Como novidade do milênio, foi criada através da lei 9961/2.000 a Agência Nacional de Saúde – ANS, com objetivo muito nobre, a se verificar da redação original do seu art. 3º: "promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde (...) contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no país".
Infelizmente, as boas novas e sua romântica redação ficaram apenas no papel, já que desde então, o que se vê, na prática, é que a Agência, criada com a promessa de um atento olhar em prol do consumidor, passou a funcionar como a principal aliada de grandes conglomerados financeiros que têm na saúde suplementar sua principal (senão única) fonte de receita e lucro.
As provas disso se acumulam: graças a ANS, temos anualmente índices de reajustamento de mensalidades muito acima da inflação, ilustrando manchetes dos principais periódicos do país: "Plano de saúde sobe quatro vezes mais que a inflação em 2020"1.
Graças a Agência, temos um defasado Rol de Procedimentos de cobertura mínima obrigatória pelas operadoras de saúde, forçando o consumidor a ingressar no judiciário a fim de garantir seu direito de acesso à saúde.
Por sua vez, no ambiente forense, a exemplo do Tribunal de Justiça de São Paulo, a temática já levou a edição de súmula (102) que garante que "havendo expressa indicação médica, é abusiva negativa de cobertura de custeio de tratamento(...) por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS", de tão antigo e ultrapassado.
Não suficiente, agora a novidade é que a Agência, que tem (ou deveria ter) por finalidade regular, normatizar, controlar e fiscalizar as atividades que garantam a assistência suplementar à saúde, agora se lança a uma nova, perigosa e inconstitucional jornada: a de legislar.
Para entender a movimentação da Agência, basta verificar que por previsão expressa de sua lei de criação2 (art. 4º, III, lei 9961/2000), o Rol da ANS configura apenas como "referência básica" de cobertura para as operadoras, rotuladas pela própria autarquia como "cobertura mínima", terminologia até hoje presente em seu site no campo "Cheque aqui se um determinado procedimento faz parte da cobertura mínima que seu plano de saúde é obrigado a cobrir3".
No bom português, se o rol é o mínimo, as operadoras poderiam ser instadas a coberturas que escapassem desta listagem. Para mudar tal referência básica imposta ao rol por opção do legislador, por óbvio haveria a necessidade de alteração legislativa, revelada pela apresentação formal de projeto de lei e o seu devido trâmite no Congresso Nacional.
Mas a Agência preferiu o caminho mais fácil, e tudo em um ambiente muito bem preparado: após 3 (três) anos de absoluto vácuo regulatório, no momento em que decide atualizar4 o Rol de Procedimentos e eventos de Saúde, que incluí novos procedimentos e medicamentos na lista da Agência Nacional de Saúde, acrescentou ainda, de forma tenaz e inédita: que o Rol, que por lei é apenas uma referência mínima e básica de cobertura, agora seria taxativo/exaustivo.
Isso significa que para a ANS, se o tratamento ou medicamento não estiver no rol, as operadoras de saúde não terão que cobrir, e ponto final.
A nota da própria Agência para a imprensa5 indica a repentina mudança pretendida: "Segundo a agência, "a troca do uso da expressão "cobertura mínima" para a redação "... considera-se exaustivo o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde..." tem o objetivo de trazer para a resolução normativa da ANS o entendimento adotado no ano passado pela 4ª turma do STJ."
Notem que a ausência de alteração legislativa é justificada pela ANS em suposto cumprimento a uma decisão da 4ª turma do STJ nos autos do REsp 1.733.013/PR6, em que o ministro relator Luis Salomão concluiu o que o Rol da ANS seria taxativo. Para o Ministro, "é inviável o entendimento de que o rol é meramente exemplificativo e de que a cobertura mínima, paradoxalmente, não tem limitações definidas".
Mas a autarquia nada fala sobre o fato de a 3ª turma7 do mesmo STJ ter entendimento diametralmente oposto, indicando, mesmo após o precedente da 4ª Turma, que a referência do Rol da ANS continua sendo exemplificativa, não esgotando ao consumidor, portanto, a possibilidade de acesso a tratamentos e medicamentos que não constassem do rol.
"nos termos da jurisprudência pacífica desta Turma, o rol de procedimentos mínimos da ANS é meramente exemplificativo (...) Existência de precedente recente da QUARTA TURMA no sentido de que seria legítima a recusa de cobertura com base no rol de procedimentos mínimos da ANS. Reafirmação da jurisprudência desta TURMA no sentido do caráter exemplificativo do referido rol de procedimentos."
A situação é duplamente grave: ao mesmo tempo em que a Agência se auto intitula capaz de promover uma ilegal alteração legislativa, passa a indicar como competência da ANS definir qual corrente jurisprudencial se filiará, como fazem os advogados na busca de seus legítimos direitos diante de uma divergência entre decisões distintas de um mesmo tribunal.
E aí que entra o questionamento não respondido pela Agência: se está a ANS a "advogar" uma tese em detrimento da outra, afinal, quem é seu "cliente"? A quem aproveita o entendimento da taxatividade do rol: aos consumidores ou às operadores de saúde suplementar?
A guerra de bastidores no STJ sobre a taxatividade ou não do Rol da ANS estampa diversos artigos científicos sobre o assunto: "Tribunais desafiam 4ª Turma do STJ e asseguram tratamentos fora do rol da ANS[8]", "Discussão sobre Rol da ANS consolida divergência definitiva entre turmas do STJ9".
Já há movimentação de membros do STJ para julgamento do tema pelo Rito dos Repetitivos para pacificação da controvérsia, até porque segundo o ministro Paulo de Tarso Sanseverino10 "o assunto "Plano de Saúde (6233)" figura no sexto lugar entre os assuntos com maior incidência, sendo, entre 28/2/2015 a 28/2/2020, 36.194 novos processos neste Tribunal sobre as mais diferentes controvérsias surgidas em relações jurídicas entre planos de saúde e seus beneficiários."
O sinal dos tempos demonstra que enquanto persiste a divergência no STJ, a Agência Nacional de Saúde não poderia (como de fato não pode) eleger um dos fundamentos jurídicos para carimbar o Rol da ANS como sendo exaustivo, ainda mais quando tal interpretação gera redução de direitos aos consumidores, na contramão das razões que levaram a sua criação.
Para a pesquisadora Ana Carolina Navarrete11, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), "a agência está divergindo da própria lei que caracteriza o rol como um lista de procedimentos de cobertura mínima." Conclui a pesquisadora:
"Entendemos que neste momento em que o STJ está debruçado sobre esse assunto não cabe à ANS mudar a regra. Cabe ao STJ dizer sobre esse direito e esperamos que o faça em atenção à jurisprudência já consolidada nos estados e na sua 3ª Turma."
Realmente, a redação trazida pela nova resolução da ANS que atualiza o rol de procedimentos e eventos em saúde demonstra vício formal revelado na incompetência da Agência para alterar texto expresso de lei, o que invariavelmente levará à discussão sobre a (in)constitucionalidade da nova resolução. Perdem os pacientes!
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1 Plano de saúde sobe quatro vezes mais que a inflação em 2020.
2 Art. 4º Compete à ANS:
III - elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência básica para os fins do disposto na lei 9.656, de 3 de junho de 1998, e suas excepcionalidades;
3 O que o seu plano de saúde deve cobrir.
4 ANS define novas coberturas dos planos de saúde.
5 ANS diz que planos de saúde são obrigados pagar apenas procedimentos listados no rol. Veja lista.
6 REsp 1.733.013/PR, rel. LUIS SALOMÃO, 4ª TURMA, DJe em 20/2/2020
7 AgInt no REsp 1829583/SP, rel. ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/06/2020, DJe 26/6/2020.
8 Clique aqui.
9 Discussão sobre Rol da ANS consolida divergência definitiva entre turmas do STJ.
10 RE 1.867.027 - RJ (2019/0281709-0)
11 O Globo, 24/2/2021 – "ANS diz que planos de saúde são obrigados a pagar apenas procedimentos listados no rol"