Migalhas de Peso

A dedutibilidade dos créditos considerados incobráveis

Análise dos efeitos nefastos dos critérios objetivos para a recuperação das perdas (lei 9.430/1996) para o Judiciário, devido à necessidade de judicialização civil para obtenção de benefícios fiscais. O PL 6.204/19 tenta amenizar a situação.

12/8/2020

Análise dos efeitos nefastos dos critérios objetivos para a recuperação das perdas (lei 9.430/1996) para o Judiciário, devido à necessidade de judicialização civil para obtenção de benefícios fiscais. O PL 6.204/19 tenta amenizar a situação.

1. A dedutibilidade dos créditos de cobrança duvidosa ou considerados incobráveis

A dedutibilidade dos créditos de cobrança duvidosa ou considerados incobráveis já foi matéria do Migalhas, quando Eduardo Benetti e Lais Helena Lopes Bueno da Silva trataram dos critérios objetivos para a “recuperação” das perdas no recebimento de créditos1. Naquele artigo, no entanto, a discussão não avançou sobre os efeitos “nefastos” desses critérios sobre a máquina judiciária.

No ano de 2018, segundo o último Justiça em Números, 54,2% dos processos pendentes de baixa encontravam-se na fase de execução2. Se percentuais não impressionam, trata-se de algo superior a 42 milhões de processos.

Em artigo recentemente publicado na Coletânea “Reflexões sobre a Desjudicialização da Execução Civil”, Ernesto Antunes de Carvalho e Tarsila Martinho Antunes de Carvalho verificaram que demandas tributárias têm relevante impacto nos números acima, e mais, que as regras que regulam a dedução dos créditos de cobrança duvidosa ou considerados incobráveis são parte relevante da promoção da judicialização de demandas inviáveis e, portanto, inúteis3.

A Lei 9.430/1996 alterou as regras relativas à dedutibilidade, passando de um regime que permitia sua inclusão como despesa operacional para um regime de créditos não liquidados no âmbito da atividade da pessoa jurídica. Com isso, e o seguinte regime aplica-se às dívidas vencidas e inadimplidas até a Medida Provisória 656/2014, são dedutíveis, quando sem garantia: (1) os créditos até 5 mil reais vencidos há mais de seis meses; (2) os créditos superiores a 5 mil reais até 30 mil reais, vencidos há mais de um ano, desde que haja cobrança administrativa; e, (3) os créditos superiores a 30 mil reais, vencidos a mais de 1 ano, desde que iniciado e mantido por 2 anos o procedimento judicial para o seu recebimento. Em relação às dívidas com garantia, exige-se, além do período de pelo menos 2 anos de vencimento, sempre o procedimento judicial por iguais 2 anos.

Da previsão legislativa se poderia deduzir logicamente que a pragmática revela uma nefasta e enorme taxa de litigância civil a fim de garantir efeitos tributários. A realidade se impôs e, verificado o que era esperado, em 2014, a Medida Provisória 656/2014, convertida em Lei 13.097/2015, alterou a Lei 9.430/1996 e se passou – às dívidas vencidas e inadimplidas a partir da MP – a aplicar o regime segundo o qual são dedutíveis, quando sem garantia: (1) os créditos até 15 mil reais vencidos há mais de 6 meses; (2) os créditos superiores a 15 mil reais até 100 mil reais, vencidos há mais de 1 ano, desde que haja cobrança administrativa; e (3) os créditos superiores a 100 mil reais, vencidos a mais de 1 ano, desde que iniciado e mantido o procedimento judicial para o seu recebimento por 2 anos. Em relação às dívidas com garantia, exige-se, igualmente, 2 anos de procedimento judicial para os valores superiores a 50 mil reais, mas, no entanto, para os valores de até 50 mil reais, restou dispensado qualquer procedimento, seja judicial, seja administrativo

2. Um olhar para o outro lado do oceano: alguns aspectos do regime português

Atravessar o olhar para além da nossa perspectiva é essencial. Nesse sentido, diálogos com o direito português são sempre alvissareiros. Vale analisar os normativos paralelos no ordenamento português sobre a dedutibilidade de créditos considerados incobráveis ou de cobrança duvidosa relativamente ao IVA, qual seja: Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, decreto-lei 102/08, no n. 7 do art. 78.º e no art. 78.º-A.

A hipótese legal portuguesa abraça o risco de “incobrabilidade” ou a “incobrabilidade” configurada, como o caso do crédito vencido há mais de 24 meses e sobre o qual haja provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento, ou do crédito não superior a 750 euros e que esteja vencido há mais de 6 meses.

O olhar que se deseja trazer sai do âmbito dos benefícios fiscais e caminha para o sistema de execução, cuja preocupação já se fez saber – a judicialização civil de demandas inviáveis e, portanto, inúteis.

O ordenamento português conta um procedimento extrajudicial pré-executivo, conhecido por PEPEX, que surgiu, entre outros benefícios, para evitar a judicialização desnecessária de procedimentos judiciais visando a baixa contábil – verificação pré-executiva das condições de solvência de eventual executado.

Neste ponto, verificada pelo procedimento extrajudicial a situação de insolvência, o devedor no procedimento do PEPEX será incluído em uma lista pública de devedores e, para fins fiscais, a dívida será considerada incobrável, circunstância na qual o art. 25.º da Lei n.º 32/2014 prevê a possibilidade da emissão da certidão eletrônica de “incobrabilidade”, a ser transmitia à administração fiscal para produção dos efeitos da dedutibilidade dos créditos relativamente ao IVA.

Por meio desse instrumento, o Estado evita que os particulares demandem no âmbito dos órgãos públicos judiciais apenas para garantir o benefício fiscal a quem fazem jus.

O procedimento português inspirou os trabalhos do PL 6204/19 em trâmite no Senado Federal brasileiro, apresentado pela Senadora Soraya Thronicke, fazendo-se incluir o parágrafo 1º no seu artigo 15, conforme será analisado a seguir.

3. O PL 6204/19 e a dedução dos créditos de cobrança duvidosa ou considerados incobráveis

Como se viu, o número de execuções pendentes no Brasil é imenso, o Poder Judiciário está abarrotado, mas pouco se discute a respeito da necessidade da judicialização civil para obtenção de benefícios fiscais. No final do ano contábil, muitas empresas de lucro real, especialmente instituições financeiras, distribuem milhares de execuções sabidamente inviáveis tão somente para cumprir o disposto no artigo 9º da Lei 9.430/1996, visando exclusivamente deduções fiscais.

Como dito, pouco ou quase nada se vê nas discussões acadêmicas acerca do efeito nefasto da lei 9.430/96 para a sobrecarga do Poder Judiciário. Ernesto Antunes de Carvalho tem papel relevante nos estudos que antecederam o PL 6204/19, por fazer o alerta à autora Flávia, que participou da comissão para a redação do Projeto de Lei, que tramita atualmente na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, fazendo-se incluir o quanto segue:

Art. 15. Além de outros casos de suspensão legal, o agente suspenderá a execução na hipótese de não localizar bens suficientes para a satisfação do crédito.

Parágrafo único: Se o credor for pessoa jurídica, o agente de execução lavrará certidão de insuficiência de bens comprobatória das perdas no recebimento de créditos, para os fins do disposto nos artigos 9º e 11, da Lei 9.430, de 27 de dezembro de 1996.

O parágrafo único do art. 15 teria repercussão não apenas nos créditos superiores a 100 mil reais sem garantia e 50 mil reais com garantia, desde que posteriores à edição da MP 656/2014, mas também aos anteriores à MP – se ainda exigíveis.

O agente de execução poderá, nos termos do PL, expedir certidão semelhante àquela emitida no âmbito do PEPEX, obviamente com as diferenças que o sistema brasileiro impõe, sem exigência da inclusão da lista pública de devedores do sistema português, mas com a manutenção do crédito sob protesto. A certidão de insuficiência de bens seria suficiente para o procedimento de recuperação dos valores recolhidos ao fisco e cuja dedutibilidade é garantida pela lei 9.430/96.

Alterações profundas como as que se pretendem ver introduzidas pelo PL 6204/19 repercutem em diversas áreas do direito e podem intervir virtuosamente em aspectos pragmáticos, como é o caso da dedutibilidade dos créditos de cobrança duvidosa ou considerados incobráveis.

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1- BENETTI, Eduardo; SILVA, Lais Helena da. Perdas no recebimento de créditos: regras objetivas para dedutibilidade. Migalhas, 14 de fevereiro de 2017. Acesso: 26 jul 2020. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/depeso/253812/perdas-no-recebimento-de-creditos-regras-objetivas-para-dedutibilidade.

2- BRASIL. Justiça em números 2019. Brasília: CNJ, 2019.

3- CARVALHO, Ernesto Antunes de; CARVALHO, Tarsila Martinho Antunes de. A efetividade da execução civil na recuperação do crédito. In: MEDEIROS NETO, Elias Marques de; RIBEIRO, Flávia Pereira. Reflexões sobre a desjudicialização da execução civil. Curitiba: Juruá, 2020. p. 233 e segs.

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*Flávia Pereira Ribeiro é pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa (2020). Doutora em processo civil pela PUC/SP (2012). Mestre em processo civil pela PUC/SP (2008). Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP (2014). Membro do IBDP, do CEAPRO e do IASP. Membro do Conselho Editorial da Juruá Editora e da Revista Internacional Consinter de Direito. Diretora Jurídica da ELENA S/A. Sócia de Flávia Ribeiro Advocacia (desde 2008). Atuação no contencioso cível e imobiliário e consultivo imobiliário. Integrante da comissão de elaboração do PL 6.204/2019 - desjudicialização da execução civil.

*Co-autor Cláudio Cardona é advogado no escritório Cardona&Wanderley Advogados Associados. Mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Processo Civil Contemporâneo pela Universidade Federal de Pernambuco. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Conselheiro Pedagógico da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Presidente do Núcleo de Estudos Luso-Brasileiros da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Vice-Presidente do Núcleo Acadêmico de Lisboa do IBDFAM.

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