados, uma vez que não proporciona útil e necessária tutela à saúde pública e ao exercício regular de profissão relacionada à saúde humana, é restrição desproporcional à liberdade de acesso à informação e à livre comunicação social. 5. Ação direta julgada procedente.
(ADI 3481, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 08/03/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-062 DIVULG 05-04-2021 PUBLIC 06-04-2021)
Nesses contornos, entende-se que, nos termos do arts. 102 e 103 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1998, cujo excertos transcreve-se abaixo por oportuno, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Partidos Políticos com representação no Congresso Nacional e Confederação Sindical ou Entidade de Classe de âmbito nacional, entre outros, podem buscar a tutela em face da judicialização importa por mera resolução administrativa.
Art. 102. Compete ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; (Redação dada pela EC 3/93).
(...)
Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: (Redação dada pela EC 45/04) (Vide lei 13.105/15) (Vigência).
I - o Presidente da República;
II - a Mesa do Senado Federal;
III - a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV - a Mesa de Assembléia Legislativa;
IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; (Redação dada pela EC 45/04)
V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; (Redação dada pela EC 45/04)
VI - o Procurador-Geral da República;
VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;
IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Em que pese a respeitosa crítica ora apresentada, de outra mão, há de se reconhecer benvinda a proibição de escolha do sexo e outras medidas que visem eleger características fenotípicas, evitando-se riscos eugênicos e negação da diversidade, limitando-se o uso dos conhecimentos genéticos para prevenção de síndromes e demais más formações, doenças genéticas, em relação médico-paciente permeada por adequações éticas, jurídicas, biológicas e tecnológicas.
Pelo exposto, milita-se pela inconstitucionalidade e antijuridicidade da resolução 2.294 do Conselho Federal de Medicina, tendo em vista que a imposição de judicialização imposta pela Autarquia ensejará aumento desarrazoado de custos, monetários e psicológicos, ao grande número de brasileiros que buscam, graças aos os avanços biotecnológicos, concretizar direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, tanta no Sistema único de Saúde quanto no âmbito da saúde suplementar.
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1- TV Justiça. Repórter Justiça – Reprodução humana assistida, 5/2/2021. Disponível aqui.