Foi muito veiculado pela imprensa o fato de que a terceira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no final de agosto, em votação unânime, proferiu decisão no sentido de que plano de saúde deveria cobrir despesas decorrentes de cirurgia de mastectomia bilateral (retirada dos seios) de homem transexual.
Sobre o caso, deve ser observado que a recusa do plano em custear as despesas com o procedimento fundou-se na alegação de que se tratava de procedimento estético, bem como o fato de a decisão favorável à pretensão do consumidor foi fundamentada na preservação de sua saúde psíquica.
A contextualização da transexualidade e a salvaguarda de interesses de pessoas transexuais ainda é assunto sensível.
Algumas considerações introdutórias mostram-se relevantes. A primeira refere-se ao gênero, que consiste numa construção dos papéis sociais masculino e feminino. Trata-se comportamento social do sexo, de um corte feito entre o aspecto biológico e o social. A identidade de gênero consiste no modo como o indivíduo se identifica com o seu gênero, em como ele se auto percebe (homem, mulher, ambos ou nenhum dos gêneros). Existem três tipos principais de identidade de gênero: os cisgeneros (pessoas que se identificam com o seu sexo de nascença), os não binários1 (o indivíduo não se enquadra nos gêneros masculino ou no feminino) e os transgêneros (pessoa se identifica com um gênero diferente daquele que lhe foi atribuído no nascimento).
Sá e Naves2 ensinam que o direito à identidade sexual ou à sexualidade, compreendidos enquanto fatores de composição da sexualidade humana, se traduzem em um dos direitos da personalidade.
Os transexuais são transgênero, sendo a transexualidade um descompasso entre o sexo morfológico e o psíquico. O transexual, sob a ótica psicológica, enquadra-se no gênero que não é o seu, conforme a perspectiva física. Existe uma cisão entre ambas. Frise-se que inexiste na pessoa transexual qualquer distúrbio psíquico ou patológico.
Importante elemento normativo, a nosso ver obrigatório, deve ser considerado quando se fala em transexualidade. Trata-se da Opinião Consultiva 24/17, da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre Identidade de Gênero e Igualdade e Não-Discriminação3. A Corte entendeu que igualdade e dignidade da pessoa humana são indissociáveis, devendo os Estados que compõe a OEA criar medidas para reverter quaisquer situações discriminatórias em suas sociedades.
Também no mesmo instrumento, no que se refere à mudança de nome, sexo ou gênero (elementos identificadores da pessoa natural) em documentos de identificação, a Corte posicionou-se no sentido de dever ser considerada a autopercepção da pessoa. Frise-se que a opinião consultiva embasou o voto de ministros do STF quando do julgamento da ADI 4275, que permitiu que as alterações de nome e sexo em assentamentos de registro civil de transexuais fossem efetivadas diretamente em tabelionatos, de acordo apenas com a autoidentificação do indivíduo.
A OMS – Organização Mundial de Saúde, por seu turno, durante a sua 72ª Assembleia Mundial de Saúde, realizada em maio de 2019, em Genebra, retirou a transexualidade da classificação junto ao CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde) da categoria de transtorno mental, passando a ser integrá-lo no rol de “condições relacionadas à saúde sexual”, recebendo a classificação de “incongruência de gênero”.
Antes, em 2018, no Brasil, o Conselho Federal de Psicologia (CFP), por meio da Resolução 01/2018, já havia estabelecido orientação para que psicólogos não tratassem a transexualidade e a travestilidade como doenças.
Entendemos que as recentes alterações legais e conceituais, com a despatologização da transexualidade, não podem justificar eventuais limitações a usuários de planos de saúde a procedimentos médicos destinados a promover a compatibilização corpórea dos transexuais à sua percepção como ser humano. Expliquemos:
A lei 9.656/984, conhecida como a Lei dos Planos de Saúde, em seu art. 10º, indica que a cobertura se dará apenas na relação “das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde”, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei”.
O não enquadramento da transexualidade como patologia pode ensejar o entendimento de que o procedimento de compatibilização de gênero teria indicação meramente estética, que possui expressa vedação de cobertura conforme previsão feita pelo inciso II do mesmo artigo 10º da LPS5. Significa que a identificação da transexualidade como um diagnóstico, e não como condição de identificação da pessoa como ser humano, observando-se o atual compêndio legislativo, poderia limitar (ao invés de abarcar) os direitos dos transexuais.
Isso porque, além de a legislação ser incisiva ao dispor que as operadoras de saúde devem cobrir apenas as doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, a Agência Nacional de Saúde (ANS), responsável pelo setor de Planos de Saúde, emitiu o Parecer Técnico nº 26/20196 que dispõe que nos casos de diagnóstico de Transexualismo/Transgenitalismo (CID 10 F.64), os indivíduos maiores de 21 anos podem ter assegurada a cobertura de alguns procedimentos envolvidos no processo transexualizador.
“O PROCESSO TRANSEXUALIZADOR, também chamado de REDESIGNAÇÃO SEXUAL ou TRANSGENITALIZAÇÃO ou MUDANÇA DE SEXO, entendido como um conjunto de procedimentos clínicos e cirúrgicos realizados com vistas à alteração das características sexuais fisiológicas de um indivíduo, em sua totalidade, não se encontra listado na RN nº 428/2017, portanto, não é de cobertura obrigatória pelas Operadoras de Planos Privados de Assistência à Saúde.
Importante assinalar, contudo, que beneficiários de planos privados de assistência à saúde com diagnóstico de Transexualismo/ Transgenitalismo (CID 10 F.64), maiores de 21 anos, com ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia, em acompanhamento em unidades de atenção especializada no processo transexualizador por equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social há, no mínimo, 2 anos, nos termos da Portaria GM/MS nº 2.803/2013 e da Resolução CFM nº 1.955/2010, afastadas as vedações da Lei nº 9.656/1998, podem ter assegurada a cobertura de alguns dos procedimentos envolvidos no processo transexualizador”.
Referido Parecer Técnico assegura procedimentos como Mastectomia, Histerectomia, Oforectomia, Tiroplastia, sem qualquer restrição de cobertura, ainda que no âmbito do processo transexualizador, desde que solicitados por médico assistente e que seja atestado o diagnóstico de Transexualismo. Os Tribunais de Justiça já fazem menção a este Parecer para assegurar o direito ao beneficiário da operadora de saúde em se submeter a procedimento que lhe é essencial, descartando o caráter meramente estético.
“APELAÇÃO CÍVEL. PLANO DE SAÚDE. NEGATIVA DE COBERTURA DE MASTECTOMIA NO ÂMBITO DE PROCESSO TRANSEXUALIZADOR. Recurso das partes em face de sentença de parcial procedência. Não acolhimento. NEGATIVA DE COBERTURA. Recusa da operadora de saúde que se revela abusiva. ANS que, em parecer técnico, consignou expressamente a obrigatoriedade de cobertura da cirurgia de mastectomia como procedimento complementar ao processo de transexualização. Rol da ANS, não obstante, que é exemplificativo. Súmula 102 deste Tribunal. A recusa de custeio de procedimento comprovadamente essencial para garantir a saúde do paciente, ademais, coloca em risco o objeto do contrato, que compreende a saúde em seu âmbito psíquico. Cirurgia que não possui caráter meramente estético. Precedentes. DANOS MORAIS. Inocorrência. Existência de dúvida razoável na interpretação de cláusula contratual. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Sentença preservada. NEGADO PROVIMENTO AOS RECURSOS.”7 (v. 33931) (destaques nossos).
Oportuno se destacar que o mesmo se aplica no âmbito do Sistema Único de Saúde, uma vez que a Portaria 2.803 de 2013, que redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS), apesar de retirar o caráter experimental da Genitoplastia e implementar este procedimento nos hospitais públicos e universitários, também se refere à Transexualidade como diagnóstico, sendo o processo transexualizador considerado um tratamento clínico. Ressalte-se inclusive que o diagnóstico de transexualismo (CID F64.0) é um dos requisitos para que a Genitoplastia possa ser realizada no SUS.
Esta incongruência leva a luta da defesa da transexualidade a uma condição peculiar. Ou se garante os tratamentos cirúrgicos de redesignação sexual como assistência médico-hospitalar à saúde, tratando a condição como doença; ou se avança para indicar que a transexualidade não seria doença, comprometendo a cobertura para os procedimentos cirúrgicos necessários.
A solução parece indicar o caminho do Poder Legislativo, representado pela alteração da Lei 9.656/98 através de Projeto de Lei dirigido para esta finalidade, e do Poder Executivo, a partir da instituição de políticas públicas direcionadas a afastar esta dicotomia. Em ambos os casos, é preciso deixar claro que, não obstante a transexualidade já não ser classificada como doença, coberturas, atendimentos e assistência, tanto pelo Poder Público, quanto por particulares, teriam arrimo no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e evitariam discriminação e a subversão do princípio da autonomia da vontade e da autodeterminação.
Propostas à parte, o mais importante neste momento é a ideia que não há mais espaço para se negligenciar ou tolher direitos relacionados às questões de sexualidade, gênero e identidade de gênero. Avançar sobre o tema não é mais uma faculdade, mas derivação da compreensão mínima de responsabilidade social, empatia e de noções básicas no campo da Bioética e Biodireito.
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1- O Tribunal Constitucional alemão, em 08 de dezembro de. 2017, assegurou às pessoas interssexuais o direito de assim poderem ser registradas, lhes sendo também assegurado o direito a ter a informação quanto a seu gênero omitida em suas certidões de nascimento. Na mesma decisão, a corte alemã estabeleceu o prazo até o final do 2018 para permitir a utilização das designações positivas de gênero, tais como interssexual ou diverso. A Suprema Corte australiana, em 2014, decidiu acerca da possibilidade de um registro de nascimento ser efetuado em categoria chamada de “não específico” ou “indefinido”, direito semelhante ao existente na Nova Zelândia, onde se fala em gênero “indeterminado” ou “inespecífico”. No continente asiático, o Nepal em 2007, o Paquistão em 2009, Bangladesh em 2013 e a India em 2014, por meio de pronunciamento judicial ou pela edição de norma jurídica, também iniciativas no sentido de permitir a oficialização do terceiro gênero.
2- SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Manual de biodireito. 2. ed. Belo Horizonte, Del Rey, 2011, p.264.
3- É um documento que considera que a Convenção Americana de Direitos Humanos garante a possibilidade de alteração do nome e do sexo em registro civil de acordo com a autopercepção da pessoa referente à sua identidade de gênero, devendo os Estados membros da Organização dos Estados Americanos criar os meios adequados para efetivação da alteração. Durante o julgamento da ADI 4275 foi utilizada como embasamento do voto de vários ministros.
4- Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei.
5- Art. 10 (...) II - II - procedimentos clínicos ou cirúrgicos para fins estéticos, bem como órteses e próteses para o mesmo fim;
6- Disponível aqui.
7- APELAÇÃO Nº: 1007350-55.2019.8.26.0002, relatora Viviane Nicolau, julgado em 18 de Agosto de 2020.
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*Gustavo Henrique Velasco Boyadjian é doutor em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Uberlândia, Mestre em Direito Empresarial pela Universidade de Franca, Especialista de Direito Civil pela Universidade Federal de Uberlândia, Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, Advogado.
*Gabriel Massote Pereira é advogado especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra, Coordenador Geral e Docente de Pós-Graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde, e Autor da Obra Direito Médico – Temas Atuais, editora Juruá, 2019.