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Ativismo judicial ou judicialização de políticas públicas – A descriminalização do aborto pelo STF

As críticas ao ativismo judicial existem em razão do sútil limiar entre a discricionariedade dessas escolhas e a arbitrariedade judicial, com a consequente usurpação da competência dos demais poderes.

31/3/2021

Encontra-se pendente de julgamento no STF a ADPF 442/DF, que irá tratar da possibilidade de interrupção da gravidez no primeiro trimestre gestacional. O processo é de relatoria da Ministra Rosa Weber e, atualmente, já foram realizadas audiências públicas e juntado parecer desfavorável do Ministério Público Federal (FEDERAL, 2020).

De acordo com o Código Penal, é possível realizar aborto em duas hipóteses legais: o aborto necessário ou terapêutico, e o aborto sentimental, humanitário ou ético.

O aborto necessário ou terapêutico, previsto no art. 128, I, do Código Penal, é aquele justificado pelo perigo de morte da gestante no caso de manutenção da gravidez. “Na escolha entre os dois bens jurídicos, a vida da gestante ou a do feto, opta-se pela certeza da vida adulta, afastando-se o que ainda é uma possibilidade, sobrevalorizando-se a vida da gestante em detrimento da do feto” (p. 13) (RAMPAZZO, 2017).

A outra excludente de ilicitude é o aborto sentimental, humanitário ou ético, que ocorre nos casos em que a gestação adveio de violência sexual, prevista no art. 128, II, do Código Penal.  Procura-se, dessa forma, evitar a dor de gerir fruto de uma concepção indesejada, obrigando a mulher a conviver com um filho que a lembrará da violência sofrida.

Ademais, em 2012, o STF julgou procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 54/DF, para permitir a antecipação terapêutica do parto na hipótese de gravidez de feto anencéfalo, devidamente diagnosticado por profissional habilitado, de forma a possibilitar a realização do procedimento voluntário abortivo, sem a prévia autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão do Estado.

Portanto, além das hipóteses legais de excludentes de ilicitude, o Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o disposto nos arts. 124, 126 e 128, I e II, do Código PenalI conforme a Constituição, acresceu ao sistema normativo o aborto de feto anencéfalo.

Agora novamente o STF tem sido chamado a interpretar os artigos 124, 126 e 128 do Código PenalI, a fim de afastar a tipificação dos crimes de aborto consentido nos três primeiros meses de gestação.

O fato é que nenhum dos três dispositivos legais traz previsão de limitação temporal da gestação para tipificação do crime de aborto. Assim, a questão a ser levantada é, caso seja dado provimento à ADPF 442/DF, o Supremo terá agido com uma carga expressiva de ativismo judicial ou apenas pode ser considerada uma hipótese de judicialização de políticas públicas?

Importante conceituar os institutos, pois, apesar de trazerem alguma similaridade por envolverem ato judicial e por afetarem diretamente o princípio da separação dos poderes, se diferem na sua essência.

Segundo o Ministro Luís Roberto Barroso, “Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário” (BARROSO, 2018). Pode-se dizer que a judicialização das políticas públicas decorre da previsão constitucional de garantias sociais, tais como saúde, educação e moradia. Por conseguinte, a omissão dos Poderes Legislativo e Executivo na efetivação desses direitos possibilita a intervenção pelo Poder Judiciário, a fim de implementar individualmente ou até coletivamente os direitos sociais constitucionalmente garantidos.

Ao efetivar os direitos sociais, o Poder Judiciário atinge diretamente escolhas políticas, que deveriam ser realizadas pelos agentes democraticamente eleitos. Por exemplo, ao acolher a pretensão da parte e condenar o Estado no pagamento de medicamento, sob o fundamento de que não teria cumprido o disposto no art. 196 da Constituição FederalII, há uma ingerência direta na política pública de saúde, atingindo o orçamento destinado àquela função estatal e modificando os seus beneficiários.

Sobre a judicialização das políticas públicas, esclarecem os professores Dimitri Dimoulis e Soraya Gasparetto Lunardi:

A transição do modelo liberal para o social na atuação estatal está acompanhada de um deslocamento de competências decisórias entre poderes do Estado. Na medida em que as Constituições garantem direitos sociais e mesmo delineiam políticas públicas, a matéria juridiciza-se, sendo inevitável a judicialização com respectivo aumento das competências judiciais. Com efeito, uma vez que a Constituição limita a discricionariedade do legislador ordinário em questões de direitos sociais, eventual omissão legislativa (ou executiva) permite ao Judiciário censurar a inércia, responsabilizando a autoridade competente. Em alguns ordenamentos pode também suprir deficiências mediante criação de normas faltantes. Isso se verifica, sabidamente, no ordenamento brasileiro, fazendo a criação de normas parte da função do Judiciário, de acordo com o regime de separação de poderes adotado pela Constituição de 1988. (DIMOULIS; LUNARDI, 2016) (p. 246). 

Independentemente das críticas a respeito da judicialização, é fato que a própria constituição trouxe mecanismos para a intervenção do Judiciário nas decisões dos outros poderes – exemplo é o mandado de segurança e as ações coletivas. Especialmente quando a omissão é na edição de leis, impedindo o cidadão auferir o direito social por se tratar de norma constitucional limitada, ou seja, que depende da edição de norma regulamentadora, está prevista na constituição a possibilidade de ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade por omissão e do mandado de injunção.

Por outro lado, o ativismo está ligado à discricionariedade do magistrado ao proferir sua decisão, às escolhas dos critérios interpretativos adotados. As críticas ao ativismo judicial existem em razão do sútil limiar entre a discricionariedade dessas escolhas e a arbitrariedade judicial, com a consequente usurpação da competência dos demais poderes.

Ensinam as professoras Estefânia Maria de Queiroz Barboza e Katya Kozichi, que esse protagonismo do judiciário é desaprovado por parte da doutrina principalmente por duas razões: primeiro, pela falta de competência dos magistrados de elaborar um novo direito, sem terem sido eleitos pelo povo; segundo, pela falta de critérios definidores dos limites dessa função contramajoritária dos juízes (BARBOZA; KOZICHI, 2012) (p. 65).

Alfredo Copetti Neto e Lucas Gabriel Ladeia Cirne, citando Lenio Luiz Streck, lecionam que “a aplicação das sentenças interpretativas em hipóteses incabíveis traz consigo um grau de subjetividade do intérprete que pode representar um atentado à separação de poderes e à legitimidade do Estado Democrático. Diante disso, esses mecanismos devem ser utilizados nos limites da legalidade e da razoabilidade (STRECK, 2018)” (NETO; CIRNE, 2020) (p. 266).

Assim, enquanto o “ativismo judicial vincula-se ao exercício discricionário e ilimitado das funções do Poder Judiciário; a judicialização é caracterizada pela busca dos cidadãos pelo Poder Judiciário, ante a omissão estatal na tutela dos direitos fundamentais” (NETO; CIRNE, 2020) (p. 267).

Em resumo, o ativismo refere-se à conduta dos magistrados no desempenho das suas funções jurisdicionais, já a judicialização está ligada às questões sociais, que, por incapacidade de efetivação por parte dos Poderes Legislativo e Executivo, são levadas ao Judiciário.

Diante disso, é preciso delimitar se a descriminalização judicial do aborto é uma questão de judicialização da política ou de ativismo judicial.

Feitas tais considerações, ao restringir o disposto nos arts. 124 e 126 do Código Penal, percebe-se que o STF não estará efetivando um direito social por omissão do Estado. Nesse diapasão, pode-se excluir a hipótese de judicialização de política pública no caso da descriminalização do aborto.

Afastada a judicialização, resta analisar se o julgamento favorável da ADPF n. 442/DF pelo Supremo se trata de um caso típico de ativismo judicial.

O Supremo Tribunal Federal caso restrinja o alcance do dispositivo penal, a fim de aplicar a sanção apenas àqueles que interromperem a gravidez após o terceiro mês de gestação, estará realizando uma escolha interpretativa do postulado no Código Penal.

Em situação análoga, o STF, ao julgar a ADPF 54/DF, o STF, reconheceu a possibilidade de aborto do feto anencéfalo e, para tanto, realizou uma interpretação do disposto no art. 128 do Código Penal conforme à Constituição, estabelecendo uma nova hipótese de excludente de ilicitude.

Da mesma forma, no julgamento do HC 124.306/RJ, o Ministro Luiz Roberto Barroso concedeu a ordem de ofício para afastar a prisão preventiva dos réus, denunciados nos arts. 124 e 126 do Código Penal, interpretando a norma penal conforme à Constituição, ao entender que não foi recepcionada no caso de interrupção voluntária da gestação ocorrer nos três primeiros meses.

O julgamento da ADPF 442/DF deve seguir, caso julgada procedente, os mesmos parâmetros de raciocínio jurídico realizados na ADPF 54/DF e no HC 124.306/RJ. Em ambos julgamentos há uma escolha interpretativa por parte dos ministros, com alto grau de discricionariedade, marca característica do ativismo judicial.

Portanto, o STF, se julgar procedente a descriminalização do aborto nos três primeiros meses gestacionais, dará um excelente exemplo de ativismo judicial, e afetará indubitavelmente a política pública de saúde adotada pelo Estado.

_________________________

I Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque.

Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante.

Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

II Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

__________________________

BARBOZA, E. M. de Q.; KOZICHI, K. Judicialização da Política e Controle Judicial de Políticas Públicas. Revista Direito GV, São Paulo, , p. 59–86, 2012. .

BARROSO, L. R. Contramajoritário, representativo e iluminista: os papéis das cortes constitucionais nas democracias cntemporâneas. Direito & Práxis, v. 9, n. 4, p. 2171–2228, 2018. Clique aqui.

DIMOULIS, D.; LUNARDI, S. G. Dimensões da constitucionalização das políticas públicas. RDA - Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 273, p. 237–267, 2016. .

FEDERAL, M. P. Parecer do Ministério Público Federal na ADPF 442. [S. l.: s. n.], 2020. Available at: clique aqui.

NETO, A. C.; CIRNE, L. Ga. L. As sentença interpretativas e o ativismo judicial: Os limites hermenêuticos necessários à manutenção da legitimidade do Estado Democrático de Direito. Revista Direito em Debate, v. 53, p. 260–272, 2020. .

RAMPAZZO, A. A (in) Constitucionalidade da Interrupção Voluntária da Gravidez no Brasil: Um Estudo de Direito Comparado. R. EMERJ, v. 20, p. 9–38, 2017.

Juliana Christofidis
Analista judiciário na Superior Tribunal de Justiça.

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