Encontra-se em fase de sanção presidencial o PL 3.975/19, que tem como objetivo principal ajustar os prejuízos causados as concessionárias de energia elétrica pela escassez hídrica observada em anos anteriores, o chamado risco hidrológico. Conquanto o tema central do PL trate dos referidos ajustes, em seu artigo 3º, sugere a criação do Brasduto, que, de acordo com a letra do PL, seria o Fundo de Expansão dos Gasodutos de Transporte e de Escoamento da Produção.
O presidente da República vetou o art. 3º do PL por meio da mensagem 510/201, indicando como razões para o veto o vício de iniciativa na propositura, ausência de estimativa do impacto orçamentário e financeiro, gerando aumento de despesa e o potencial risco de causar distorções nas decisões de investimentos com possibilidade de seleção adversa dos empreendimentos. Além das razões apresentadas no veto presidencial, a criação do Brasduto também traria problemas concorrenciais, de modo que o melhor caminho é a manutenção do veto presidencial pelo Congresso Nacional pelas razões abaixo lançadas.
De acordo com o PL 3.975/19, 20% dos recursos do Fundo Social do Pré-Sal criado no âmbito da lei 12.351/10 passariam a ser destinados ao Brasduto, que tem como finalidades, segundo os incisos I e II do seu art. 3º, a expansão do sistema de gasodutos de transporte de gás natural e das instalações de regaseificação complementares para atendimento do Distrito Federal e de capitais de Estados ainda não servidas por gasoduto e a expansão dos gasodutos de escoamento e das instalações de processamento do gás natural do pre'-sal, respectivamente.
Questiona-se, na prática, o que significaria o Brasduto do ponto de vista concorrencial e como ele se relacionaria com o novo marco regulatório do gás que se encontra em votação na Câmara dos Deputados por meio do PL 6.407/13. Seria um elemento complementar às regras de transporte de gás expostas no novo marco do gás ou haveria aspectos conflitantes com o bom desempenho concorrencial?
Comecemos pela possibilidade de complementariedade entre as proposições legislativas. O PL 6.407/13 da Câmara dos Deputados tem como eixo central a permissão de acesso de transportadores aos gasodutos da Petrobrás, os quais os obtém por meio de autorização conferida pelo poder concedente, ao passo que o PL 3.975/19 do Senado Federal, na parte que toca ao mercado de gás, tem como eixo central oferecer apoio financeiro reembolsável, tendo como garantia os ativos a serem financiados (§ 2º do art. 3º).
A princípio essa poderia ser uma ferramenta complementar ao novo marco regulatório do gás. No entanto, a análise atenta dos parágrafos restantes que compõe o art. 3º do PL 3.975/19 evidencia que a complementariedade exige contrapartidas que não são compatíveis com o ambiente de livre concorrência previsto pelo PL 6.407/13.
O melhor exemplo que coloca em xeque o Brasduto do ponto de vista concorrencial diz respeito ao conteúdo do § 3º, que postula que: “Caso as instalações de transporte de gás natural definidas no caput atravessem unidade da Federação cuja capital já seja servida por gasoduto, o valor a ser pago pelo gás natural que vier a ser destinado a essa unidade da Federação deverá ser o correspondente a esse consumo, tanto no que se refere ao preço de transporte até o ponto de entrega quanto no que se refere à operação, manutenção e administração, proporcionalmente ao volume consumido em relação à capacidade total do gasoduto, reduzindo, dessa maneira, o aporte do Brasduto nas atividades de operação, manutenção e administração da totalidade do gasoduto”.
Como se pode verificar, a concessão do financiamento exige que o preço praticado seja ajustado a uma série de elementos que, em última instância, nada mais são do que interferências no domínio privado sem justificativas econômicas que façam sentido do ponto de vista do direito concorrencial. Uma das exigências é a de que o preço praticado pelo transportador que passa pela unidade da federação, em cuja capital já seja servida por outro transportador, seja proporcional a quantidade consumida naquela unidade da federação. Na verdade, o mecanismo criado visa a exigir do transportador que ele oferte o preço de equilíbrio com a demanda local.
Esse dispositivo, além de ser uma interferência direta no domínio privado, ele também traz um resultado inverso ao que se deseja, que é o de alcançar preços menores em razão de sobreposição dos gasodutos. Na verdade, quando o legislador diz que o preço deve ser proporcional ao consumo do gás, ele está a focar a curva de demanda, de maneira que preços mais altos estejam associados com demandas mais altas e vice-versa.
No entanto, é um equívoco exigir preços compatíveis com a quantidade consumida se essa quantidade não for a quantidade de equilíbrio com a qual o transportador opera o seu sistema. Na verdade, a análise simples do equilíbrio de mercado via dinâmica das curvas de demanda e de oferta permite concluir que separar a demanda é dizer que o transportador terá que vender o gás a um preço fora do equilíbrio que maximiza o seu lucro.
Esse mecanismo reverbera uma intervenção severa no mercado de gás, pois, em um ambiente de livre mercado, se a quantidade consumida pela localidade for inferior àquela de equilíbrio, o transportador não terá incentivo em ofertar o gás e o preço praticado de mercado tenderá a subir naquela localidade. Da mesma forma, se a quantidade demandada for muito superior àquela de equilíbrio, o transportador terá incentivo para vender o produto a preços também muito mais elevados que os preços de equilíbrio, o que fará com que o consumidor se desloque para outro ofertante.
A exigência prevista no § 3º do art. 3º não encontra amparo no desenvolvimento concorrencial do mercado de gás e a sua consequência principal será a elevação do preço médio nessas localidades, uma vez essa obrigação reduz o incentivo para o ingresso de transportadores nos gasodutos que interceptam capitais já atendidas por outros gasodutos.
No limite, o Brasduto, na forma como está estipulado no PL 3.975/19, aumenta sobremaneira a probabilidade de arrefecer a concorrência no mercado de gás e inibe o potencial instrumento de financiamento e, ao fim e ao cabo, afeta negativamente os preços de mercado praticados.
Portanto, o Brasduto seria complementar ao mercado de gás e geraria maior concorrência se o fundo funcionasse como uma fonte de crédito sem qualquer interferência nos preços praticados em unidades da federação atendidas por mais de um gasoduto. No entanto, em havendo diferenciação de preços para o caso mencionado, o Brasduto tem pouco a contribuir com o novo marco regulatório na medida em que somente gerará incentivos para que os transportadores ingressem em mercados onde existem outros gasodutos e, o potencial da medida ficaria bastante reduzido, de modo que a manutenção do veto presidencial é a melhor medida para contribuir com o ambiente concorrencial no mercado de gás.
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