Migalhas de Peso

As astreintes, a decisão da Corte Especial do STJ no EAREsp 650.536/RJ e os riscos à efetividade da tutela jurisdicional

Ainda que se entenda que valor da multa pode ser revisto, reduzido ou majorado a qualquer tempo, deve haver uma limitação concreta com vistas a evitar a revisão “ad eternum” da questão, o que, além de fortalecer a contumácia do devedor, gera no credor sentimento de descrença em relação à efetividade da tutela jurisdicional.

16/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

As autoras, em publicação no Migalhas na data de 12/8/20, festejaram duas acertadíssimas decisões do Superior Tribunal de Justiça que demonstraram grande atenção às finalidades das astreintes, bem como aos bons parâmetros da sua fixação. E ainda comentaram: “resta acompanhar o comportamento do devedor diante das multas fixadas e a recepção do novo entendimento pelos Tribunais Estaduais”.¹

Naquela ocasião, registraram que o STJ havia recentemente proferido decisões que confirmaram multa coercitiva no valor de R$ 3.100.000,00 em ação cuja condenação perfazia R$ 20.000,00. Os acórdãos foram proferidos nos Recursos Especiais 1.840.693/SC e 1.819.069/SC. As decisões causaram impacto considerando-se os valores da condenação da obrigação principal e os da multa cominatória. No entanto, a análise do caso concreto demonstrou que a manutenção da multa em patamares tão elevados tinha sido corretíssima, diante dos aspectos que envolveram a desobediência da ordem judicial.

Salta aos olhos decisão do STJ em julgamento realizado em 7/3/21 pela Corte Especial nos Embargos de Divergência do AREsp 650.536/RJ ², que por maioria de votos concluiu: “É possível que o magistrado, a qualquer tempo, e mesmo de ofício, revise o valor desproporcional das astreintes”, sem, no entanto, considerar a gravíssima desobediência e a recalcitrância do devedor.

A decisão fez menção à tese firmada no Tema 706, em julgamento do Recurso Especial 1.333.988/SP, realizado pela Segunda Seção, sob a sistemática dos recursos repetitivos, que fixou o entendimento de que “a decisão que comina as astreintes não preclui, tampouco faz coisa julgada”. A Corte Especial também entendeu ser devida a redução do valor da multa observando-se os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade com o valor da obrigação principal para se evitar o enriquecimento imotivado da parte credora.

No entanto a Corte Especial não observou que no julgamento da Quarta Turma do STJ do AgInt no AgInt no EAREsp 650536/RJ, decisão em face da qual foi interposto o EAREsp 650.536/RJ em voga, o voto vencedor do Ministro Marco Buzzi já havia salientado que, em que pese haja o entendimento do Tema 706, o caso concreto possui peculiaridades que inviabilizam “a modificação ad eternum da quantia estipulada a título de astreintes”.

Quanto ao caso concreto, trata-se de ação de obrigação de fazer pela qual a seguradora foi condenada ao pagamento de reembolso das despesas decorrentes de tratamento fisioterápico do segundo autor, portador de paralisia cerebral infantil, sendo condenada ainda ao pagamento de indenização por dano moral. Na mesma decisão foi confirmada a tutela antecipada concedida para fins de determinar o imediato reembolso das despesas, sob pena de multa diária de R$1.000,00.

Transitada em julgado a decisão de mérito, que confirmou a tutela antecipada e a fixação das astreintes, e iniciado o cumprimento de sentença definitivo, a seguradora impugnou os cálculos acerca do valor da multa, impugnação essa julgada procedente pelo juízo de primeiro grau, que acabou por excluir a multa. Os autores/exequentes, então, interpuseram Agravo de Instrumento, que foi provido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para reafirmar o cabimento das astreintes, reduzindo-a, contudo, para R$ 500,00 ao dia de atraso, decisão essa que foi mantida pelo Superior Tribunal de Justiça.

Apresentados novos cálculos no mesmo cumprimento de sentença, a seguradora novamente impugnou os cálculos, porém, intimada para realizar o pagamento no valor de R$ 753.906,22, a seguradora fez o depósito pugnando tratar-se de “caução”. Os exequentes, então, requereram o levantamento do valor, ocasião na qual o juízo de primeira instância reduziu o valor global da multa para R$ 100.000,00. Ato contínuo, os exequentes agravaram da decisão e o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ³, em entendimento posteriormente reafirmado pela maioria da Quarta Turma do STJ, decidiu pela inviabilidade da modificação ad eternum da quantia estipulada a título de astreintes, já que houve uma nova impugnação logo após o caso ter sido julgado pelo Tribunal Estadual e pela Corte Superior.

Foi quando então sobreveio a decisão da Corte Especial, no EAREsp 650.536/RJ, adotando preponderantemente os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade sem atenção ao longo período de descumprimento injustificado, que apenas privilegia a recalcitrância do devedor e age em completo descaso com o processo e com o próprio Poder Judiciário.

Motivo maior de preocupação é a possibilidade de revisão ilimitada do valor da multa, já decidida pelo Tribunal Estadual e Superior Tribunal de Justiça, de modo a tornar-se verdadeira chancela à afronta, pelo devedor, aos princípios da boa-fé processual e da cooperação, previstos nos artigos 5º e 6º do Código de Processo Civil.

No caso em comento, três pontos devem ser observados: i) não houve fato novo; ii) a revisão da multa deve incidir para o futuro, e não para o passado e iii) ainda que não haja coisa julgada material, deve-se reconhecer a impossibilidade da rediscussão judicial da matéria ad eternum.

Segundo o Código de Processo Civil, parágrafo 1º do artigo 537: “O juiz poderá, de ofício ou a requerimento, modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda ou excluí-la, caso verifique que: I - se tornou insuficiente ou excessiva; II - o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o descumprimento”.

Segundo José Miguel Garcia Medina, a intenção legislativa é clara no sentido de não se admitir modificação ou supressão da multa fixada e vencida, referente ao descumprimento já caracterizado, ainda que o valor acumulado da multa tenha se tornado expressivo. Diante de um fato novo, modificador de um contexto fático, poderá o magistrado reduzir ou agravar a multa, adequando-a aos critérios da proporcionalidade, da razoabilidade e da finalidade da medida na hipótese concreta 4.

A Corte Especial invocou a cláusula rebus sic standibus, mas não demonstrou qualquer situação fática e excepcional que teria modificado a relação jurídica de trato continuado. Apenas a alteração do quadro fático da demanda permite nova decisão sobre o valor da multa, cuja decisão terá eficácia apenas sobre o novo contexto da causa 5.

Ainda que as astreintes não façam coisa julgada material e possam ser revistas a qualquer tempo pelo Juiz, inclusive de ofício, deve ser observada a modificação da situação em que foi cominada. Se o único obstáculo ao cumprimento da determinação judicial para a qual havia a incidência da multa diária foi o descaso do devedor, não é possível reduzi-la, especialmente porque as astreintes tem por objetivo, justamente, forçar o devedor renitente a cumprir a obrigação.

A decisão da Corte Especial pretendeu evitar suposto enriquecimento sem causa, no entanto, olvidou que a causa do aumento do valor da multa foi a recalcitrância, a perpetuação da mora por período injustificado, sem que o devedor tivesse adotado medidas com vistas ao cumprimento da obrigação para mitigar o próprio prejuízo. Nesse contexto, a razoabilidade deve ser ponderada de modo a buscar a garantia do cumprimento da obrigação, caso contrário terá sido estabelecido um verdadeiro salvo-conduto para o devedor descumpridor de ordens judiciais.

Ainda que fixada a premissa de que as astreintes não se sujeitam à preclusão ou à coisa julgada, deve-se definir os critérios para a melhor adequação do valor da multa caso ele venha se tornar excessivo ou irrisório, mas deve-se observar que o afastamento indiscriminado da coisa julgada material não pode importar em rediscussão judicial da matéria ad eternum, retirando-se da medida sua força coercitiva, incentivando o descumprimento de decisões judiciais transitadas em julgado.

No artigo anteriormente publicado quanto à fixação da multa coercitiva pelo Superior Tribunal de Justiça, em julgamentos da Terceira e Quarta Turma proferidos no ano de 2020, ressaltou-se expressamente a necessidade de observância dos seguintes parâmetros: (i) o valor da obrigação e importância do bem jurídico tutelado; (ii) o tempo para cumprimento (prazo razoável e periodicidade); (iii) a capacidade econômica e a capacidade de resistência do devedor; (iv) a possibilidade de adoção de outros meios coercitivos pelo magistrado e (v) o dever das partes de mitigar o próprio prejuízo (duty to mitigate the loss). Apenas o valor da obrigação foi observado no caso em análise, o que não se mostra adequado.

Por fim, é bom registrar que já é hora de deixar de afagar o devedor recalcitrante. É hora de buscar a efetividade da tutela jurisdicional, que só se concretiza na entrega do bem da vida. Proteger o credor é medida que se impõe e reflete na garantia da prestação da tutela jurisdicional enquanto proteção e amparo do jurisdicionado, nos termos do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.

__________

1. RIBEIRO, Flávia Pereira; ZAMBROTTA, Fernanda. As astreintes e os recentes parâmetros de fixação do STJ. Migalhas. Disponível aqui. Publicado em 12 ago. 2020.

2. STJ, EAREsp 650.536/RJ, Rel. Min. Raul Araújo, Corte Especial, por maioria, julgado em 07.04.2021. Acordão ainda não disponibilizado.

3. TJRJ, Agravo de Instrumento 0005112-57.2014.8.19.0000, Décima Primeira Câmara Cível, Relator: Des. Cláudio de Mello Tavares, votação unânime, j. 2/7/14.

4. MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil comentado. 6. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 945

5. SPADONI, Joaquim Felipe. Parte Especial. Livro I. Título II. Seção II – Do cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de entregar coisa. In: TUCCI, José Rogério Cruz e; et. al. (org.) Código de processo civil anotado. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2016. p. 792-793

Flávia Pereira Ribeiro
Pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, do CEAPRO e do IASP. Diretora Jurídica da ELENA S/A. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Advocacia.

Fernanda Zambrotta
Advogada pós-graduada em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Pós-graduanda em Direito Público pela Faculdade Legale.

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