Migalhas de Peso

Quero mudar meu nome. E agora?

Saiba como o Judiciário tem lidado com os diferentes casos de pedidos de mudança de nome e ainda desmistificar reflexos culturais brasileiros envolvendo os sobrenomes. As motivações envolvem desde questões religiosas ao abandono afetivo.

9/9/2020

Com certeza a vontade de mudar de nome já passou pela cabeça de grande parte da população, por inúmeras razões. Seja por apelidos maldosos na época de colégio, por comparação à alguma figura pública que possui nome similar ou simplesmente por não gostar.

Em vista disso, cumpre ressaltar que o direito ao nome é desdobramento do princípio fundamental da dignidade humana e correlato dos direitos fundamentais à intimidade, vida privada, honra e imagem. Em outra vertente, o nome civil também está inserido na seara pública, vez que é por meio dele que serão fornecidas informações seguras sobre o estado civil e a situação jurídica das pessoas. E justamente por isso, impera em nosso ordenamento a regra da imutabilidade, com o objetivo de se preservar a segurança das relações jurídicas e sociais.

No entanto, o princípio da imutabilidade não é absoluto, porque, muito embora a regra geral seja a da manutenção do prenome e sobrenome, há hipóteses legais de alteração, sendo que a própria Lei dos Registros Públicos (Lei nº 6.015/73) trouxe em seu texto a possibilidade de alteração posterior de nome, desde que devidamente motivada e sentenciada por juiz competente (art. 57).

Em vista de tal excepcionalidade, é de se ver que o Superior Tribunal de Justiça ao longo dos anos tem se deparado com as mais variadas motivações para embasar eventual pedido de alteração de nome. E nesse sentido, observa-se que a referida Corte tem adotado posicionamento mais flexível acerca da imutabilidade do nome civil, uma vez que a referida flexibilização se justifica pelo próprio papel que o nome desempenha na formação e consolidação da personalidade de uma pessoa.1

Dessa forma, abordarei alguns casos notórios que estão inclusos em três importantes grupos, sendo: as situações de alteração de prenome; alteração de sobrenome e por fim, a mudança de nome completo.

Pois bem. No que diz respeito às hipóteses de alteração de prenome é certo que a Lei dos Registros Públicos garantiu em seu artigo 56 que qualquer pessoa, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil poderá alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos de família. Trata-se da única hipótese em que não é necessário apresentar nenhum motivo para a mudança. Basta ter vontade de mudar o prenome e assim fazê-lo. No entanto, ressalta-se que essa situação só é permitida durante os 12 meses em que a pessoa tem 18 anos de idade, ou seja, entre 18-19 anos. Superado esse prazo, a mudança no nome terá que ser subsidiada por uma justificativa.

A outra possibilidade de alteração de prenome foi introduzida pela Lei nº 9.708/1998, ao modificar a redação do art. 58, caput, da LRP, que admite a sua substituição por apelidos públicos notórios. Também se permite mudança de prenome em outra situação radical: em razão da alteração de sexo. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal ao julgar a ADI n. 4.275/DF reconheceu o direito da pessoa transgênero que desejar, independentemente de cirurgia de redesignação ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, a substituição de prenome e gênero diretamente no registro civil.

Avançando, no que tange ao segundo grupo (alteração de sobrenome), este tem sido garantidor de interessantes jurisprudências. Desde já, pode-se lembrar que as situações mais comuns para mudanças de sobrenome ocorrem com o casamento, divórcio ou união estável. A propósito, ressalta-se que apesar de no Brasil ter se adotado o costume de alteração de sobrenome do cônjuge tão logo celebrado o matrimônio, fato é que o STJ já decidiu que não há prazo legal para que esta mudança ocorra, podendo ser requerida a qualquer momento ao longo do relacionamento2. Nesse sentido, destaca-se caso concreto em que foi deferido à esposa a adoção do apelido de família de seu marido 14 anos (quatorze) após a união.

Situação curiosa elucidada pela jurisprudência e que também remete aos costumes brasileiros diz respeito a ordem pela qual os sobrenomes maternos e paternos são registrados. Nesse aspecto, é comum na cultura luso-brasileira transmitir o último apelido ao sobrenome. Ou seja, do pai de nome João Ferreira Souza será comumente repassado à prole o patronímico “Souza”, além de tradicionalmente se estabelecer o sentido de sobrenome materno precedendo o paterno.

Por outro lado, em pessoas de origem hispano-americana, o sobrenome do pai antecede o da mãe. Preferências a parte, fato é que a lei não faz nenhuma exigência de observância de uma determinada ordem no que tange aos apelidos de família, seja no momento do registro do nome do indivíduo, seja por ocasião da sua posterior retificação. Também não proíbe que a ordem do sobrenome dos filhos seja distinta daquela presente no sobrenome dos pais3. Tudo não passa de um reflexo cultural.

Todavia, importante sublinhar que o sobrenome é representativo da estirpe familiar de uma pessoa, indicando sua filiação. Assim, embora a lei não faça distinção quanto a ordem dos sobrenomes na composição do nome de um indivíduo, tais sobrenomes devem necessariamente ser oriundos de sua família. É dizer, não importa se será repassado ao filho o primeiro ou segundo sobrenome do pai, desde que esse sobrenome seja de fato pertencente àquela família. O patronímico supera a mera individualidade: o sobrenome pertence, em última análise, a todo o grupo familiar, de modo que não podem os descendentes dispor livremente do elemento distintivo de sua ancestralidade4.

Observa-se, portanto, que o sobrenome está iminentemente ligado ao histórico familiar de um indivíduo, remetendo a suas origens. E em razão disso é que o Judiciário é extremamente rigoroso ao lidar com situações que almejam sua supressão.

No entanto, uma hipótese em especial merece destaque. Trata-se dos pedidos de mudança de sobrenome que envolvam algum tipo de abandono afetivo. Aqui podemos fazer uma interessante análise a respeito dessa simbologia familiar do sobrenome. Isso porque o mesmo traço de preservação de ancestralidade que faz o ordenamento jurídico ser tão rigoroso com sua manutenção, também é o principal motivo para eventuais pedidos de supressão.

O abandono afetivo é uma triste realidade vivenciada por inúmeros brasileiros, que tiveram sua criação suportada por apenas um dos genitores, dentre o qual não se pode esquivar da constatação que, em tal ponto, o abandono paterno é destaque. E nesse sentido, para grande parcela dos filhos é extremamente angustiante “carregar” consigo um sobrenome que a todo tempo lhe remete a uma pessoa que ignorou sua existência desde tenra idade.

E justamente voltando-se para tais situações é que se tornou jurisprudência pacífica e consolidada do STJ5 que o abandono de genitor caracteriza justo motivo de o interessado requerer a alteração de seu nome civil, com a respectiva exclusão completa dos sobrenomes paternos ou maternos. Caso assim não fosse, o Judiciário estaria renegando o elevado grau de importância do patronímico que o próprio ordenamento atribuiu. 

Dessa forma, mesmo sendo uma situação oriunda de um comportamento lastimável como é o abandono, não se pode deixar de reconhecer o avanço do Judiciário ao lidar com algo tão sensível e que demonstra extrema preocupação em dar o devido enfoque que o afeto merece nas relações, sobrepondo-o a qualquer formalidade civil.

Por outro lado, essa flexibilização de entendimento não afasta a análise caso a caso, de modo que em dadas situações a imutabilidade do nome prevalecerá sobre outros princípios fundamentais. Nesse sentido, destaca-se decisão que tratou da impossibilidade de supressão de patronímico por razões religiosas. No caso em espécie, o próprio genitor requereu a supressão de seu patronímico de família, de maneira que tanto ele, como sua esposa e seus 03 filhos com idades de 5, 6 e 9 anos passariam a ser identificados somente com o sobrenome que designa a família de sua esposa.

A justificativa apresentada era que o patronímico paterno causava constrangimento perante a religião judaica, adotada pela família. A propósito, destaca-se que em sua petição recursal os Recorrentes inclusive alegaram o precedente de alteração de sobrenome por abandono afetivo como subsídio em favor de seu pleito.

Ao proferir seu voto de indeferimento, a Ministra Nancy Andrighi, destacou que a supressão pretendida evidentemente prejudicaria o apelido familiar dos recorrentes, ou seja, acaba por eliminar de seus nomes o histórico de suas origens. Por essa razão, as consequências trazidas pela exclusão solicitada são especialmente sérias no que diz respeito ao nome dos três filhos do casal. Ressaltou que “o fato de a família ter adotado a religião judaica não necessariamente significa que os filhos menores seguirão tais preceitos durante toda a sua vida. Nada garante, ainda, que as crianças futuramente não se rebelarão contra o ato que inadvertidamente retirou de seus nomes qualquer vínculo com o ramo familiar de seu pai. E, finalmente, sempre existe a possibilidade de que essas crianças venham a ter, no futuro, outro conceito de seu sobrenome paterno, de modo a exaltá-lo e a respeitá-lo.”6

Nesse sentido, ressalta-se que apesar de reconhecer a sensibilidade do pedido no que tange às questões religiosas, a julgadora sobrepôs o interesse das crianças envolvidas, que teriam seu nome, elemento intrínseco de sua história e personalidade, modificados à revelia. Aliás, interessante análise foi realizada em tal caso concreto. Isso porque conforme muito bem abordado pela Ministra Nancy, tanto a doutrina quanto a jurisprudência lutaram pelo direito dos filhos ao sobrenome de seus genitores, especialmente com relação àqueles havidos fora do casamento.

E aqui complemento que talvez seja justamente por esse caráter de “pertencimento familiar” é que o sobrenome seja tão valorizado tanto no meio jurídico como social. Assim, quando esse núcleo familiar é rompido, tal como ocorre no abandono afetivo, toda a motivação de “carregar” aquela estirpe também é rompida. As demais situações que não envolvam uma interpretação amplamente voltada para o cunho afetivo e até mesmo traumático da história de um indivíduo, mantem-se o rigor da imutabilidade.

Por fim, no terceiro grupo de exceções ao princípio da imutabilidade estão aquelas regras que permitem a alteração completa de prenome e nomes de família. É o caso da via da adoção, que, pela lei brasileira, implica o corte absoluto do adotado com vínculos de sua família de origem. Nesses casos, os pais adotantes podem atribuir novo prenome ao adotado (facultativamente). Já os apelidos de família devem ser (obrigatoriamente) substituídos pelos da nova família (art. 47, § 5º, do ECA). Também se permite a completa mudança de nome em razão de fundada coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime, por determinação de juiz competente, ouvido o Ministério Público, ou em caso de inserção em programas especiais de proteção à testemunha e vítimas ameaçadas (art. 58, parágrafo único, da LRP e art. 9º da Lei n. 9.807/1999). Nessa hipótese, a modificação pode abranger o assento de nascimento dos filhos e do cônjuge. É facultado ao protegido, no último caso, cessada a medida, voltar a utilizar o nome anterior.

Percebe-se por tudo que foi exposto, o peso e importância que o nome representa em um meio social. E nesse aspecto, o Poder Judiciário é peça fundamental em garantir que o nome resguarde a personalidade, intimidade e principalmente dignidade de cada indivíduo, partindo para uma análise cada vez mais humanizada e representativa das mudanças vivenciadas na sociedade, sem, contudo, se esquivar das formalidades inerentes aos efeitos do registro público.

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1- Precedentes citados: REsp 66.643-SP, Quarta Turma, DJ 21/10/1997; e REsp 401.138-MG, Terceira Turma, DJ 26/6/2003. REsp 1.304.718-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 18/12/2014, DJe 5/2/2015.

2- REsp 1.648.858-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 20/08/2019, DJe 28/08/2019

3- REsp 1.323.677-MA, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 5/2/2013.

4- REsp 1.189.158/SP

5- REsp 1304718/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/12/2014, DJe 05/02/2015.

6- REsp nº 1.1189.158/SP

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*Brunna Frota Silva é advogada; Especialista em Direito Público; Membro da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB/GO; Assessora jurídica no Departamento Estadual de Trânsito do Estado de Goiás – DETRAN/GO.

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