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As quotas preferenciais nas sociedades limitadas

Nessa benéfica busca por maior liberdade empresarial, a admissão na ordem jurídica de quotas preferenciais nas sociedades limitadas representa mais uma porta aberta para capitalização das empresas sem recurso.

29/12/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

O Código Civil de 2002, tal como a legislação a ele anterior, não previu, no seu trato das sociedades limitadas, quotas preferenciais.

O então existente órgão registral de sociedades, o Departamento Nacional de Registro de Comercio (DNRC) em 2003, através da instrução normativa 98, vedava tais espécies de quotas nas limitadas.

Mais recentemente, o Departamento de Registro Empresarial e de Integração (DREI), órgão registral que sucedeu aquele, editou a instrução normativa 38/17, admitindo expressamente as quotas preferenciais naquela espécie de sociedade, o que já foi ratificado através da instrução normativa 81/18 do mesmo DREI, tudo na esteira dos princípios mais liberalizantes e de incentivo às atividades empresariais, hoje constantes da chamada lei da liberdade econômica (lei 13.874/19).

De início já podemos encontrar alguma matriz normativa para essa permissão de quotas preferenciais no artigo 1.055 do Código Civil, que prevê a possibilidade de quotas desiguais nas frações de capital das limitadas. Quotas desiguais tanto podem refletir parcelas distintas de capital, desiguais pois no seu valor, como geradoras de direitos diversos perante os resultados da empresa, ou perante a manifestação de voto.

Também já se pode esclarecer que, ao se falar em direitos de preferência para quotas, estaremos falando daquelas especificas preferencias atribuíveis às ações das sociedades anônimas, como contido no artigo 17 da lei das companhias.

São tais preferencias as mesmas já conhecidas: prioridade no recebimento de dividendos fixos ou mínimos; prioridade no reembolso de capital ou a acumulação dessas vantagens todas.

Afinal, estamos aqui copiando termos e condições aplicáveis às sociedades anônimas, e desde que a sociedade limitada tenha em sua estrutura institutos típicos das companhias a ela se aplica a lei 6.404, mesmo que silente o estatuto a respeito, tudo como já constante do enunciado 64 do Conselho da Justiça Federal.

Tal como nas companhias, pode se estipular no estatuto das limitadas a existência de diferentes classes de ações preferenciais, conforme a espécie e a extensão das vantagens a elas concedidas. A uma classe pode ser subtraído o voto ou limitado o mesmo, e a outra não.

Também por certo vale para as limitadas a regra do § 2º do artigo 17 ditando que “com precisão e minucia” eventuais limitações de direitos de voto dos preferencialistas terão que ser no estatuto descritas.

Sendo, pois, também aplicável aqui no campo das limitadas restrições a direito de voto de preferencialistas, vale registrar que também se abre a possibilidade estatutária de se conferir vantagens políticas aos titulares dessas ações, seguindo norma do artigo 18 da lei 6.404, estipulando se o direito de voto em separado para eles na eleição de membros da administração da sociedade. Isso favorece e estimula a criação de ações (e aqui quotas) de “capital investidor”, no que se assegura alguma palavra de preferencialistas na gestão social.

Também copiado pois do sistema das companhias, o parágrafo único daquele artigo 18 supra mencionado cria uma’ “assembleia de preferencialistas”, à qual certas alterações nos estatutos terão que ser obrigatoriamente submetidas, tudo para assegurar que aqui os sócios preferencialistas não tenham suprimidos ou diluídos os seus direitos.

Nos termos da lei das S.A., aqui aplicável às limitadas, é mandatório que as preferencias ou vantagens das preferenciais sejam expressas nos estatutos, o que se mostra obvio, mas é facultado estar ali previsto o resgate ou a amortização das mesmas, tanto quanto a conversão de uma classe em outra, se mais de uma forem criadas, sua conversão em quotas ordinárias, assim como a conversão destas naquelas tudo em condições ali discriminadas.

Parece superado assim o óbice doutrinário a existência de tais quotas nas limitadas, ainda que haja quem sustente faltar ao DREI forca legal para isso. Na verdade, a matriz legal está na própria lei presente das companhias e sua aplicação subsidiaria as limitadas que assim optem nos estatutos, ou que nestes insiram os institutos próprios das companhias. No mais, é o próprio princípio da liberdade econômica, que permeia a lei 13.874/19, sobretudo o disposto no artigo 3º inciso VIII, comportando maior liberdade empresarial para otimizar a função das sociedades comerciais.

Quanto aos coeficientes de votos listados no Código Civil e aplicáveis às deliberações de todas as sociedades limitadas, fica certo de que, para o cálculo de cada “quórum” ali referido, só serão computados os votos dos cotistas que tiverem direito a voto, ou se o tiverem de modo limitado, só os votos que obedecerem a tais limites.

E nada nas preferencias acaso criadas, normalmente prioridade no recebimento de dividendos, sejam fixos ou cumulativos, vai se contrapor aos princípios do Código Civil aplicáveis as limitadas, pois o próprio artigo 1.007 admite participação desproporcional dos cotistas nos lucros e perdas da sociedade.

Registre se que nesse tempo em que escrevemos há um projeto de lei tramitando no congresso nacional que expressamente trata de quotas preferenciais nas limitadas, adotando o critério de permiti-las, mas cingindo seu montante a até 50% do capital social, o mesmo patamar valido para as sociedades anônimas.

É sedimentado no artigo 15 § 2º da lei 6.404 que as ações preferenciais sem voto ou com limitações a esse direito não podem exceder a 50% do capital social, e naturalmente que esse limite, mesmo inexistente norma especifica, se aplica às quotas preferenciais.

O objetivo aí é evitar que, nas deliberações sociais, uma minoria de capital ou detentora de até a metade dele – os únicos votantes, tenham poder de decisão.

Existem até projetos de lei reduzindo tal limite para 25% do capital, o que nos parece exagerado, reduzindo a margem da sociedade na busca de acionistas, ou aqui quotistas, “de renda”, os que buscam remuneração de capital sem participação nas decisões.

Os mesmos critérios selecionados pela lei das companhias no seu artigo 17 parágrafos 4º e 6º sobre a alocação dos dividendos garantidos aos preferencialistas, sejam eles mínimos ou fixos são naturalmente mandatórios para as quotas preferenciais, ressalvando se que tal como ali estatuído os estatutos podem dispor de outras formas de alocação desses dividendos.

Essa instrução normativa 38, modernizando no órgão registral as condições das sociedades limitadas prevê ainda de modo expresso a aquisição de quotas pela própria sociedade, desde que já integralizadas pelo socio, inclusive as preferenciais, tal como acontece no caso das sociedades anônimas – e sua manutenção em tesouraria, desde que tudo seja feito com o uso de saldo de lucros ou reservas existentes no balanço.

Enfim, nessa benéfica busca por maior liberdade empresarial, a admissão na ordem jurídica de quotas preferenciais nas sociedades limitadas representa mais uma porta aberta para capitalização das empresas sem recurso a mútuos que sempre acarretam compromisso com juros e trazem o sempre incomodo endividamento.

João Luiz Coelho da Rocha
Pós-graduado em Direito empresarial pela Fundação Getúlio Vargas, professor de Direito Comercial da PUC-RJ e advogado do escritório Bastos-Tigre, Coelho da Rocha, Lopes e Freitas Advogados.

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