I – Introdução: comunicação jurídica e comunicação normativa
Segundo o Dicionário Houaiss (disponível na internet na página houaiss.uol.com.br, consultado em 10.12.2020) a comunicação corresponde primordialmente à "ação de transmitir uma mensagem e, eventualmente, receber outra mensagem como resposta", mas também, por extensão, à "habilidade de dialogar e se fazer entender" (grifamos).
Desse conceito mais genérico faz parte a comunicação jurídica, que inclui, em princípio, toda transmissão de mensagens com algum conteúdo técnico-jurídico por parte dos que operam com o Direito ou dele fazem uso – o que, para ficar limitado à linguagem escrita (que mais de perto interessa a este estudo), inclui um número considerável de possibilidades, desde um parecer do advogado para o cliente, passando pelas petições endereçadas aos órgãos estatais, as sentenças judiciais, os atos administrativos, os livros e artigos jurídicos publicados nos periódicos especializados e até o trabalho da imprensa quando divulga notícias sobre temas do Direito.
Também se pode dizer que a lei encerra uma inequívoca comunicação normativa, acompanhando a terminologia usada por Tércio Sampaio Ferraz Jr.: "A possibilidade de uma teoria jurídica do Direito enquanto sistema de controle de comportamento nos obriga a reinterpretar a própria noção de sistema jurídico, visto, então, não como conjunto de normas ou conjunto de instituições, mas como um fenômeno de partes em comunicação." O autor, após tratar das alternativas que a norma apresenta ao destinatário, enfatiza que "a norma cumpre a tarefa de determinar quais as decisões, ou seja, quais alternativas decisórias devem ser escolhidas. O objeto do discurso normativo, ou seja, o objeto da situação comunicativa olhado do ângulo do comunicador normativo, não é propriamente o conjunto das alternativas, mas a decisão que, diante delas, deve ser tomada." ("Teoria da Norma Jurídica: um Modelo Pragmático", disponível em terciosampaioferrazjr.com.br/publicações/teoria-da-norma-juridica, consultado em 10.12.2020).
O presente trabalho tem por finalidade apenas trazer à tona dos debates jurídicos um tema que, por certo, não tem vocação para suscitar grandes litígios sobre teses de alta indagação, mas somente algumas ponderações críticas a respeito dessa importante modalidade de comunicação contemplada no texto das leis – a comunicação normativa – e sobre os prejuízos que uma técnica legislativa inutilmente complexa como a nossa pode trazer à compreensão do discurso normativo e à sua inerente finalidade de se fazer entender (que é atributo de qualquer tipo de comunicação).
II – O vocabulário jurídico como ferramenta dos operadores do Direito a serviço da linguagem adotada antes de tudo pela própria escolha do legislador
O jargão jurídico e sua linguagem tradicionalmente formal sempre contribuíram para forjar a imagem um tanto sisuda que com certa frequência é atribuída aos profissionais da área, mas a cautela no uso do vocabulário técnico e a prudência na escolha das palavras passam longe de um discurso propositalmente arrogante ou rebuscado da parte do operador do Direito.
Para além disso, trata-se de um dever de ofício de quem milita nas carreiras jurídicas: o esforço no sentido da precisão de linguagem é, primordialmente, um cuidado do profissional com o uso do vocabulário que na maior parte das vezes é previamente contemplado na lei e que, portanto, foi escolhido e adotado antes de tudo pelo próprio legislador – eis que os juristas e a jurisprudência procuram ser fiéis aos termos técnicos já prestigiados na lei.
No final das contas (e como se verá neste trabalho) boa parte da dificuldade com a interpretação das leis no Brasil parece decorrer muito mais da péssima técnica legislativa e bem menos da linguagem técnica adotada pelo legislador ou pelo operador do Direito. Bem por isso a técnica legislativa é um problema de enorme gravidade na comunicação normativa, que não se corrige com a mera simplificação de vocabulário, e nem mesmo se atenua com as ferramentas tecnológicas hoje disponíveis para a mídia em geral.
III – O comprometimento da interpretação na comunicação normativa em decorrência dos vícios de construção do texto legislativo: o excesso de parágrafos, alíneas, incisos e outras "partículas"
Vale dizer que, mesmo havendo ampla divulgação da norma escrita pelos meios digitais, seu texto ainda assim não atinge a finalidade de ser compreendido com razoável facilidade pelo destinatário, em grande medida por defeitos atinentes à técnica adotada na construção do discurso normativo. Nesse sentido, ao lado de uma "evolução" operada pelos meios digitais na comunicação normativa, tem-se uma acomodação do legislador, satisfeito com sua complexa técnica legislativa – e até uma aparente resignação, por parte dos destinatários da lei, com os defeitos que só vão se acentuando, ao longo do tempo, na construção da norma.
O Diário Oficial, outrora impresso em papel jornal e com pequena circulação (proporcionalmente ao número de pessoas às quais as leis são normalmente dirigidas), hoje já se encontra disponível gratuitamente na internet para quem quer que pretenda ler o periódico e tenha acesso à rede mundial de computadores – mas a despeito da facilidade decorrente do acesso ao texto digitalizado, a forma truncada com que a lei é redigida não proporciona a mínima fluência na leitura, restringindo o alcance da compreensão pelos respectivos destinatários. Até em face dos profissionais mais experimentados do Direito é cada vez mais difícil presumir o "conhecimento" da lei.
Nas faculdades de Direito é tradicional a ênfase no ensino do uso correto do vocabulário jurídico e da comunicação lógica e concisa (em especial no discurso escrito), o que prepara estudantes (em sua maioria com vocação para a advocacia) para o uso racional e preciso das palavras – circunstância que também contribui, afinal, para que se obtenha mais eficácia e rapidez na tramitação dos requerimentos endereçados aos órgãos do Estado e a quaisquer outros destinatários. É de fato louvável (e necessário) esse empenho educacional para que se assegure precisão na linguagem e concisão no texto.
Todavia, é curioso observar que a formação jurídica não contempla muitos esforços pedagógicos no sentido de ensinar algo sobre redação normativa – e menos ainda sobre técnica legislativa. Aliás, mesmo nos órgãos públicos responsáveis pela produção de normas pouco é feito para o aprimoramento da sofrível técnica legislativa que torna nosso ordenamento um emaranhado de dispositivos de difícil compreensão.
Seria desejável, de fato, uma preocupação mínima com a melhoria da técnica usada na construção de textos legislativos, pois a lei é veículo de primeira grandeza na comunicação estatal com o cidadão.
Mesmo que o legislador não tenha obrigação de ser formado em Direito, em algum momento o texto da lei passa pelas mãos de assessores com essa formação para que a redação final possa ser corrigida e até compatibilizada com o restante do ordenamento, e ainda assim pouco é feito para evitar a leitura truncada decorrente do excesso de parágrafos, alíneas, incisos e outras "partículas", além da multiplicidade das confusas referências cruzadas desses mesmos segmentos normativos, dentre outros defeitos que comprometem a fluência da leitura e a compreensão da norma.
Não se pode esperar – é bem verdade – que a lei seja redigida com precisão impecável no uso de termos técnicos e, ao mesmo tempo, possa ser interpretada com facilidade pela maior parte da população, pois com grande frequência até os dispositivos de compreensão aparentemente fácil se tornam protagonistas de muita discussão, exigindo enormes esforços exegéticos dos operadores mais experientes do Direito. O recente e polêmico julgamento da ADIn 6.524 no Supremo Tribunal Federal é exemplo disso, pois parece ter dividido a Corte na interpretação do vocábulo "vedado" contido no art. 57, parágrafo 4º, da Constituição, a propósito da proibição de reeleição para os cargos de Presidente do Senado e Presidente da Câmara.
Em todo caso, como se vê, o problema da dificuldade na comunicação jurídica no Brasil parece estar mais atrelado à técnica legislativa, e menos às tradicionais questões hermenêuticas relacionadas ao uso do vocabulário técnico (que não deixam de ter sua importância nos diferentes contextos da experiência jurídica).
IV – O notório descaso estatal com a técnica legislativa (que sempre pode ser simplificada pelo legislador, ainda que não possa abrir mão do vocabulário técnico) e os desnecessários custos que daí decorrem para a sociedade
A questão aqui apresentada é que, se de um lado não há como abandonar o vocabulário técnico na redação da lei (e temos que conviver com essa dificuldade), de outro lado é claramente possível melhorar a estrutura lógica da norma sem causar traumas relevantes na produção legislativa.
O descaso estatal neste capítulo da comunicação normativa realmente não é justificável, sob qualquer ângulo que se avalie o problema. As normas são redigidas com baixa preocupação no tocante à técnica legislativa, o que não raro se revela até mesmo diante da pressa para que a lei entre logo em vigor.
Nesse sentido, o art. 8º da LC 95/98 (que raramente é observado) dispõe que a lei deve "contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula 'entra em vigor na data de sua publicação' para as leis de pequena repercussão". Mesmo assim, na maior parte dos casos o improviso normativo da vigência imediata vem acompanhado de uma sucessão de normas subsequentes à primeira, em curto espaço de tempo, numa sequência de correções e adaptações do texto original – todas em vigor a partir das respectivas publicações, como se ironicamente uma das finalidades da lei fosse assegurar antes de tudo a surpresa dos destinatários desde a divulgação da norma.
Para não citar muitos exemplos, faço referência ao tema da substituição da contribuição previdenciária sobre a folha de salários pela contribuição sobre o faturamento, aplicável às empresas de tecnologia da informação e da comunicação, que teve sua gênese no art. 7º da MP 540/11, transformada na lei 12.546/11 (arts. 7º a 9º) – a qual sofreu tantas alterações ao longo do tempo (com a inclusão e exclusão de diversos segmentos econômicos naquele regime) que tornou dificílima a tarefa de definir a regra especificamente vigente em cada período. Custa acreditar, aliás, que o art. 7º daquele diploma tenha chegado a apresentar 13 (treze) incisos no "caput", e 12 (doze) parágrafos (alguns com vários incisos), num eloquente volume de casuísmos que só a criatividade de uma burocracia invencível consegue conjecturar.
Ora, ao dispor sobre a lógica do seccionamento de artigos em parágrafos, incisos e alíneas, o art. 10 da LC 95/98 não conduz necessariamente à obrigação de que nas leis haja uma multiplicação desordenada do número dessas "partículas". Trata-se apenas de uma opção técnica na redação normativa, que pode (e às vezes até deve) ser usada, mas sempre com muita moderação – pois é imperioso reconhecer que a esta altura a adoção indiscriminada da ferramenta de seccionamento dos dispositivos já se tornou um vício do legislador, e o abuso desse hábito na comunicação normativa só contribui para truncar inutilmente a linguagem e a leitura.
A combinação dos exageros no uso dessa ferramenta de construção do texto legal com outros defeitos só piora o problema. Muitos diplomas legais, por exemplo, também confundem o intérprete ao tratar simultaneamente de vários assuntos diferentes – o que é proibido pelo art. 7º, II, da LC 95/98.
Tudo isso traz consigo os correspondentes aumentos de custos para empreendedores e para o próprio Estado. As autoridades responsáveis pela aplicação das leis e principalmente os membros do Poder Judiciário perdem grande parte de seu tempo na fatigante tarefa de ler e interpretar as leis, seguindo sempre os rastros de inúmeras referências cruzadas de dispositivos espalhados sem lógica pelo ordenamento jurídico, apenas por conta dessa dificuldade que se tornou um grande vício na técnica legislativa – sem qualquer finalidade prática.
Com esses e outros vícios na estruturação das leis a atividade legislativa estatal vem desafiando a cada dia o princípio segundo o qual "ninguém se escusa de cumprir a lei alegando que não a conhece" (art. 3º do decreto-lei 4.657/42 – Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro).
V – A contribuição dos operadores do Direito e da imprensa para uma melhor compreensão da norma
O profissional do Direito emprega muitos esforços no trabalho de "tradução" do texto normativo e na compilação pedagógica do conteúdo da lei, seja em pareceres, seja em petições aos órgãos públicos, e mesmo nas sentenças do Poder Judiciário. Muitas vezes também o faz por meio de artigos no espaço gentilmente cedido pela imprensa.
De se notar que as petições, pareceres, sentenças e outros textos jurídicos (a depender da atividade profissional) atingem com muito melhor eficácia o destinatário da leitura, não como simples resultado do número de revisões e do cuidado com a gramática (pois a lei também passa por esse processo), mas principalmente em razão do raciocínio lógico e ordenado, em especial quando é fruto da redação madura e experiente. O encadeamento lógico e conciso das ideias contribui tanto para a rapidez da compreensão quanto para despertar no leitor o interesse genuíno pela leitura do texto.
Por certo do advogado também se exige que seja ainda mais flexível em situações onde há interlocução com pessoas de outras profissões, com o propósito de esmiuçar melhor a linguagem técnica para viabilizar o adequado aconselhamento legal. Mas mesmo quando o vocabulário jurídico é assim abrandado pelo profissional (ou quando seu sentido técnico precisa ser explicado em linguagem mais simples), a eficácia do discurso perante o destinatário depende, inevitavelmente, daquele encadeamento lógico e ordenado da comunicação e da concisão do discurso.
Do ponto de vista da ordem racional das ideias e da concisão do texto, portanto, é possível afirmar que a redação jurídica preparada com foco nessas premissas se aproxima (cada vez mais) da comunicação produzida pela imprensa de primeira linha – o que se pode constatar, aliás, na redação do portal MIGALHAS, pioneiro na técnica de apresentar com leveza as notícias do Direito para o próprio profissional do Direito, em textos tão brilhantes quanto concisos, combinando a rapidez da ferramenta eletrônica ("e-mail") com o bom humor que sempre torna qualquer matéria uma leitura irresistível para o destinatário (mesmo nos assuntos mais áridos do Direito), e ajuda a suavizar a rotina profissional.
A evolução tecnológica nas comunicações, de outra parte, tem contribuído em grande escala para o trabalho dos profissionais do Direito, sobretudo em tempos de quarentena e teletrabalho (aqui me refiro não apenas ao "e-mail", mas também aos aplicativos para mensagens rápidas e para reuniões telepresenciais, além da possibilidade de peticionamento eletrônico e outras ferramentas), mas como se viu há problemas básicos a serem corrigidos no aprimoramento da linguagem jurídica – a começar pelo abandono de certos vícios inúteis do legislador na comunicação normativa que brota do texto das leis.
A maior dificuldade na interpretação – é bom reiterar – não reside tanto no vocabulário jurídico, mas principalmente na técnica legislativa. Contribui para o problema a multiplicação da produção normativa, com regras cada vez mais complexas sobre todas as matérias do conhecimento. Pode-se até afirmar que há uma certa obsessão do legislador em não deixar nenhuma atividade sem a devida "regulamentação" estatal (como se toda omissão do ordenamento pudesse conduzir a algum "risco" para a sociedade).
Evidentemente não é de se exigir que o legislador tenha preocupação com o interesse do destinatário na leitura do texto da mesma forma com que o advogado deve preparar suas petições ou pareceres. Nem se pode esperar (com saudosismo) que a norma seja redigida com a mesma técnica adotada, por exemplo, pelo notável Clóvis Beviláqua no Código Civil de 1916 – onde praticamente cada artigo trazia seu comando por inteiro, com pouquíssimo uso de parágrafos, incisos, alíneas etc.
Todavia, é inegável que na atualidade as normas são redigidas com excesso daquelas "partículas" – o que dificulta o entendimento, "trava" o ritmo da leitura (já que a cada passo é preciso localizar no texto da norma, ou até em outra norma em vigor, algum outro dispositivo ou "partícula" a que ela se reporta) num processo que, sem tanta utilidade prática, transforma a interpretação da lei num exercício de verdadeira tortura.