A divergência substancial de entendimento entre Ministros da 1ª e 2ª turma do STF sobre temas caros à sociedade, como a prisão após julgamento em segunda instância e em outros assuntos relacionados ao meio político, ganharam forte reverberação na imprensa. O nível de animosidade entre os componentes das Turmas levaram às célebres frases do Ministro Gilmar Mendes, ao se reportar à 1ª Turma do STF (de perfil considerado punitivista) como “câmara de gás”1, e a resposta do Ministro Herman Benjamin, em forte crítica aos “garantistas” da 2º Turma da Suprema Corte, qualificando a 2ª Turma do STF como o “Jardim do Éden”2.
Mas agora os holofotes se direcionam para o Superior Tribunal de Justiça. Isso porque a 3ª e a 4ª Turma do STJ, responsáveis pelo julgamento das ações de Direito Privado, têm divergido frontalmente quando o assunto são os direitos dos consumidores perante operadoras de saúde.
E não são divergências pontuais. Enquanto a 3ª Turma, Presidida pelo Ministro Moura Ribeiro (e com forte influência da Ministra Nancy Andrigui), possui histórico de defesa do consumidor na relação com operadoras de saúde, a 4ª Turma, Presidida por Marco Buzzi, passou a ter, especialmente nos últimos anos, forte inclinação na primazia da validade dos contratos e dos regramentos da ANS, que atrai decisões que limitam sobremaneira o acesso de beneficiários de plano de saúde a tratamentos especializados e medicamentos, prestigiando o entendimento restritivo defendido pelas operadoras.
A quantidade de acórdãos afetados e submetidos a julgamento pelo Rito dos Recursos Repetitivos na 2ª Seção da Corte (que reúne a 3ª e a 4ª Turmas) passaram a ilustrar o nível de acirramento entre as Turmas.
No tema 9903, a 2ª Seção, prestigiando entendimento majoritário da 4ª Turma4, indicou que as operadoras não mais estariam obrigadas ao fornecimento de medicamentos não aprovados pela ANVISA, mas nos acórdãos afetados (REsp nº 1712163 e REsp 1726563/SP), ressalvou-se – em prestígio ao entendimento extraído da 3ª Turma5 – que estando o medicamento aprovado pela ANVISA, a cobertura seria obrigatória, até mesmo para uso off-label (fora da bula) em havendo expressa indicação médica6.
Em outra divergência, desta vez emoldurada no Tema 1.034 do STJ, ainda pendente de julgamento, a 4ª Turma7 defende que os funcionários inativos de empresas que tenham contribuído por mais de 10 (dez) anos não teriam direito adquirido a forma de pactuação e preço dos funcionários ativos, atraindo a possibilidade das operadoras criarem produtos específicos (e mais caros) apenas para os inativos aposentados.
Já a 3ª Turma, com voto protecionista ao consumidor da Ministra Nancy Andrigui8, garante que “o art. 31 da Lei 9.656/98 (...) não alude a possibilidade de um contrato de plano de saúde destinado aos empregados ativos e outro destinado aos empregados inativos. E, quanto ao ponto da insurgência recursal, não faz distinção entre “preço” para empregados ativos e empregados inativos”.
Mas se a divergência entre as Turmas já era importante, esta se tornou definitiva quando a 4ª Turma do STJ, em decisão permeada de polêmicas, descontruiu um postulado antigo do STJ de que o Rol da ANS (entendido como a relação de procedimentos mínimos a serem garantidos aos usuários de planos de saúde) seria apenas exemplificativo.
O julgamento se deu nos autos do REsp 1.733.013/PR, em que o Ministro Relator Luis Salomão, acompanhado pelos demais membros da 4ª Turma, concluiu o que o Rol da ANS seria taxativo. Para o Ministro, “é inviável o entendimento de que o rol é meramente exemplificativo e de que a cobertura mínima, paradoxalmente, não tem limitações definidas”.
As consequências do entendimento da 4ª Turma são drásticas para o usuário de plano de saúde – e de múltiplas formas. Para se ter uma ideia, as quimioterapias (antioneoplásicos) de uso oral não constam do rol da ANS. Da mesma forma, as terapias específicas para tratamento do Espectro Autista, por exemplo, também não constam da relação mínima da agência. Projetos de Lei9 tramitam com velocidade no Congresso na tentativa de minimizar os efeitos da lacuna que seria instaurada na saúde do país no caso de consolidação deste entendimento restritivo.
O maior fator de inquietação de juristas é a de que o Rol da ANS é sabidamente defasado10, sendo que a incorporação de novas tecnologias e medicamentos podem levar anos, dos quais não dispõem os pacientes que precisam dos tratamentos indicados.
Institutos de Defesa do Consumidor, como o IDEC11, defendem que “ainda que este recurso não tenha sido julgado sob a forma de repetitivo e, consequentemente, não constitua um precedente a ser seguido obrigatoriamente em futuras ações, é inegável o retrocesso que representa para a proteção ao consumidor”.
O fato da decisão da 4ª Turma do STJ ter o potencial de vedar acesso a tratamento de doenças graves como o câncer, limitando acesso a múltiplos tipos de quimioterapia de uso oral e novas tecnologias, não constrangeu a 3ª Turma a não só manter, como justificar a manutenção do entendimento de que o Rol da Ans é apenas exemplificativo, não esgotando os casos em que a cobertura do tratamento pela operadora de saúde seria obrigatória.
Foi o que decidiu a 3ª Turma no RESP 1829583/SP12, em que reafirma o seu entendimento pela não taxatividade do rol mesmo diante dos precedentes da 4ª Turma: “nos termos da jurisprudência pacífica desta Turma, o rol de procedimentos mínimos da ANS é meramente exemplificativo (...) Existência de precedente recente da QUARTA TURMA no sentido de que seria legítima a recusa de cobertura com base no rol de procedimentos mínimos da ANS. Reafirmação da jurisprudência desta TURMA no sentido do caráter exemplificativo do referido rol de procedimentos.”
Este entendimento (pela não taxatividade do Rol) é comungado pela esmagadora maioria dos Tribunais. A quantidade de ações com esta temática é tamanha, que o Tribunal de Justiça de São Paulo, o mais acionado no país em demandas de saúde, editou a Súmula 102, que garante que “havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS.”
A insegurança jurídica realmente é a consequência imediata do overrruling13 da 4ª Turma, pressupondo que a manutenção ou suspensão de tratamentos de saúde, quando alçados ao STJ, seria decidida como em um jogo de azar: no momento da distribuição eletrônica do Recurso. Se distribuído para relatores da 3ª Turma, acesso à saúde garantido; se distribuído para a 4ª Turma, tratamento potencialmente comprometido. Esta insegurança definitivamente não é o caminho ideal, especialmente quando o bem jurídico a ser tutelado é a vida do jurisdicionado.
Não se está a cercear a atividade judicante ou a autonomia de decisão dos Ministros em decidir conforme suas convicções, mas a 4ª Turma parece caminhar para um cenário sem precedentes: ao prover Recursos Especiais sob o novo entendimento adotado, estão determinando o retorno dos autos à origem para que decidam conforme sua convicção não vinculante (e como se entendimento uníssono da Corte fosse). Foi o que constou em vários julgamentos, a exemplo do AREsp 1641061 SP14: “Logo, considerando-se que a inclusão de determinado tratamento no rol de procedimentos da ANS é relevante para a avaliação do dever de cobertura por parte do plano de saúde, de rigor o parcial provimento do apelo, com a consequente determinação do retorno dos autos à origem, para julgamento nos termos da jurisprudência desta Corte”.
Interpretações dissonantes entre membros de Turmas distintas e componentes de uma mesma Seção. Um convite para uma decisão convergente a ser proferida sob o Rito dos Recursos Repetitivos pela 2ª Seção do STJ, já que enquanto perdurar a divergência, haverá insegurança jurídica a um grupo de jurisdicionados que precisam da garantia de que iniciarão (e terminarão!) seus tratamentos. Realmente, a famigerada “Briga de Turmas” saiu da Praça dos Três Poderes e desembarcou no Superior Tribunal de Justiça.
A divergência a ninguém aproveita. Ademais, a abrupta (e questionável) mudança de entendimento manifestada pela 4ª Turma em relação a taxatividade do Rol da ANS vai em absoluta contramão às metas do CNJ para privilegiar a conciliação entre usuários de planos de saúde e operadoras, até porque enquanto a operadora vislumbrar percentual idêntico de sucesso e insucesso ao manejar Recurso Especial ao STJ (a depender do sorteio eletrônico entre uma Turma ou outra), certamente conduzirá suas demandas à terceira instância, nada contribuindo à celeridade da justiça.
No entremeio que permeia os direitos das operadoras de planos de saúde e os direitos do consumidor, que prevaleça a segurança jurídica.
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1- Clique aqui.
2- idem
3- Tese Firmada - As operadoras de plano de saúde não estão obrigadas a fornecer medicamento não registrado pela ANVISA. Disponível aqui.
4- AgInt no AREsp 988.070/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Quarta Turma, julgado em 16/3/2017, DJe 4/4/2017
5- REsp 1.632.752/PR, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Terceira Turma, julgado em 22/8/2017, DJe 29/8/2017
6- AgInt no AREsp 1567178/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/06/2020, DJe 26/06/2020
7- AgInt no AREsp 1435596/SP, Quarta Turma, DJe 13/08/2019
8- REsp 1716027/SP, Terceira Turma, DJe 13/12/2018
9- PL 6330/19 - Clique aqui.
10- Ocorre que a medicina de uma maneira geral evolui de forma muito mais rápida do que as atualizações da ANS que, além de tudo, são pautadas por premissas econômicas, o que resulta numa sistemática defasagem entre a disponibilização de novas técnicas, medicamentos e tratamentos e a efetiva incorporação dos mesmos à lista de procedimentos de cobertura obrigatória. Luciano Correia Bueno Brandão, disponível aqui.
11- Disponível aqui.
12- AgInt no REsp 1829583/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/06/2020, DJe 26/06/2020
13- “intervenção no desenvolvimento do direito, ou seja, quando é tomada uma decisão posterior tornando o precedente inconsistente” Disponível aqui.
14- STJ - AREsp: 1641061 SP 2019/0376171-9, Relator: Ministro MARCO BUZZI, Data de Publicação: DJ 06/04/2020
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