O Fundo de Participação dos Municípios (FPM), de acordo com a Constituição Federal (art. 159, I, b1), é uma transferência constitucional mensal, que a União deve fazer para os Municípios, de 22,5% da arrecadação do Imposto de Renda (IR) e do Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI), acrescidos de 1% nos meses de julho e dezembro de cada ano. Logo, cada Município recebe o montante diretamente proporcional ao desempenho da arrecadação líquida desses impostos no decênio anterior.
O intuito da criação do fundo foi a redução das desigualdades sociais e econômicas entre os Municípios brasileiros. Contudo, nos últimos anos, o FPM se tornou uma das suas principais fontes de recursos financeiros, influenciando diretamente no seu desenvolvimento.
Diante da progressiva queda nos montantes transferidos, foi possível notar um descompasso em relação à arrecadação tributária, uma vez que o percentual dos valores repassados está sendo inferior aos valores arrecadados a título de IR e IPI.
Esse ponto fica evidente ao se observar que a União, ao exercer o dever de arrecadar os referidos impostos e realizar a devida transferência para o fundo, deduz os valores dos incentivos fiscais com arrecadação sem qualquer previsão constitucional.
Ocorre que, por meio da edição de diversas leis ordinárias, a União acabou por diminuir consideravelmente, através da concessão de benefícios e incentivos fiscais dos mais diversos, a base de cálculo a ser considerada para efeito da repartição da receita tributária.
A discussão sobre os valores repassados aos Municípios pelo Fundo de Participação não é uma novidade, tanto que o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou em dois momentos distintos.
O primeiro posicionamento se deu quando do julgamento do RE 705.4232, no qual o Município requerente almejava a possibilidade de acrescer à base de cálculo do FPM valores que deveriam ter sido arrecadados caso não tivessem sido concedidas as isenções ou reduções de alíquota.
O entendimento firmado pelo Supremo partiu da premissa de que as renúncias de receita não estavam compreendidas na expressão "produto da arrecadação" prevista na Constituição, e concluiu que os incentivos fiscais sem arrecadação não deveriam, de fato, compor a base de cálculo do FPM, já que os valores não foram arrecadados.
O segundo e mais significativo posicionamento do STF decorreu no julgamento da ACO 758/SE, em que o Município demonstrou que os incentivos fiscais com arrecadação, que nada se assemelham à isenção/renúncia, são políticas de reengenharia financeira praticadas pela União, vinculando o produto da arrecadação aos programas de fomento dos mais diversos, violando claramente os princípios constitucionais relacionados à distribuição de receitas e à autonomia financeira dos Municípios e Estados.
Como não poderia ser diferente, o plenário do Supremo decidiu que a atual sistemática adotada pela União para esse caso é inconstitucional, não podendo o ente maior deduzir despesas de incentivos fiscais concedidos por lei infraconstitucional, a fim de apurar o montante do FPE devido aos Estados, e, por conseguinte, do FPM inerente aos Municípios.
Convém ressaltar que esse segundo entendimento não trata de discussão a respeito da possibilidade de a União poder ou não conceder incentivos fiscais, benefícios, isenções, ou até perdoar dívidas. Tal debate já tem posicionamento sedimentado no sentido afirmativo. O que se enfrentou foi a impossibilidade de a União vincular verbas do qual não é a destinatária.
Sob esta ótica, e no que tange ao corpo deste artigo que busca analisar esse segundo posicionamento, bem como seus desdobramentos na doutrina e nos Tribunais pátrios, adere fielmente ao texto constitucional, que é claro ao estabelecer que o repasse é resultado da porcentagem da arrecadação dos impostos mencionados, sem quaisquer deduções.
Nesse sentido passou a se manifestar – acertadamente – o egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª região. A propósito, confira-se recentíssimo julgado:
FINANCEIRO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE RITO ORDINÁRIO. FUNDO DE PARTICIPAÇÃO DOS MUNICÍPIOS – FPM. BASE DE CÁLCULO. INCLUSÃO DAS DESONERAÇÕES FISCAIS SOBRE IR E IPI. PROGRAMAS PIN E PROTERRA. POSSIBILIDADE. DECISÃO DO STF NA ACO 758/SE. PRECEDENTES DO STF. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL (DECRETO 20.910/1932). ATUALIZAÇÃO MONETÁRIA. MANUAL DE CÁLCULOS DA JUSTIÇA FEDERAL. APELAÇÃO DO MUNICÍPIO E SUA REMESSA OFICIAL, TIDA POR INTERPOSTA, PROVIDAS.
1. Tratando-se de matéria atinente a direito financeiro, a prescrição rege-se pelo disposto no decreto 20.910/1932, que estabelece o prazo prescricional quinquenal para qualquer direito ou cobrança contra a União.
2. A participação dos Estados, no que arrecadado pela União, faz-se segundo o figurino constitucional, sendo impróprio subtrair valores destinados aos Programas PIN e PROTERRA (ACO 758/SE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, por maioria, DJ 1º/08/2017).
3. À vista da jurisprudência do STF, como os programas PIN e PROTERRA foram criados por normas infraconstitucionais, não devem ter os seus valores deduzidos dos repasses feitos pela União aos municípios a título do FPM, cujo percentual foi definido por regra constitucional (art. 159, I, b, CF). O mesmo entendimento aplica-se aos demais Fundos em referência nesta ação (FINOR, FINAM, FUNRES e FCEP), pois também foram criados por normas infraconstitucionais.
4. Atualização monetária do indébito nos termos do Manual de Cálculos da Justiça Federal.
5. Apelação do Município e sua remessa oficial, tida por interposta, providas.
(TRF-1 - APC: 1016561-72.2018.4.01.3400, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL MARCOS AUGUSTO DE SOUSA, Data de Julgamento: 14/9/2020, OITAVA TURMA, Data de Publicação: 8/6/2020)
Como reafirmado pelo TRF1, sem que houvesse nenhuma previsão constitucional, a União houve por bem proceder à dedução dos benefícios fiscais, acarretando patente prejuízo a todos os 5.570 municípios do país.
À título de exemplo, o PIN e o PROTERRA são fundos infraconstitucionais criados para promover maior integração de determinadas regiões à economia nacional e viabilizar o acesso do homem à terra com melhores condições de emprego da mão de obra e fomento à agroindústria.
Contudo, conforme já apontado alhures, a dedução dos valores correspondentes a tais contribuições da base de cálculo utilizada pela União para a definição do montante do FPM não faz jus ao disposto na Carta Magna, uma vez que há nítida alteração dos critérios de distribuição de receita sem que tenha sido realizada a devida emenda constitucional nesse sentido.
Importante salientar sobre esse tema que, quando do julgamento da ACO 758/SE, o exmo. ministro Carlos Ayres Britto, em notas taquigráficas, resumiu bem a atuação da União com a criação de incentivos fiscais como "uma espécie de cortesia com o chapéu alheio".
A esse respeito, confira-se lição do r. Sacha Calmon Navarro Coêlho:
"De observar que esta questão da repartição de receitas fiscais ou, noutro giro, das participações das pessoas políticas no produto da arrecadação das outras, não tem absolutamente nenhum nexo com o Direito Tributário. Em verdade são relações intergovernamentais, que de modo algum dizem respeito aos contribuintes. A inclusão da seção ou, por outro lado, do assunto por ela versado, no Capítulo do Sistema Tributário, constitui evidente equívoco."
Na mesma linha, confira-se entendimento exarado pelo r. Kiyosi Harada:
"No imposto de receita partilhada há, necessariamente, mais de um titular, pelo que cabe à entidade contemplada com o poder impositivo restituir e não repassar a parcela pertencente à outra entidade política. O imposto já nasce, por expressa determinação do Texto Magno, com dois titulares no que tange ao produto de sua arrecadação"3.
Logo, levando em consideração a importância do fundo para a manutenção dos municípios brasileiros, os impactos advindos do repasse a menor da referida verba trazem à tona uma discussão que merece apreciação e sedimentação jurisprudencial, bem como sedimentação doutrinária necessária para a devida continuidade dos trabalhos municipais em todo país.
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1 "Art. 159. A União entregará:
I - do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados, 49% (quarenta e nove por cento), na seguinte forma:
...........................................................................................................
b) vinte e dois inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Municípios;
...........................................................................................................
d) um por cento ao Fundo de Participação dos Municípios, que será entregue no primeiro decêndio do mês de dezembro de cada ano;
e) 1% (um por cento) ao Fundo de Participação dos Municípios, que será entregue no primeiro decêndio do mês de julho de cada ano;"
2 RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. CONSTITUCIONAL, TRIBUTÁRIO E FINANCEIRO. FEDERALISMO FISCAL. FUNDO DE PARTICIPAÇÃO DOS MUNICÍPIOS – FPM. TRANSFERÊNCIAS INTERGOVERNAMENTAIS. REPARTIÇÃO DE RECEITAS TRIBUTÁRIAS. COMPETÊNCIA PELA FONTE OU PRODUTO. COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA. AUTONOMIA FINANCEIRA. PRODUTO DA ARRECADAÇÃO. CÁLCULO. DEDUÇÃO OU EXCLUSÃO DAS RENÚNCIAS, INCENTIVOS E ISENÇÕES FISCAIS. IMPOSTO DE RENDA - IR. IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS – IPI. ART. 150, I, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. Não se haure da autonomia financeira dos Municípios direito subjetivo de índole constitucional com aptidão para infirmar o livre exercício da competência tributária da União, inclusive em relação aos incentivos e renúncias fiscais, desde que observados os parâmetros de controle constitucionais, legislativos e jurisprudenciais atinentes à desoneração.
2. A expressão "produto da arrecadação" prevista no art. 158, I, da Constituição da República, não permite interpretação constitucional de modo a incluir na base de cálculo do FPM os benefícios e incentivos fiscais devidamente realizados pela União em relação a tributos federais, à luz do conceito técnico de arrecadação e dos estágios da receita pública. 3. A demanda distingue-se do Tema 42 da sistemática da repercussão geral, cujo recurso-paradigma é RE-RG 572.762, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 18.06.2008, DJe 05.09.2008. Isto porque no julgamento pretérito centrou-se na natureza compulsória ou voluntária das transferências intergovernamentais, ao passo que o cerne do debate neste Tema reside na diferenciação entre participação direta e indireta na arrecadação tributária do Estado Fiscal por parte de ente federativo. Precedentes. Doutrina. 4. Fixação de tese jurídica ao Tema 653 da sistemática da repercussão geral: "É constitucional a concessão regular de incentivos, benefícios e isenções fiscais relativos ao Imposto de Renda e Imposto sobre Produtos Industrializados por parte da União em relação ao Fundo de Participação de Municípios e respectivas quotas devidas às Municipalidades." 5. Recurso extraordinário a que se nega provimento. (STF – RE 705423 SE, Relator: Min. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 23/09/2016, Plenário, Data de Publicação:
DJe-244 25-10-2017)
3 HARADA, Kiyoshi. Vinculação, pelo município, das cotas do ICMS para garantia de operações de créditos efeitos. In Repertório IOB Jurisprudência, nº 3, fevereiro/199, p. 97.