A pandemia da covid-19 gerou notória crise sanitária, social e econômica para todo o país. E se esse panorama se deu para a sociedade e, portanto, para indivíduos dotados de liberdade, o quadro pode agravar-se quando se analisa aqueles que já foram privados dessa liberdade.
Michel Foucalt, em “Vigiar e Punir” aponta que a prisão, peça essencial no conjunto das punições, marca um momento importante na história da justiça penal: seu acesso à “humanidade”. Depois de décadas de penas físicas, entende-se que a prisão é a pena por excelência numa sociedade em que a liberdade é um bem que pertence a todos da mesma maneira e ao qual cada um está ligado por um sentimento “universal e constante”. Sua perda teria, portanto, o mesmo preço para todos, seria o castigo “igualitário”.¹
Na prática, o projeto de “humanidade” tem demonstrado que fracassou. Sem entrar no mérito de a quem interessa esse fracasso, o fato é que o sistema prisional possui condições precárias de acesso à saúde. Não à toa que no julgamento da ADPF 347, o Superior Tribunal Federal reconheceu o sistema penitenciário brasileiro como Estado de Coisas Inconstitucional.
Feitas essas breves considerações, há que se ter em mente que vivemos em uma sociedade patriarcal, machista e racista. Sendo assim, a violência e negação aos direitos fundamentais inicia-se em uma história que colocou mulheres em lugares marginalizados, especialmente as mulheres negras. Como consequência, essas opressões são ainda maiores para mulheres que estão encarceradas.
Segundo Sintia Soares Helpes, essa situação não é de agora e vem desde o nascimento das prisões no Brasil, quando as mulheres eram acomodadas conforme as possibilidades. O Estado não planejava nem investia em ambientes de acordo com as especificidades das mulheres, muito menos em políticas de inclusão ao final da pena.²
A situação, infelizmente, não sofreu grandes alterações. Os dados do INFOPEN apresentados em 2017 revelam uma tendência à precarização de acesso à serviços de atenção básica dentro das unidades prisionais, visto que aproximadamente 1/4 das mulheres presas no Brasil estão em unidades sem módulos de saúde, como analisou o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania.³
A verdade é que não há análise interseccional sobre as realidades e consequentes necessidades básicas das prisioneiras, o que acarreta persistente violação de direitos humanos, que não dá sinais de que será solucionada.
A esse cenário é somada uma pandemia, que já matou mais de 350 mil pessoas apenas no Brasil. Nesse contexto, segundo o documento “Gênero e covid-19 na América Latina e no Caribe: Dimensões de Gênero na resposta”4, publicado pela ONU Mulheres no dia 20 de março de 2020, as mulheres são as mais afetadas em diversos aspectos, especialmente pelo fato de serem a maioria entre trabalhadores informais e domésticas, os mais prejudicados no que tange à redução da atividade econômica. Como resposta, o documento sugere que os Estados devem garantir a disponibilidade de dados desagregados por sexo e análise de gênero, incluindo taxas diferenciadas de infecção, impactos diferenciados da carga econômica e de assistência, barreiras de acesso das mulheres e incidência de violência doméstica e sexual.
Mas se isso não é analisado em sociedade, tampouco ocorre dentro do cárcere. As pesquisas que indicam a quantidade de infectados e óbitos nas penitenciárias do país sequer levam em consideração questões de gênero, fornecendo apenas dados totais, o que mais uma vez dificulta análise precisa sobre as necessidades das mulheres encarceradas.
Mas até mesmo as medidas impostas para evitar a proliferação do vírus têm maior impacto sobre as mulheres, já que foram suspensas as visitas dos filhos, por exemplo. Vale destacar que o ambiente prisional já é, por si só, extremamente solitário para as mulheres. Drauzio Varella, em sua experiência como médico voluntário na Penitenciária Feminina da Capital, constatou que o homem, enquanto preso, conta com a visita de uma mulher, seja a mãe, esposa, namorada, prima ou a vizinha, esteja ele num presídio de São Paulo ou a centenas de quilômetros, mas a mulher é esquecida.5 O médico alerta que isolar a mulher na cadeia por anos consecutivos causa distúrbios de comportamento, transtornos psiquiátricos e dificulta a ressocialização. Ou seja, a pandemia trouxe à mulher uma intensificação do isolamento no qual já se encontrava. Resta privada não só de sua liberdade, mas de qualquer contato social, da maternidade e da saúde.
Para tanto, é urgente que haja uma adequação nas medidas de proteção, sendo consideradas inclusive a colocação de presas que são mães em liberdade, a fim de que não se agrave ainda mais um isolamento que gera problemas de saúde física e mental, irreversíveis a longo prazo. Que fique claro que por mais grave e abominável que tenha sido o crime cometido, a pena é privativa de liberdade, mas não é privativa do direito à saúde ou dos vínculos afetivos, devendo sempre ser ponderada a razoabilidade na aplicação das medidas. O Estado tem a prerrogativa de punir, mas a ele não pode ser dada a liberdade de desumanizar e abrir espaço para que mulheres fiquem cada vez mais excluídas socialmente, o que vai em sentido contrário à função e objetivos da pena.
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1. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987. Página 90.
2. HELPES, Sintia Soares. Mulheres na prisão: Uma reflexão sobre a relação do Estado brasileiro com a criminalidade feminina. Women in the prison: a reflection on the relation of the Brazilian State with female crime. Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v.2, 3, p. 160-185, jan-jul/2013.
3. Disponível aqui. Acesso em 13 de novembro de 2020.
4. Disponível aqui. Acesso em 02 de dezembro de 2020.
5. VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. 1ª Ed. Companhia das Letras, 2017. P. 38