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Prevenção precária e contágio dos agentes penitenciários na pandemia

É dever do Estado promover políticas públicas de natureza socioeconômica para assegurar a redução do risco de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

3/9/2020

O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. Além do perfil racial marcante, que demonstra uma política de encarceramento em massa mantenedora de uma estrutura social racista, chama atenção a precariedade das unidades prisionais e do sistema carcerário. A insalubridade e a superlotação das prisões brasileiras estão associadas à desvalorização, à falta de treinamento e à defasagem do quadro de pessoal da categoria de agentes penitenciários e demais trabalhadores dessas unidades. A situação, que já era alarmante, ganhou contornos mais graves com a chegada da pandemia do covid-19 (coronavírus). 

Em março, foi declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a pandemia do novo coronavírus. O Congresso Nacional aprovou o decreto legislativo 6/20 para reconhecer o estado de calamidade pública. Desde então, os primeiros alertas de descontrole e prevenção inepta nas penitenciárias brasileiras começaram a surgir.

Conforme amplamente noticiado na mídia, as medidas sanitárias de contenção da pandemia no país têm se revelado tímidas e insuficientes. Nas unidades de saúde, faltam Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) básicos, como luvas, máscaras e capotes. No sistema penitenciário, as denúncias mostram que a situação é igualmente crítica. 

A preocupação com os encarcerados, sob tutela do Estado, que tem dever constitucional de preservar sua integridade física (art. 5º, XLIX, da Carta Magna), é muito bem retratada no artigo “covid-19 na prisão: Adoecimentos, mortes e a Responsabilidade civil do Estado” da advogada e especialista no tema Bruna Santos Costa. 

Como ela aponta, “a posição de garantidor do Estado com os que estão sob sua custódia deriva tanto de preceitos constitucionais e legais, como de tratados internacionais. Ainda que se pudesse admitir que em alguns casos houvesse adoecimento e morte por covid-19 nas prisões, o Estado somente poderia se eximir de sua responsabilidade se demonstrasse que adotou todas as medidas necessárias para zelar pela integridade dos apenados e evitar a contaminação pelo vírus. Ou seja, a pandemia não pode ser considerada uma excludente de responsabilidade, por si só”. 

Certo é que esse contexto guarda um potencial lesivo muito mais amplo, que envolve também os servidores e empregados que trabalham nas unidades prisionais e cuja saúde tem sido negligenciada pelo Estado como efeito colateral da política de abandono e de degradação do sistema prisional. Segundo monitoramento feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), atualizado em julho, foram registrados 65 óbitos de servidores por covid-19 e 5.854 casos confirmados . Esse número, contudo, tende a ser muito superior na medida em que a testagem é limitada no sistema prisional.

Sobressai nesse cenário o número de contaminações de presos e agentes penitenciários no Distrito Federal, por exemplo. A capital do país, segundo relatório do Departamento Penitenciário, concentrava cerca de 67% dos casos no sistema prisional brasileiro em maio de 2020, quando publicado o último levantamento pela Agência Brasília. Nesta oportunidade, a Secretaria de Segurança do Distrito considerava exitoso seu “plano” de combate à pandemia por não ter, até então, registro de mortes. Logo depois, em 17 de maio, o primeiro agente penitenciário faleceu em decorrência da doença. 

Em São Paulo, o quadro não é menos preocupante. Conforme dados expostos pelo Fórum Penitenciário Permanente em audiência com o Ministério Público do Trabalho (MPT) em abril, o fornecimento de EPIs e de itens básicos de higiene é precário. Em relatório encaminhado pela Subcoordenação das Unidades Prisionais de Gericinó ao Gabinete de Crise do Estado do Rio de Janeiro no mesmo mês, os servidores penitenciários daquela localidade com sintomas da covid-19 permaneciam em atividade até que fosse realizada perícia médica pela Secretaria de Saúde, o que podia demorar até uma semana, colocando em risco a população custodiada e o quadro de servidores. 

Esse descontrole nas unidades prisionais não pode ser considerado mera decorrência natural da gravidade da pandemia. Em julho, o presidente Jair Bolsonaro vetou o artigo 3º-F da lei 14.019/20, que dispunha do uso obrigatório de máscaras nas prisões e nos estabelecimentos de cumprimento de medidas socioeducativas como medida de prevenção à covid-19, conforme informativo do Senado Federal.

A mensagem de veto se revela pouco precisa em relação à competência federal integrada com a atuação conjunta e complementar dos governos federal, distrital, estadual e municipal na manutenção do Sistema Único de Saúde (SUS). Mais que isso, demonstra descompasso com a competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre saúde, conforme prevê o art. 24, XII, da Constituição Federal. Sob o pretexto de autonomia dos entes federados para regulamentar a matéria do uso de equipamentos de proteção individual para prevenir a exposição ao novo coronavírus, suprimiu-se o comando que determinava o uso obrigatório de máscaras nos locais de cumprimento de medidas penais. 

Tratava-se de norma geral, a ser regulamentada regionalmente pelos demais entes federativos. Não há, portanto, qualquer indício de invasão de competências ou de afronta à autonomia dos Estados e Municípios, que, ao contrário, teriam o poder e o dever de instrumentalizar os mecanismos de cumprimento das diligências necessárias. 

Em agosto, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu comunicado à imprensa para manifestar a preocupação com as pessoas apenadas e com o sistema carcerário como um todo no Brasil, “tendo em vista os altíssimos níveis de superlotação e as condições de detenção que prevalecem nas penitenciárias do país”. 

Segundo o documento, a situação já conhecida do encarceramento no país “criariam um ambiente propício para a proliferação e avanço do vírus da covid-19” face “às deploráveis condições de detenção nas prisões brasileiras, que se caracterizam por níveis alarmantes de superlotação, infraestrutura deficiente, atendimento médico negligente, completa falta de higiene, ausência de artigos de primeira necessidade e alimentação inadequada”. 

Na oportunidade, o órgão relatou o recebimento de denúncias que evidenciam as altas taxas de contágio e de mortes nas penitenciárias brasileiras, além da manutenção das condições de precariedade já descritas, o que torna inviável a adoção de medidas eficazes de contenção da pandemia nesses espaços. 

Esses dados revelam o descumprimento do dever constitucional de proteção e de tutela das pessoas sob custódia e também o descaso com os trabalhadores do sistema prisional, que estão vulneráveis à doença em um ambiente de trabalho insalubre e precário, cujas condições inadequadas ficam potencializadas pela ausência de medidas efetivas de prevenção ao contágio. 

A negligência com o sistema prisional em um contexto de pandemia revela a continuidade de um projeto estratégico de abandono da população carcerária em franca violação aos preceitos constitucionais de dignidade da pessoa humana e de proteção estatal aos tutelados encarcerados. Desvela, ainda mais, a desvalorização dos servidores que atuam no sistema e que marcaram o cenário da pandemia com recordes de contaminação. 

O distanciamento social e o uso das máscaras são ainda as principais e mais básicas diretrizes de combate à pandemia, conforme prescreve a OMS. No Brasil, que tem significativo número de mortes no comparativo global e que tem ganhado notoriedade internacional pela ineficiência no controle da pandemia, o veto ao uso obrigatório das máscaras nas penitenciárias brasileiras evidencia muito mais que mera negligência com a população carcerária, mas verdadeiro abandono aos tutelados encarcerados e também aos já precarizados trabalhadores penitenciários. 

É certo que a Constituição assegura a todos os trabalhadores o direito ao meio ambiente seguro e saudável. Os arts. 6º, 196 e 197 da Constituição estabelecem a saúde como um direito social fundamental de todos. Por sua vez, o art. 7°, XXII, c/c 39, §3º, da Carta Política consagra o direito do trabalhador – também incluídos os servidores públicos - ao meio ambiente saudável.

É dever do Estado promover políticas públicas de natureza socioeconômica para assegurar a redução do risco de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Dado o contexto evidenciado, o Estado falha gravemente na proteção dos direitos constitucionais dos agentes penitenciários por meio de omissões e negligências que têm vitimado muitos servidores e apenados. 

Vale lembrar que, além da possibilidade alarmante de contágio pelo novo coronavírus, o quadro de abandono das unidades prisionais pode causar, a médio e longo prazo, a potencialização do adoecimento psíquico dos servidores penitenciários, que lidam essencialmente com uma rotina de tensão e que agora vivenciam o medo constante do contágio. 

É certo que a ineficiência no combate à pandemia em relação aos trabalhadores do sistema prisional revela importante violação de seus direitos por aquele tem que o dever de preservar a vida e a integridade física de seus servidores: o Estado. Há uma responsabilização que poderá ser submetida ao crivo do Poder Judiciário face à gravidade do cenário desenhado. 

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*Luana Marques Albuquerque é advogada especialista no tema Responsabilidade Civil. Sócia do escritório Mauro Menezes & Advogados.

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