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Resolução CGSIM 64/20 e a controvérsia acerca do licenciamento urbanístico integrado

Com o advento da Lei de Liberdade Econômica, em 11 de dezembro de 2020, o comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios, editou a resolução CGSIM 64, nos seguintes termos.

22/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Resumo

O Direito Urbanístico foi abarcado pela Lei de Liberdade Econômica,1 se tratando, pois, de área do direito que dispõe sobre as regras urbanas, destacando-se o direito de construir, instrumentalizado dentre outros, pelo alvará de construção2 e pelo habite-se. A Lei de Liberdade Econômica em seu art. 1º, § 1º aduz que “o disposto nesta lei será observado na aplicação e na interpretação do Direito Civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho” trazendo ínsita em seu bojo a ideia de que são direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, desenvolver atividade econômica de baixo risco3, (...), sem demandar, portanto, do exercício de quaisquer atos públicos para a liberação da atividade econômica.

Diante disso, considerando a construção civil e a sua complexidade, haja vista a interconexão existente entre as mais variadas áreas do conhecimento, os reflexos decorrentes e uma imensa gama de situações específicas, que se espraiam desde a operacionalização, que contempla importantes fases, inclusive, uma das mais importantes, qual seja, a obtenção de licenças para a liberação da atividade, até e principalmente, as responsabilidades civil e criminal que podem decorrer de alguma inobservância à legislação e aos preceitos constitucionais, - causando prejuízos, tanto à sociedade, quanto ao meio ambiente -, classificar a atividade econômica de baixo risco tornou-se um grande desafio ao legislador e à jurisprudência.

2. Resolução, termos e intenções

Com o advento da Lei de Liberdade Econômica, em 11 de dezembro de 2020, o comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios, editou a resolução CGSIM 64, nos seguintes termos preambulares: “versa sobre a classificação de risco no direito urbanístico para os fins do inciso I do caput e inciso II e do § 1º do art. 3º da lei 13.874 de 20 de setembro de 2019, bem como para o inciso I do art. 19 do decreto 10.178, de 18 dezembro de 2019”.4

O Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios – CGSIM, adotou o seguinte discurso

O Brasil quer não só diminuir o tempo total para o licenciamento urbanístico de obras, mas também o número de procedimentos. O que essa resolução faz? • Estabelece a prática mundial de balcão único para o maior tipo de obras licenciadas possíveis. • Diminui ao máximo as situações com discricionaridade excessiva ao agente público, de maneira a preservar a segurança jurídica de seus atos e sua pessoa, e reduzir as oportunidades de corrupção e favorecimento indevido. • Mostra que a utilização de baixo risco a ou trazem benefícios à obra e logo também devem trazer ônus para quem optar por essas opções, evitando abusos. • Uma matriz de risco para os licenciamentos de direito urbanístico no Brasil alinhada aos conceitos da Lei de Liberdade Econômica. O que ela não faz? • Afasta a prerrogativa de fiscalização e embargo a qualquer tempo pelo órgão público competente. • Oneração a administração pública5.

A proposta fundamenta-se no desempenho do Brasil sobre o setor de licenciamento urbanístico, pois, atualmente, o Brasil ocupa a 170ª posição em licenciamento de construção no Índice Doing Business do Banco do Brasil, se considerado o lapso temporal de 338 dias e o número de procedimentos que contabilizam 19.

No lançamento oficial da resolução, a ênfase foi conferida a duas “revoluções” que ocorreriam a partir da implementação da medida. A primeira se pautou na facilidade para o cidadão no licenciamento urbanístico e a segunda na “desestatização” do serviço público6.

Por meio da resolução CGSIM 64/20, buscava-se regulamentar a dispensa de alvará de construção e de habite-se para obras consideradas de baixo risco. A medida - que definiu a classificação de risco para atos públicos de liberação de licenças urbanísticas, conforme estabelecido na Lei de Liberdade Econômica - foi publicada em 12 de dezembro7.

A norma, por ora revogada, dispõe em seu teor, sobre o mercado de procuradores digitais de integração urbanística, o MURIN, para permitir a emissão online de dispensas de alvará e habite-se para obras de baixo risco. A iniciativa se destinou aos que atuam no setor da construção civil, objetivando o fomento da livre concorrência no mercado, sendo que a previsão de emissões apontava o mês de março de 2021. Vale destacar que o MURIN é permitido pela lei 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica).8

A resolução 64/20 tratara da classificação de risco no direito urbanístico, com vistas ao desenvolvimento da atividade econômica de baixo risco, para os fins do inciso I do caput e inciso II e do § 1º do art. 3º da lei 13.874 de 20 de setembro de 2019. Ou seja, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica. O texto indicava valores-padrão, que consideravam como construção de “baixo risco” obras de até 1.750 m², com no máximo três pavimentos.

Com a referida resolução, o empreendedor ou interessado poderia em tese construir ou habilitar sua edificação com dispensa, simplesmente acessando um portal único e integrado denominado de PDI. Através do referido site deveriam ser submetidas todas as informações, dados e documentos, sendo que o portal ainda teria por escopo possibilitar o acesso concomitante da União, Estados e Municípios quanto às requisições. Pelo que se depreende, não restam dúvidas de que a implementação da medida buscou atribuir maior celeridade e transparência, trazendo consigo um grande potencial voltado a desburocratização dos processos, a fim de que houvesse a dispensa dos atos públicos9.

3. Controvérsia acerca da resolução

Diante da edição e publicação da resolução, uma série de controvérsias foram evidenciadas por algumas entidades de classe dos profissionais que regulamentam e fiscalizam os operacionalizadores dos procedimentos administrativos urbanísticos, predominantemente compostas por arquitetos, engenheiros e urbanistas.

O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil e o Conselho Federal de Engenharia e Agronomia, realizaram reunião com o Governo Federal para discutir sobre a resolução CGSIM 64/20 que trata de novas regras para o licenciamento urbanístico, sofrendo a resolução diversas críticas do setor10. Durante a referida reunião, a CAU/BR salientou que seria fundamental a valorização da responsabilidade técnica dos arquitetos e urbanistas, a competência constitucional dos municípios para fazer a regulação urbana e edilícia e a regularização de imóveis já construídos. “Nós temos um passivo muito grande da irregularidade das nossas cidades, e a resolução só tem foco nos novos projetos”.11 Nesse sentido, vale colacionar o trecho infra

É urgente que o Ministério da Economia suspenda a implementação da medida e se disponha a um debate transparente com a sociedade, em especial com os conselhos profissionais que por lei devem zelar pelo ambiente construído do país, como é o caso do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR). Nosso desejo é colaborar, mas na circunstância atual só nos resta indicar os erros cometidos”, trecho da carta endereçada ao ministro Paulo Guedes, em 28 de dezembro de 2020, pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR)12.

Em manifestação, o CAU/RJ aduziu que se torna necessário reafirmar que o licenciamento urbanístico deve estar a serviço do planejamento urbano e aos interesses coletivos. “O que é urgente para garantir sua eficiência é reforçar as estruturas municipais de licenciamento, com equipamentos, profissionais qualificados e condições adequadas para realização dos serviços”.

Além disso, depreende-se ainda da manifestação do CAU/RJ que a eficiência do licenciamento não está na agilidade dos processos em si, mas na garantia da implementação das diretrizes do planejamento urbano e da observação, pelas novas construções, dos critérios urbanísticos definidos na legislação municipal. Essa compreensão não se opõe à ideia de que se deva buscar condições para que o licenciamento urbanístico seja mais célere ou à avaliação de que em muitas cidades as legislações urbanísticas mereçam revisões por estarem ultrapassadas, ou até mesmo, serem anacrônicas.13

Muito criticada por entidades de arquitetura e urbanismo, a resolução pretendia submeter o direito urbanístico a uma classificação de risco que, segundo tais entidades, distorcia a ordem constitucional brasileira ao permitir a flexibilização do licenciamento urbano nas cidades, em nome do princípio da liberdade econômica.14

Em nota divulgada em dezembro, a Comissão de Política Urbana do CAU/RJ repudiou veementemente a ideia contida na resolução de que construções classificadas como de “baixo risco” possam ser dispensadas do licenciamento urbanístico prévio e da obtenção do “habite-se”. De acordo com os membros da comissão, “tal medida é de extrema gravidade porque construir nas cidades não é algo que possa ser banalizado. Pressupõe responsabilidades dos proprietários, dos empreendedores, dos profissionais e, inclusive, do próprio poder público”, consoante denota-se documento15.

Por sua vez, em nota conjunta com outras entidades, o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) havia se posicionado contra a resolução CGSIM 64, argumentando que o texto “versa sobre a classificação de risco no direito urbanístico” e impacta diretamente na gestão municipal no que concerne ao licenciamento urbano.16

4. Revogação

Diante da controvérsia instaurada pelas entidades de classe, em resolução publicada no Diário Oficial da União (DOU), o presidente do Comitê de Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e Legalização de Empresas e Negócios (CGSIM), revogou a resolução CGSIM 64, de 11 de dezembro 2020, do Ministério da Economia, em razão da complexidade e abrangência da resolução CGSIM 64/2020, que estabeleceu sistema descentralizado, digital, integrado e declaratório para licenciamentos de obras e edificações de pequeno porte, salientando-se ainda, a manifesta necessidade de adequação da redação, a partir da discussão da redação junto à sociedade e entidades representativas de municípios, estados e conselhos profissionais17.

Revogada a resolução, tem-se por certo que a revisão se dará mediante audiências públicas para consulta e participação coletiva, objetivando o estabelecimento de diálogos com grupos organizados por entidades de classes – como o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR) e Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (CONFEA) -, entidades de municípios e estados, e representantes do setor produtivo, entre outros18.

Por fim, considerando-se a magnitude do Direito Urbanístico que afeta toda a coletividade, tem-se que a despeito da intenção contida na resolução CGSIM 64, lastreada na Lei de Liberdade Econômica, visando, sobretudo, a simplificação e celeridade dos processos de licenciamento e de se mostrar altamente relevante no cenário, especialmente sob a perspectiva do desenvolvimento econômico, não restam dúvidas de que o diálogo com a sociedade se revela indispensável para o aprimoramento e perfectibilização do contido em seu texto, a fim de que se encontre a justa medida e aquela que de fato acolha os interesses de todos, sem qualquer prejuízo a imensa gama dos direitos envolvidos no processo.

_________

1 Brasil. Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica; estabelece garantias de livre mercado; altera as Leis nos 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), 6.404, de 15 de dezembro de 1976, 11.598, de 3 de dezembro de 2007, 12.682, de 9 de julho de 2012, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 10.522, de 19 de julho de 2002, 8.934, de 18 de novembro 1994, o Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946 e a Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943; revoga a Lei Delegada nº 4, de 26 de setembro de 1962, a Lei nº 11.887, de 24 de dezembro de 2008, e dispositivos do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966; e dá outras providências.

2 Art. 1º, § 6º da LLE Consideram-se atos públicos de liberação a licença, (...), o alvará, (...), o registro e os demais (...), como condição para o exercício de atividade econômica, inclusive (...), a construção, (...), o funcionamento, o uso, o exercício (...), de (...) estabelecimento, (...) instalação, (...), edificação e outros.

3 Resolução nº 51, de 11 de junho de 2019. Versa sobre a definição de baixo risco para os fins da Medida Provisória nº 881, de 30 de abril de 2019.

Art. 9º A Resolução nº 29, de 29 de novembro de 2012, passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 1º

III - Atividade econômica de médio risco ou "baixo risco B": atividade cujo exercício não apresente o grau de risco da atividade econômica de alto risco, que implique no licenciamento por meio de fornecimento de informações e declarações pelo interessado, a fim de permitir o reconhecimento formal do atendimento aos requisitos de prevenção contra incêndios e pânico, por parte dos Corpos de Bombeiros Militares;

III-A - Atividade econômica de baixo risco ou "baixo risco A": atividade que dispensa qualquer licenciamento, conforme definição em Resolução específica."

4 O inciso I do caput e inciso II e do § 1º do art. 3º da Lei nº 13.874 de 20 de setembro de 2019, dispõe os seguintes termos:

Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:

(...)

I - desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica;

II - desenvolver atividade econômica em qualquer horário ou dia da semana, inclusive feriados, sem que para isso esteja sujeita a cobranças ou encargos adicionais, observadas:

a) as normas de proteção ao meio ambiente, incluídas as de repressão à poluição sonora e à perturbação do sossego público;

b) as restrições advindas de contrato, de regulamento condominial ou de outro negócio jurídico, bem como as decorrentes das normas de direito real, incluídas as de direito de vizinhança; e

c) a legislação trabalhista;

(...)

§ 1º Para fins do disposto no inciso I do caput deste artigo:

I - ato do Poder Executivo federal disporá sobre a classificação de atividades de baixo risco a ser observada na ausência de legislação estadual, distrital ou municipal específica;

II - na hipótese de ausência de ato do Poder Executivo federal de que trata o inciso I deste parágrafo, será aplicada resolução do Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (CGSIM), independentemente da aderência do ente federativo à Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim); e

III - na hipótese de existência de legislação estadual, distrital ou municipal sobre a classificação de atividades de baixo risco, o ente federativo que editar ou tiver editado norma específica encaminhará notificação ao Ministério da Economia sobre a edição de sua norma.

5 Brasil. Licenciamento Urbanístico Integrado. Acesso em: 18 abr. 2021.

6 CAU/BR. Confira a manifestação do CAU/BR sobre a Resolução CGSIM nº 64 do Ministério da Economia. Disponível clicando aqui Acesso em: 18 abr. 2021.

7 CNM - Confederação Nacional de Municípios | Comunicação Disponível clicando aqui. Acesso em: 18 abr. 2021.

8 CPA. CGSIM - Resolução facilita a dispensa de licenciamentos de alvará de construção e habite-se para obras e edificações consideradas de baixo risco. Disponível clicando aqui Acesso em: 18 abr. 2021.

9 CNM - Confederação Nacional de Municípios | Comunicação Disponível em: clicando aqui. Acesso em: 18 abr. 2021.

10 C3. Governo discute a Resolução CGSIM 64/2020. Disponível clicando aqui Acesso em: 18 abr. 2021.

11 C3. Governo discute a Resolução CGSIM 64/2020. Disponível clicando aqui Acesso em: 18 abr. 2021

12 Revista Projeto. Ministério da Economia revisará Resolução CGSIM nº 64/2020 com arquitetos e engenheiros. Disponível clicando aqui Acesso em: 18 abr. 2021.

13 C3. Governo discute a Resolução CGSIM 64/2020. Disponível clicando aqui  Acesso em: 18 abr. 2021.

14 CAU/RJ. Governo Federal revoga Resolução CGSIM nº 64. Disponível clicando aqui  Acesso em: 18 abr. 2021.

15 CAU/RJ. Governo Federal revoga Resolução CGSIM nº 64. Disponível clicando aqui Acesso em: 18 abr. 2021.

16 IBDU. Nota técnica contra a Resolução CGSIM n. 64, de dezembro de 2020. Disponível clicando aqui Acesso em: 18 abr. 2021.

17 Resolução CGSIM nº 1, de 3 de março de 2021. Revoga a Resolução CGSIM nº 64, de 11 de dezembro de 2020. clicando aqui  Acesso em: 18 abr. 2021.

18 Revista Projeto. Ministério da Economia revisará Resolução CGSIM nº 64/2020 com arquitetos e engenheiros. Disponível clicando aqui Acesso em: 18 abr. 2021.

Debora Cristina de Castro da Rocha
Advogada fundadora do escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia, especializado nas áreas do Direito Imobiliário e Urbanístico, Mestre em Direito Empresarial e Cidadania e Professora.

Edilson Santos da Rocha
Sócio Administrador do escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia - Especializado em Direito Imobiliário e Sócio Administrador na Empresa Domínio Legal Soluções Imobiliárias

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