Migalhas de Peso

Inadmissibilidade do Juizado Especial Cível. Ações que discutem transações em cartão magnético: Mera alegação ou realidade?

Hoje em dia a imensa maioria das ações sobre o tema tramitam perante os Juizados, pelo que importante se mostra a abordagem do tema, sobre o qual este despretensioso artigo pretende discorrer.

22/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Pela boa repercussão de artigo publicado no Migalhas1 em 10/12/20, fomos convencidos a elaborar novo texto vinculado ao tema. Após reflexão, optamos por escolher assunto que efetivamente fosse controverso, especialmente por defender interpretação que diverge da maior parte da jurisprudência.

Decidimos, assim, discorrer sobre as ações em tramitam perante os Juizados Especiais Cíveis e que tratam de operações não reconhecidas pelo titular de cartão magnético com chip full grade, em especial sobre aqueles processos que, na nossa ótica, teriam o julgamento do seu mérito inviabilizado por inadmissibilidade do procedimento em razão da causa de pedir, uma vez que, como sabido, a lei 9.099/95 não possibilita a produção de prova pericial.

De todo modo, necessário esclarecer que inexiste na lei disposição especifica que vede perícia em sede do procedimento da lei. 9.099/95. Contudo, com base nos princípios constantes da própria lei (vide abaixo), bem como com fulcro no enunciado 54 do FONAJE2 e enunciado 24dos Colégios Recursais do Estado de São Paulo, entende-se incabível a sua designação no procedimento, não obstante o STJ já ter se posicionado sobre o assunto, acatando a hipótese de prova, por intermédio da ministra Nancy Andrighi, quando disposto: “Não há dispositivo na lei 9.099/95 que permita inferir que a complexidade da causa e, por conseguinte, a competência do Juizado Especial Cível esteja relacionada à necessidade ou não de perícia4”, no mesmo sentido, orientação do ministro Lázaro Guimarães no RMS. 57.649/SP, julgado em 22/8/18, Dje de 27/8/18.

Muitos são os defensores de que a necessidade de prova pericial não se trata de complexidade apta a contrariar os princípios norteadores da lei, pelo que esta prova, por si só, não afastaria a competência do procedimento, em especial nos casos de baixa complexidade da prova. Todavia, o entendimento uníssono na jurisprudência é embasado na orientação de que o procedimento é destinatário, por força de disposição constitucional, à apreciação exclusiva de causas que se revistam de menor complexidade do ponto de vista fático, pelo que forçoso o reconhecimento da incompetência pela necessidade de perícia, e, assim sendo, a necessidade de extinção seria de rigor.

Imperativo esclarecer, todavia, que para fins da perícia, irrelevante o fato de o cartão estar ou não na posse do cliente, como quando, por exemplo, ocorre no vulgarmente chamado “golpe do motoboy” (engodo pelo qual a vítima entrega de forma espontânea o cartão magnético, fornecendo, ainda, sua senha pessoal e secreta). Em hipóteses como esta, ou seja, quando não mais se tem a posse do plástico, é possível que os trabalhos periciais ocorram no sistema, como, por exemplo, em caixas eletrônicos, terminais de autoatendimento, máquinas de débito etc. Assim sendo, ao contrário do entendimento muitas vezes esposado, a rejeição do pedido, em nossa opinião, não pode se dar sob o argumento de que o cartão não mais está na posse do cliente, concluindo, singela e automaticamente, pela impossibilidade dos trabalhos.

Ainda, este artigo está especialmente embasado na jurisprudência do STJ, TJ/SP, bem como de seus Colégios Recursais, e vem ancorado em BI-Business Intelligence5, sendo que a grande maioria das decisões envolvem processos que estão ou estiveram sob o nosso patrocínio.

Dito isto, para melhor interpretação de toda discussão, necessário relembrar o que reza o artigo 2º da lei 9.099/956, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Neste dispositivo o Legislador arrolou o rol de princípios orientadores/norteadores do procedimento, quais sejam: oralidade, informalidade, simplicidade, economia processual, celeridade e a autocomposição.

Diante desse rol, mais precisamente dos princípios da informalidade, simplicidade, economia processual e celeridade, está o nascedouro das conclusões que levam ao entendimento de que grande parte dos processos que tratam do assunto não estariam aptos a ter o seu mérito julgado perante os Juizados Especiais. Todavia, hoje em dia a imensa maioria das ações sobre o tema tramitam perante os Juizados, pelo que importante se mostra a abordagem do tema, sobre o qual este despretensioso artigo pretende discorrer.

Feita a introdução, o fato é que, como já exposto no artigo de 10/12/20, hoje o entendimento do STJ é no sentido de que havendo a conclusão de que as transações que se impugna partem do cartão original e da senha pessoal/sigilosa do cliente, a prima facie não há que se falar em defeito por parte da instituição financeira, empresa credenciadora (por exemplo, Rede, Cielo, SafraPay, etc) ou da bandeira do cartão de crédito (as duas últimas, muitas vezes responsabilizadas por aplicação do parágrafo único do art. 7 do CDC7), pelo que cabe ao cliente, autor da ação, não obstante a relação de consumo, o ônus de demonstrar o defeito na prestação do serviço por parte da ré, nos moldes daquilo que reza o inciso I do art. 373 do CPC8.

Este entendimento é pacífico tanto na 3ª quanto na 4ª turmas do STJ, ambas afetadas pela matéria no Tribunal da Cidadania, pelo que, a nosso entender, e mesmo inexistindo vinculação acerca da interpretação, ela se mostra uma orientação robusta que, salvo melhor Juízo, exige ser considerada quando dos julgamentos pelas Instâncias inferiores.

No intuito de fundamentar o argumento, menciona importante arresto de 2002, quando eclodiu a interpretação no STJ: REsp 417.835/Al, de relatoria do ministro Aldir Passarinho Junior, conforme ementa:

CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. SAQUE EM CONTA CORRENTE MEDIANTE USO DE CARTÃO MAGNÉTICO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. ÔNUS DA PROVA. EXTENSÃO INDEVIDA. CPC. ART. 333, I.I. Extraída da conta corrente do cliente determinada importância por intermédio de uso de cartão magnético e senha pessoal, basta ao estabelecimento bancário provar tal fato, de modo a demonstrar que não agiu com culpa, incumbindo à autora, em contrapartida, comprovar a negligência, imperícia ou imprudência do réu na entrega do numerário. II. Recurso especial conhecido e provido, para julgar improcedente a ação. (grifo nosso)

Posteriormente, mais precisamente em 2005, o ministro Jorge Scartezzini, membro da 4ª turma do C. STJ, ratificou a interpretação por meio do REsp 601.805/SP. Assim, diversos outros julgados seguiram no mesmo sentido, como: REsp 1.633.785/SP, de relatoria do min. Ricardo Villas Bôas Cueva; REsp 602.680/BA, de relatoria do min. Fernando Gonçalves; AgInt no AREsp 1.063.511/SP, rel. ministro Marco Buzzi e AgInt nos EDcl no REsp 1.612.178/SP, rel. ministro Moura Ribeiro, entre outros.

Como bem ressaltado pelo I. ministro Ricardo Villas Bôas Cueva ao fundamentar o REsp 1.633.785/SP, a interpretação na qual se ancora o entendimento traz entre um dos seus fundamentos as lições de Cavalieri Filho, conforme segue:

(...) Mesmo na responsabilidade objetiva - não será demais repetir - é indispensável o nexo causal. Esta é a regra universal, quase absoluta, só excepcionada nos raros casos em que a responsabilidade é fundada no risco integral, o que não ocorre no dispositivo em exame.

Inexistindo relação de causa e efeito, ocorre a exoneração da responsabilidade. Indaga-se, então: quando o empresário poderá afastar seu dever de indenizar pelo fato do produto ou do serviço? Tal como no Código do Consumidor, a principal causa de exclusão de responsabilidade do empresário seria a inexistência de defeito. Se o produto ou serviço não tem defeito não haverá relação de causalidade entre o dano e a atividade empresarial. O dano terá decorrido de outra causa não imputável ao fornecedor de serviço ou fabricante do produto. Mas se defeito existir, e dele decorrer o dano, não poderá o empresário alegar a imprevisibilidade, nem a inevitabilidade, para se eximir do dever de indenizar. Teremos o chamado fortuito interno, que não afasta a responsabilidade do empresário9. (grifamos)

Desta forma, nossa interpretação é consentânea com a visão de Cavalieri Filho e, por consequência, do C. STJ, concluindo pela não aplicação do verbete constante da súmula 47910 do C. STJ, já que não se trata de fortuito interno, mas sim fortuito externo que, por assim ser, exclui o entendimento sumulado.

Inclusive é este o entendimento acatado por boa parte das Câmaras do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conforme Apel. 1010478-46.2019.8.26.0564, da 23ª Câmara de Direito Privado, relatoria do desembargador Marcos Gozzo, quando dispôs sobre aplicação desta tese, fazendo constar que uma situação de furto de cartão magnético caracteriza fortuito externo e não interno, havendo, por assim ser, rompimento do nexo causal entre a conduta do banco e o dano propriamente dito.

Em outras palavras, o fortuito interno se dá apenas e tão somente quando o fato está amplamente inserido dentro da atividade específica do fornecedor/prestador de serviço que, por assim ser, encontra respaldo dentro do risco da atividade. Todavia, este não é o caso quando o próprio cliente entrega o seu cartão original e sua senha pessoal e secreta ao roubador/estelionatário ou a qualquer outra pessoa, mesmo quando vítima de engodo, isto porque, nestas hipóteses, exclui-se o nexo de causalidade, bem como a responsabilidade objetiva.

Esta é a mesma conclusão da Apelação 100470-47.2019.8.26.0002, relatoria do desembargador Maia da Rocha, membro da 21ª Câmara do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo; além da Apelação 1025362.80.2019.8.26.0564, relatoria do desembargador Henrique Rodriguero Clavisio, membro da 18ª Câmara da corte Bandeirante; entre outros tantos julgados.

Malgrado o entendimento ao qual nos filiamos, o fato é que a interpretação sumulada (S. 479 do STJ) é aplicada de forma generalista, como já defendido em nosso artigo anterior, publicado pelo Migalhas de 10/12/20, pelo que a maioria dos processos são julgados sob a ótica da responsabilidade objetiva ou do risco do negócio, que encontraria amparo na aplicação do caput do artigo 14 do CDC11.

Com todas as venias possíveis, a interpretação não nos parece a mais correta, pois tanto a responsabilidade objetiva, quanto o risco do negócio, convivem em harmonia com as excludentes constantes dos incisos do parágrafo 3°, do art. 14 do CDC12, tratando de institutos autônomos que, uma vez preenchidos seus requisitos, devem ser aplicados, até porque, pensar de forma diferente é tornar sem efeito o intuito do Legislador, que foi claro ao dispor sobre hipóteses de excludentes de responsabilidade do fornecedor/prestador de serviços.

Assim, apesar do CDC imputar toda a carga probatória ao fornecedor/prestador do serviço, também dispõe sobre hipóteses de excludentes, exatamente a situação em discussão e que, em alguns casos, passa desapercebido quando do julgamento de parte das ações. Ou seja, o CDC abraçou a responsabilidade objetiva, o que não quer dizer que ela seja absoluta, tanto que previu a hipótese de excludentes, conforme disposto de maneira cristalina no texto da lei.

Partindo dessas premissas, acreditamos que, tratando de processo em trâmite perante os Juizados Especiais Cíveis, aduzindo o réu que as transações partiram do cartão original, com o uso da senha pessoal, de duas uma:

a) Ou se arroga ao autor o ônus de demonstrar a desídia do réu que, ao contrário do que muitas vezes é defendido não se trata de uma obrigação impossível/prova diabólica, já que plausível sua demonstração a partir de diversas outras questões que envolvem a situação; ou,

b) Havendo preliminar de mérito defendendo a inadmissibilidade do procedimento junto ao Juizado, por não ser possível a realização de perícia para atestar o meio das transações, necessária é a extinção do feito, sem julgamento de mérito, permitindo, assim, à parte Ré, perante a justiça comum, realizar prova apta a demonstrar a origem das operações.

Da mesma forma, e novamente com o máximo respeito aos que divergem, não nos parecem corretas as interpretações admitindo a fraude, ou o argumento de clonagem de cartão e/ou senha, invertendo o ônus da prova, o que só deveria ocorrer nas hipóteses de preenchimento dos requisitos do art. 6, VIII do CDC13, e, ao mesmo tempo, se inviabiliza a realização de prova apta a demonstrar a excludente de responsabilidade, nos moldes daquilo que reza o parágrafo 3° do artigo 14 do CDC, até porque o pleito de extinção vem ancorado em entendimento jurisprudencial do C. STJ.

Acreditamos que o fato de as transações partirem do cartão original, com uso da senha pessoal e secreta, desde que com mínimo embasamento fático, enseja, por si só, falta de preenchimento de verossimilhança nas alegações do autor, o que, por assim ser, inviabiliza a inversão do ônus probatório, nos moldes daquilo que dispõe o art. 6, VIII, do CDC.

Assim sendo, determinar a inversão e impossibilitar a casa bancária/bandeira de exercer seu amplo direito de defesa nos parece que caracteriza cerceamento de defesa. É neste sentido o pensamento do STJ, conforme AREsp 1.475.930/SP, de relatoria do I. min. Marco Buzzi, quando disposto:

A sentença, nesse aspecto, foi mantida pelo TJ/SP, que, embora tenha afastado expressamente a tese de cerceamento de defesa, anotando ser desnecessária a produção de novas provas, não acolheu a tese defensiva do banco, a respeito da culpa exclusiva do consumidor pela realização das operações questionadas, pois não teria havido "prova nesse sentido" (fl. 425). Diante desse contexto, o cerceamento do direito de defesa da instituição financeira restou claro, na medida em que: i) não pôde produzir provas quanto à realização das operações bancárias mediante o uso de cartão com chip e de senha pessoal do correntista - ou seja, por culpa exclusiva do autor; e ii) foi condenada à reparação de danos morais e impedida da cobrança da dívida justamente porque não produziu provas suficientes a respeito da tese defensiva. (grifo nosso)

Nesta linha são inúmeros os julgados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conforme apelação 1008747-73.2019.8.26.0286, de relatoria da desembargadora Ana Catarina Strauch, membra da 37ª Câmara de Direito Privado. No mesmo diapasão, 16ª Câmara, conforme acórdão de relatoria do desembargador Miguel Petroni Neto, Apelação Cível 1025463.76.2018.8.26.0007.

Pensamento contrário fere, a nosso ver, o princípio constitucional do devido processo legal, já que a ele são inerentes o contraditório e a ampla defesa, ensejando, por conclusão lógica, além de desrespeito ao art. 5º e incisos da Constituição Federal, cerceamento de direito de defesa14.

É também nossa conclusão o entendimento de que, uma vez havendo desrespeito ao devido processo legal, possível se observar desrespeito ao princípio da Verdade Real, já que não proporciona ao litígio um desfecho legal e justo, que, sob esta ótica, gera inquestionável prejuízo ao interesse público.

Ou seja, diante do arcabouço da lei 9.099/95, que valoriza princípios como o da economia processual e da celeridade, muitas vezes aquele que se vê acionado por situações semelhantes às tratadas neste texto fica de mãos atadas para o exercício do seu amplo direito de defesa, já que o processo perante os JEC não comporta Recurso Especial, lembrando ainda que, como é sabido, quem escolhe o procedimento é o Autor da ação, mais um agravante na análise do amplo direito de defesa. Todavia, sendo certa ou errada a atual regra recursal do procedimento, ela não vem à discussão, até porque não é o objeto deste artigo. Porém, acreditamos ser necessário que toda a situação, desde o primeiro momento, ainda que em primeiro grau de jurisdição, seja analisada de forma ampla, em especial sob a ótica de princípios constitucionais e do entendimento da jurisprudência, em especial dos tribunais superiores, mesmo que não se discuta situações com matéria vinculante.

Entretanto, naqueles processos em que há o efetivo enfrentamento da questão, mas, mesmo assim, entende-se pela fraude/clonagem para a rejeição da preliminar de mérito, observa-se, na maioria das vezes, as seguintes justificativas:

1) Princípio do livre convencimento do Juiz- estando o Juiz com a conclusão formada, não se abriria espaço para feitura de novas provas;

2) Os meios de transações eletrônicos das financeiras/bandeiras/credenciadoras são fraudáveis/clonáveis, pelo que despicienda prova para algo que se entende “incontroverso”.

Quanto à última interpretação, nos parece ser ela a mais equivocada entre as duas, já que embasada em mera suposição, não proporcionando realização de prova apta a demonstrar o contrário.

Todavia, o mais curioso dos argumentos com os quais nos deparamos ao longo dos anos em que atuamos na área, é aquele de que acolher a preliminar ensejaria esvaziamento do procedimento por meio de apartheid de classes sociais (em especial a classe mais pobre), uma vez que exigiria a contratação de advogado para o exercício de direitos em sede de Justiça Comum. Com o devido respeito, apesar da interpretação demonstrar motivação extremamente louvável, com maior aprofundamento se nota que ela se mostra estopim para outros tantos problemas, os quais infelizmente são uma realidade, como a auto fraude e a advocacia predatória, que no final enseja reflexos ao próprio consumidor, como por exemplo o aumento relevante da taxa de juros ao destinatário final, visto que o risco da operação, sob um ponto de vista macro, é um dos importantes componentes no custo e concessão de crédito.

Não obstante o exposto, e mesmo não sendo o entendimento majoritário, importante realçar que alguns juízes de primeiro grau, desde 2014 vêm acolhendo a preliminar suscitada, podendo citar a Dra. Luciane Retto da Silva, à época titular da Juizado Especial Anexo Unicsul do Foro Regional de São Miguel Paulista/SP, através do processo 0044138-86.2013.8.26.0005 e Dr. Gustavo Sauaia Romero Fernandes, do Juizado Especial Cível de Embu das Artes, processo 0007126-10.2013.8.26.0176.

Desta forma, começaram a brotar entendimentos no mesmo sentido nos Colégios Recursais, como acórdão prolatado no Recurso Inominado 0032958-85.2013.8.26.0001, de Relatoria do Dr. Ademir Modesto de Souza, membro da 1ª turma do Colégio Recursal de Santana/SP, que defendeu que a mera alegação de fraude não é suficiente para amparar a tese de defeito na prestação do serviço, pois inexiste prova efetiva do que se afirma. Ademais, dispõe que mesmo em casos de inversão do ônus da prova, como nas situações em que somente a casa bancária detém o conhecimento tecnológico acerca do cartão, indispensável é a perícia para saber se as operações foram através do cartão original, sob pena de cerceamento de direito de defesa.

Pensa da mesma maneira a 3ª turma do Colégio Recursal da Capital, conforme acórdão de lavra do Dr. Guilherme Silva e Souza, Recurso Inominado 1015660-76.2017.8.26.0016, quando fez constar no bojo do seu voto que:

(...) A simples impugnação do recorrente, em defesa, à tese exposta na inicial torna a questão controversa nos autos, a depender no caso concreto da realização da prova pericial, por perito de confiança do juízo, para os esclarecimentos necessários, bem como eventual acolhimento da pretensão deduzida. Observo que a eleição do rito célere, inviabilizada a prova pericial, deu-se pela recorrida, consumidora, não se justificando a pura e simples inversão do ônus da prova, sob pena de supressão ao direito à ampla defesa da fornecedora, assumidos os riscos da opção. Não cumprido o ônus processual, mesmo porque inviável a prova pericial no procedimento eleito, de rigor a extinção do feito, sem resolução do mérito. (...)

Observamos a mesma interpretação em diversos outros estados da União, conforme recurso inominado 0014357-34.2014.8.16.0014 do 6° Juizado Civel da Comarca de Londrina, bem como no recurso inominado 9616202.28.2016.813.0024, de relatoria da Dra. Maria Cristina de Avellar Cristina, que compõe a turma recursal de Belo Horizonte, esta última que fez constar do seu voto:

(...) Depois de acurada análise, sem embargo dos doutos entendimentos divergentes, na hipótese vertente, objetivando o consumidor a declaração de inexigibilidade da cobrança decorrente de operação que afirma não ter realizado, e sendo tal operação efetuada com a utilização cartão magnético e digitação de senha pessoal, torna-se imprescindível a realização de perícia para confirmar a possibilidade de falha no dispositivo eletrônico do cartão, eventual clonagem ou até mesmo falha no sistema de segurança disponibilizado pelo banco recorrente, além do esclarecimento acerca da plausibilidade do uso de máquina registrada com CNPJ de outro Estado, em se tratando de empresa franquiada. (...)

Contudo, acreditamos que a mais abalizada das interpretações sobre o assunto é aquela observada nos votos do Dr. Tom Alexandre Brandão, membro da 5ª turma do Colégio Recursal da Capital de São Paulo, conforme visto no Recurso Inominado 1014663-59.2018.8.26.0016. Porém, para feitura dessa análise, importante realizar o cotejo amplo do tema sob a ótica do Magistrado, em especial com a análise conjunta de outros recursos, como o Recurso Inominado 1000763-38.2020.8.26.0016, no qual defendido a culpa exclusiva do cliente vítima de troca do cartão por ambulante, bem como que, naquele caso, não seria hipótese de fortuito interno, mais sim externo, que se somaria ao fato das transações estarem dentro do limite contratado entre as partes, pelo que não haveria que se falar em obrigatoriedade de monitoramento de perfil da movimentação por parte do banco. Assim, ao se debruçar sobre o recurso inominado 1014663-59.2018.8.26.0016, em que não fora aduzido a perda da posse do cartão, observa-se que, naquela hipótese, emergiram dúvidas ao magistrado, pelo que acolhida a preliminar de inadmissibilidade do procedimento por impossibilidade de perícia em sede de Juizado Especial Civel. Em outras palavras, na interpretação do Dr. Tom Alexandre Brandão, diante do cenário, havendo dúvida se as transações partiram ou não do cartão original e da senha pessoal, obrigatória a feitura da perícia caso se defenda que as transações partiram desse meio, não podendo, assim sendo, presumir fraude/clonagem com julgamento exclusivo sob a ótica da responsabilidade objetiva/risco do negócio.

Como informado, a tese ora apresentada, apesar de não ser majoritária, é uma visão embasada especialmente sob a ótica constitucional, encontrando, ainda, robusto respaldo no Poder Judiciário. Ou seja, acreditamos que, quanto mais evoluir a discussão, possivelmente novos adeptos deverão ser arrebanhados ao argumento ora defendido, já que pouco crível uma interpretação estática, ainda mais quando se observa que ela descola daquilo que é hoje pacífico no C. Superior Tribunal de Justiça.

Dito isto, retornando ao questionamento constante do título deste artigo: certamente não se trata de mera alegação sem fundamento. Assim, aguardemos os próximos capítulos....

_________

2 A menor complexidade da causa para fixação da competência é aferida pelo objeto da prova e não em face do direito material

3 Perícia é incompatível com o procedimento da lei 9.099/95 e afasta a competência dos juizados especiais cíveis

4 MC 15.465/SC – Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 28/04/09.

5 Ferramenta de tecnologia que proporciona coletar, organizar e analisar rapidamente dados. Permitindo, assim, aplicar o apurado no negócio e melhorar resultados a partir de uma visão estratégica

6 Art. 2º O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação

7 Parágrafo único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo.

8 Art. 373. O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; (...)

9 Programa de responsabilidade civil, 11. ed., São Paulo: Atlas, 2012, págs. 230-231

10 As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias. Data da Publicação – Responsabilidade Civil – DJe 1/8/12

11 Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

12 Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

(...)

§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:

I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;

II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros.”

13 Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

(...)

VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências

(...)”;

14 “Cerceamento de defesa – Ocorre quando a parte é impedida de produzir prova que a ela compete e, depois, tem contra si uma decisão fundamentada justamente nessa falta de prova.” (TRT/RO 5068/80 – 3ª. Reg. – Rel. J. Carlos Jr. -MG 20/1/82, pag. 13)

Lucas de Mello Ribeiro
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Especializado em Direito Contratual e Relações de Consumo e em Gestão Administrativa de Contencioso de Massa pela Fundação Getúlio Vargas. Pós-graduado em Processo Civil pela PUC/SP. Sócio do escritório Silva Mello Advogados Associados

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