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A linguagem jurídica - Um desabafo

A precisão da linguagem jurídica decorre da concepção do Direito como Ciência. Direito é ciência, não literatura

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Atualizado em 16 de dezembro de 2020 08:01

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A linguagem é, para quem lida com o Direito, um instrumento de trabalho. Como instrumento de trabalho que é, tem que ser muito bem cuidada.

Como se sabe, entretanto, a classe jurídica é bastante conservadora e é, por isso, lenta quanto à percepção da necessidade de atualização deste seu instrumento de trabalho.

A precisão da linguagem jurídica decorre da concepção do Direito como Ciência. Direito é ciência, não literatura

A linguagem jurídica, de rigor, só deveria abranger termos técnicos. Termos técnicos como, por exemplo, Petição Inicial, Recurso Extraordinário ou Mandado de Segurança, que não devem ser substituídas por Exordial, Apelo Extremo ou Remédio Heroico. Aquelas expressões, porque são técnicas, não têm sinônimos.

Como dizia Barbosa Moreira, o geômetra não fica constrangido em dizer dez vezes, se necessário for, a palavra quadrado, para se referir a um polígono de quatro lados. Nem o biólogo, ao repetir o termo cromossomo. Simplesmente porque, como disse há pouco, termos técnicos não têm sinônimos. Porque, então, o operador do Direito teima em dizer Mandado de Segurança na primeira linha, na segunda diz mandamos e na terceira, writ?

A regra é: repetir (repetir e repetir) e não "inventar" sinônimos que, ademais, são de gosto duvidoso.

Certamente, entretanto, pior do que isso é o uso, ao gosto de muitos juristas, de palavras que já caíram em desuso e que são incompreensíveis para o homem médio: justamente o destinatário do serviço jurisdicional! Objurgar, homiziar, perscrutar, decisão "vergastada", extinguir o "fascículo", processo "incoado" etc. Desnecessário e inútil. Afinal, o acesso à justiça passa pela compreensão do que está sendo dito, discutido, decidido.

Ao que parece, podemos identificar neste campo um legado positivo destes tempos de pandemia: a atualização da linguagem jurídica.

 Os meios de comunicação "on-line", cujo uso foi intensificado com a pandemia, felizmente contribuiu para uma limpeza da linguagem. Audiências "on-line", comunicação por "Whatsapp", julgamentos por videoconferência parecem ter inibido um pouco aqueles a quem atrai esta linguagem gongórica, hermética e sob certo aspecto, kitsch... Linguagem limpa, clara, que comunica é o que se quer. Pois comunicar deve ser a primeira e a mais relevante função da linguagem, e não a de mostrar uma erudição, que talvez nem exista.

Isto, sem falar nos desnecessários termos em latim, em inglês ou, o que é pior, em alemão, língua que poucos falam. A não ser, é claro, que não haja o equivalente em português.

Sim, é possível e desejável se dizer discovery, actio nata ou Da-sein. Mas por que dizer deal, em vez de acordo? Isto sem falar no triste at the end of the day, ou seja, no frigir dos ovos, em bom português... Porque dizer "reformatio in pejus" em vez de reforma para pior? Ou dizer Pflicht em vez de dever?

Será que a falta de patriotismo é tanta que rejeitamos nossa própria língua?

Por fim, o fato é que falamos para sermos ouvidos e compreendidos. A linguagem não se deve prestar a "driblar" o interlocutor, na intenção de que ele não nos entenda bem.

O que dizer, então, dos textos longos? De falas intermináveis?

Sempre digo aos alunos que um trabalho sobre "Liminares nas Ações Possessórias" não deve começar com a frase: o homem é um ser gregário. Uma frase como esta não gera se não a pergunta: quantas páginas vou ter que pular?

É incompatível com o ritmo de vida do século XXI a quantidade de palavras que são desperdiçadas todos os dias... Textos que precisam urgentemente de uma lipoaspiração são incontáveis! Feita a limpeza, sobra pouco.

Petições devem ser curtas. Contestações devem ser enxutas, objetivas. Sentenças devem ser densas e claras. Mesmo pareceres devem ser concisos.

Se é pecado venial escrever demais (e uma péssima estratégia, já que se corre o risco de não ser lido!) pecado mortal é "aproveitar" textos de outros contextos, para fazer volume. Por que será que ainda há quem pensa que peças maiores infundem mais credibilidade?

No começo de carreira, uma vez eu mesma ouvi, de um excelente advogado paulistano: quem tem muitos argumentos, usa os melhores; quem não tem nenhum, usa todos. Desde então, procuro me policiar. Muito.

E por que falar tanto? Sempre achei que as palmas, numa palestra, são, pelo menos em parte, manifestações de alegria por a palestra ter acabado. Mais de quarenta minutos, não dá... ainda mais on-line.

Citando novamente Barbosa Moreira: palestras devem ser curtas e boas. Mas se forem curtas, nem precisam ser boas!

Quando se escreve um texto excessivamente longo ou quando se fala demais, simplesmente corre-se o risco de não se ser lido nem ouvido. As ideias ficam diluídas, perdem-se.

Neste ponto, o Migalhas exerce um papel relevante, porque informa, por meio de um veículo sobretudo muito simpático, rápido e prático. É a prova de que informação de qualidade não reclama, necessariamente, laudas e mais laudas para ser transmitida.

Os textos jurídicos nem sempre podem ser tão sucintos, é verdade. Como as verdades jurídicas em larga medida são fruto de um "consenso" na comunidade jurídica, não basta, para nós, um texto com boas ideias. Explico: Há verdades descobertas - que são as científicas; reveladas - que são as religiosas; e convencionadas - que, em larga escala, são as jurídicas.

Portanto, a argumentação jurídica, além de dever ser estruturalmente racional e estrategicamente convincente, deve ter "apoios": fulano também pensa assim, no direito alemão se diz isso, tal dispositivo legal permite esta intepretação. Mas é isso. E só isso!

Nada de 40 páginas para uma inicial, 70 para um artigo ou 200 para um parecer.

O risco de não ser lido é grande. E de ficar parecendo que não se tem razão, maior ainda.

 

Teresa Arruda Alvim

VIP Teresa Arruda Alvim

Sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. Livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.

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