A Lei Imperial de Terras (601/50) e o seu Regulamento (decreto Imperial 1318/54) validaram, confirmaram e garantiram as posses e propriedades privadas que já haviam sido transmitidas, por qualquer título legítimo, para outra pessoa ao tempo do início da vigência da lei (1850). Esse ato legal produziu o efeito prático de legitimar o passado (anterior a 1850) das posses e propriedades no Brasil. Essa foi a regra geral. Duas exceções foram estabelecidas à essa regra geral. Esse sistema de regra e exceção, pouco compreendido, tem significativa influência, ainda hoje, na aplicação do conceito de terras devolutas.
A lei de Terras e o seu Regulamento estabeleceram a seguinte regra geral: legitimaram todas as aquisições de propriedade e posse anteriores à vigência da lei (artigos 22, 23, 25 e 26) com duas exceções apenas: a) a primeira posse que deveria ser legitimada (art. 24); b) a primeira titularidade de sesmaria que deveria ser revalidada (At 27).
A compreensão da ordem sistêmica do decreto Imperial 1318, de 30 de janeiro de 1854, é essencial para que não ocorra confusão e mistura dos dispositivos. A Figura 1 organiza as três regras sobre domínio privado previstas no dito Regulamento.
Os textos normativos contidos nos artigos 22, 23, 25 e 26 não deixam dúvidas sobre o principal critério empregado para definir objetivamente o domínio privado: a regra da aquisição legítima. Essa regra teve o efeito prático de legitimar e pacificar as cadeias sucessórias que ocorreram ao longo do tempo colonial e imperial. O efeito legal foi garantir segurança jurídica a quem já detinha títulos legítimos, ou seja, quem havia adquirido de terceiro determinada posse ou propriedade.
Figura 1. Regras para extremar o domínio privado
As regras de exceção que tratam da legitimação de primeira posse e revalidação de sesmaria de primeira titularidade existentes ao tempo do início da vigência da Lei de Terras foram tratadas nos artigos 24 e 27 do Regulamento, constituindo exceção porque a substancial maioria das posses e propriedades estavam contempladas na regra geral.
Em relação aos casos de primeiro ocupante sem título e posse do segundo ocupante que não foi havida por título legítimo, na data da vigência da lei, o Decreto estabeleceu no artigo 24 o dever de legitimação.
Em relação à propriedade havida por título de sesmaria que não foi objeto de transmissão, ou seja, primeira titularidade, o decreto 1318/54 estabeleceu no artigo 27 o dever de revalidação.
Essa leitura sistêmica foi complementada como dois grupos de normas procedimentais que tinham por finalidade disciplinar as medições (Tabela 1).
Tabela 1. Relação entre norma material e procedimento de medição
TIPO |
DISPOSITIVOS DO REGULAMENTO |
PROCEDIMENTO DE MEDIÇÃO |
Possuidores com justo título |
Artigos 22, 23, 25 e 26 |
Facultativo (artigos 59 a 63) |
Possuidores com primeira posse (legitimação) ou primeira titularidade de sesmaria (revalidação) |
Artigos 24 e 27 |
Obrigatório (artigos 28 a 58) |
Os dispositivos normativos sobre legitimação da primeira posse (art. 24) e revalidação da sesmaria de primeira titularidade (art. 27) ensejaram a aplicação do longo procedimento previstos nos artigos 28 a 58 do referido Decreto Imperial. Nos demais casos, a medição foi estabelecida como faculdade, conforme previsto nos artigos 59 a 63. A Tabela 1 apresenta a ordem sistêmica dos dispositivos, que relaciona a questão material com a procedimental.
Essa estrutura normativa é importante destacar para que não se tente estabelecer a exceção como regra. Procedimentos de legitimação de posse e revalidação de sesmaria eram específicos para as hipóteses previstas nos artigos 24 e 27. Não houve “zeramento” da propriedade privada no Brasil a partir de 1850. O que ocorreu foi a regra oposta: a confirmação geral das sucessões inter vivos e mortis causa processadas em decorrência do curso temporal das cadeias de domínio e posse, inclusive.
O efeito jurídico prático desse sistema de regras legais foi excluir qualquer possibilidade de enquadramento como terras devolutas em imóveis ou áreas que apresentassem em data anterior à vigência da Lei algum ato de transmissão de posse ou propriedade.
A União e os estados em muitas situações interpretam a regra de exceção como regra geral para o fim de enquadrar como terras devolutas todas as terras que não foram legitimadas ou revalidadas. O erro é visível porque transforma o passado fundiário em nada. A Lei promoveu exatamente o contrário: a ratificação geral dos atos do passado.
Para aviventar a memória, alguns atos contemporâneos à Lei podem ser apresentados para explicitar com clareza a estrutura da norma.
O primeiro ato que convém citar é o Aviso 29, de 29 de setembro de 1856, através do qual Sua Majestade o Imperador orienta “que as sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial que estando ainda em poder dos primitivos sesmeiros concessionários, não tem princípio de cultura e morada habitual, quer medidas e demarcadas, quer não, devem ser consideradas devolutas, à vista do art. 27 do citado Regulamento, não assim porém se antes da publicação deste tiverem por título legítimo passado a poder de terceiro, conforme o art. 22 ainda do mesmo Regulamento.”
Nesse ato do Imperador, a declaração direta é a seguinte: não são consideradas devolutas as terras que por título legítimo passaram ao poder de terceiros antes da publicação da Lei de Terras. Essa é a regra geral porque alcançou todas as transmissões já ocorridas. presunção legal é de ratificação e validade das cadeias antigas!
Outro documento interessante é o artigo publicado no Jornal do Comércio1 no dia 7 de fevereiro de 1854, data pouco posterior à vigência do Decreto Imperial, esclarecendo sobre o procedimento de legitimação de terras. Em um dos parágrafos está clara a regra de interpretação que confirma o domínio e posse particular se houvesse transmissão já processada.
“ §4º. Se porém as sesmarias e concessões não tiverem sido medidas em tempo algum, mas tiverem passado dos primeiros sesmeiros e concessionários para os seguintes por qualquer título legítimo, podem os sesmeiros e concessionários quando lhe aprouver, fazer medir e demarcar suas possessões. Entretanto, lhe é garantido o domínio destas em virtude do art. 2º, §2º, da lei e do Regulamento hoje publicado.
§5º. As terras que originariamente entraram no domínio particular somente pela posse, e não estiverem, até a data da publicação do Regulamento, em poder do primeiro ocupante, mas de outrem que as obteve por título legítimo, não são sujeitas a novas condições. Os possuidores de tais terras podem usar e dispor delas como lhes convier. A lei de 1850 e o Regulamento não lhe opõe embraço algum.”
Esse artigo do Jornal do Comércio foi publicado na íntegra em Livro editado no ano de 1860 sobre a lei de terras2.
Em razão das normas relatadas, as propriedades e posses com origem em transmissão por título legítimo foram expressamente confirmadas e validadas por força do decreto Imperial 1318/54, artigos 22, 23 e 26.
A partir da clareza sobre a confirmação do domínio e posse privados, o Império deu início ao trabalho de identificação das terras devolutas, o que ocorreu mediante a execução de duas ações públicas complementares e distintas.
Essas ações complementares foram a seguintes: a) a organização do registro eclesiástico; b) o procedimento de verificação da existência de terras devolutas junto às autoridades locais. Essas ações foram regularmente executadas e muita terra na segunda metade do Século XIX foi vendida e regularizada a partir do procedimento previsto na referida Lei, que não será aqui comentado, por extrapolar a finalidade do texto.
Pode-se afirmar que o enquadramento atual de imóveis como terras devolutas em áreas de colonização secular ou colonial merece ser interpretado como algo incompatível com a cadeia de fatos históricos e atos jurídicos. Essa é a presunção. Se a União ou o Estado assim defendem, cabe-lhe demonstrar razões que evidenciam a ausência de títulos legítimos sobre as áreas.
Essa demonstração inversa é necessária porque os entes públicos utilizam o instituto das terras devolutas de forma abusiva retirando-as do campo do domínio privado para o público, a partir da inversão da regra geral prevista na lei e, sobretudo, pela dificuldade que existe em reconstituir longas cadeias históricas de títulos legítimos.
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2- VASCONCELOS, J. M. P. Livro das Terras ou Collecção da Lei, Regulamentos e ordens expedidas a respeito dessa matéria..., Segunda edição, Rio de Janeiro, 1860, página 399 e seguintes. Disponível aqui.