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Os acintes da nova Lei de Tóxicos

A nova Lei de Tóxicos, nº 11.343, publicada no dia 23 de agosto de 2006, e em vigor desde o dia 08 de outubro, trouxe substanciais - algumas delas desditosas - alterações no nosso ordenamento jurídico.

4/12/2006


Os acintes da nova Lei de Tóxicos

Paulo Bracks*

I - Introdução

A nova Lei de Tóxicos, nº 11.343, publicada no dia 23 de agosto de 2006, e em vigor desde o dia 08 de outubro, trouxe substanciais - algumas delas desditosas - alterações no nosso ordenamento jurídico.

À minha exegese, escudada no trabalho diário com a área criminal, a lei não atinge o escopo de repreensão dos crimes afetos aos entorpecentes, pois deixou de prever importantes artigos do anterior diploma, e alterou de forma contundente alguns dispositivos, chegando a ferir, inclusive, princípios comezinhos do nosso direito penal.

O presente estudo procurará trazer alguns acintes abrigados pela neófita lei - que revogou as Leis nº 6.368/76 e 10.409/02 -, sem possuir a altivez, entretanto, de esgotar todas as alterações feitas.

II - Do tráfico de drogas

Seguindo a cronologia da nova lei, ressalta-se, a priori, o artigo 33, substituto do antigo artigo 12, da Lei nº 6.368/76, referente ao tráfico de drogas.

A redação do caput quedou-se inalterada, todavia, a pena mínima cominada para o condenado nas iras do artigo 33 se elevou, eis que, antes, a menor reprimenda para o traficante era de 03 (três) anos de reclusão, passando agora para 05 (cinco) anos. Contudo, na prática, essa alteração nem sempre implicará maiores gravames ao agente, pois, dependendo do caso em julgamento, pode lhe ser até mais benigna em comparação à pena anterior.

De acordo com o §4º, do artigo em comento, os delitos definidos no caput e no §1º, poderão ter as penas respectivas reduzidas de 1/6 (um sexto) até incríveis 2/3 (dois terços), “desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”.

Preenchidos pelo condenado os requisitos do artigo 33, §4º, o mesmo terá sua pena-base reduzida em 2/3 (dois terços), ou seja, se estabelecida a reprimenda no mínimo legal, 05 (cinco) anos de reclusão, esta tornar-se-á definitiva, à míngua de outras circunstâncias, no vil e lúgubre patamar de 01 (um) ano e 08 (oito) meses de reclusão.

Como adendo, mister se faz ressaltar que, malgrado o termo ser ‘poderá’, a praxe jurídica indica que, quando se trata de ato judicial, esse verbo tem-se transformado em ‘deverá’, por traduzir direito público subjetivo do réu. O douto julgador, ao notar estar o agente incurso em todas as exigências expostas no malfadado §4º, terá de reduzir-lhe a pena em seu máximo grau.

Porém, é de se questionar, ante a novel redação, como o insigne julgador irá atestar se o acusado se dedica ou não às tais atividades criminosas? O que seriam atividades criminosas senão a própria incursão do réu nas iras de uma conduta definida, na lei, como crime? E a referida organização criminosa, como defini-la? Teremos clubes de narcotráfico dos quais os sócios poderão ostentar carteirinhas para, de posse de tais informações, o magistrado ser capaz de aferir se está ou não o réu “integrado em organização criminosa”? Talvez, a lamentável redação in fine do citado dispositivo pretenda que todo réu incurso e preso nas iras do artigo 33, da nova lei, afirme sem constrangimento, quando questionado acerca de sua profissão, ser “traficante de drogas da organização criminosa do meu bairro”.

Nenhum réu irá confessar ser partícipe de atividade criminosa ou esposar livremente ser integrante de uma cadeia organizada com o intuito de cometer delitos, ainda mais após passarem a ter ciência de que isso, não caracterizado, reduzirá suas penas. Ficará, por conseguinte, ao alvedrio do MM. Juiz, o que é assaz subjetivo e desprovido de segurança jurídica, estabelecer se o réu preenche ou não os requisitos trazidos pela lei para reduzir-lhe a pena em tão significativo patamar.

Destarte, não apenas a lamentável omissão sobre a falta de conceituação de atividade ou organização criminosa, mas, mormente, a teórica elevação da pena mínima concernente ao tráfico de drogas, ensejam merecidas censuras ao novo diploma especial.

De se ressaltar, também, a revogação pela novel Lei do anterior disposto no artigo 12, III, da Lei nº 6.368/76, que previa pena igual a do traficante para o agente que: “contribui de qualquer forma para incentivar ou difundir o uso indevido ou o tráfico ilícito de entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”.

Não obstante as denúncias que vierem a ser oferecidas por quem pratica a ação do extinto dispositivo possam ser descritas, em analogia, com fincas no atual artigo <_st13a_metricconverter productid="36, a" w:st="on">36, a alteração compele a Superior Instância a absolver os vários agentes condenados por fatos ocorridos sob a égide da 6.368/76, ante a aplicação imediata de lei mais benéfica ao réu, e impossibilidade da alteração da capitulação da exordial acusatória nesta fase processual.

III - Associação para o tráfico

Com relação ao delito de associação para o tráfico, crime autônomo que independe da ocorrência do tráfico de drogas em si (“Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts.33, caput, e §1º, e 34 desta lei”), a única alteração foi no quantum referente ao pagamento da multa cumulativa, tendo sido aumentado o dias-multa - antes de 50 (cinquenta) a 360 (trezentos e sessenta) - para 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos).

A crítica sobre o referido artigo não é ínsita, somente, à novel lei, eis que permaneceu inalterável a redação. Se o crime do artigo 35 - artigo 14, da Lei nº 6.368/76 - é, como frisado alhures, autônomo, seria de bom alvitre ter sido alterada a redação do artigo, conceituando melhor qual conduta traduz, de fato, o crime de associação para o tráfico. Pelo caput, presume-se que o condenado nas iras do artigo 35 tem de, necessariamente, ter praticado, associado a outrem, um dos crimes dos artigos 33 ou 34, o que não é verdade.

Sendo independente, o crime de associação prescinde da prática do tráfico de drogas pelo réu, sendo perfeitamente possível, ao contrário do que denota uma acurada leitura do caput, ser o agente denunciado e condenado somente nas iras do atual artigo 35. Já que a novel lei deveria pautar pela modernidade e atualização da antiga, esta redação não poderia ter continuado imutável.

IV - Da Causa de aumento pela associação eventual

Outra lamentável disposição da Lei nº 11.343/06 foi a revogação da anterior causa de aumento do tráfico de drogas, quando este era cometido em associação eventual.

A lei anterior, em seu artigo 18, III, previa como aumento de pena de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) caso o crime de tráfico fosse cometido em associação eventual, ou seja, praticado por, no mínimo, duas pessoas, desde que ausente entre elas a união estável, o animus presente no já citado artigo 35, da nova lei.

Quem lida com os processos de tráfico de drogas têm a ciência de que a maioria dos delitos desta jaez não são praticados pelo indivíduo sozinho, eis que, pela pluralidade de condutas concatenadas para a configuração cabal do delito, o usual é ser o crime eivado de auxílio de outrem, de um co-autor.

Vários réus denunciados nas iras dos antigos artigos 12 e 14 (atuais 33 e 35, respectivamente), acabavam por serem condenados nas sanções do tráfico de drogas, absolvidos do delito de associação, porém, terem a pena aumentada pela incidência da majorante do artigo 18, III, pela presença de pluralidade de agentes, mas ausência de união estável entre os mesmos para o cometimento do delito.

Ausente a caracterização da sociedade prévia e adrede avençada entre os réus que foram flagrados exercendo o nefasto comércio clandestino de drogas, o caso era de condená-los nas iras do tráfico, incidindo a justa causa de aumento da associação eventual, pela co-autoria efêmera. Todavia, isso não mais irá ocorrer, pela infeliz revogação do dispositivo.

Ademais, não tendo a novel Lei de Tóxicos previsto a majorante da associação eventual para o tráfico, o dispositivo, por ser mais benigno aos réus, possui aplicação imediata, conforme reza o artigo 2º, do Código Penal - novatio legis in mellius -: "A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”. Caso os autos subam à Superior Instância com recurso dos traficantes, condenados com a incidência da majorante do artigo 18, III, ser-lhes-á decotada tal pena por imposição legal, ainda que não exista pedido nesse sentido da defesa.

V - Do uso de entorpecentes

Por derradeiro, trazemos à baila talvez o maior acinte da novel lei, o artigo referente ao uso de entorpecentes. Com a redação atual do artigo 28, pasmen, o delito de uso de drogas não é mais punido com pena de detenção, tampouco pagamento de multa, como o era no artigo 16, da lei de <_st13a_metricconverter productid="1967. A" w:st="on">1967. A partir de 08 de outubro de 2006, o usuário, flagrado fumando seu ‘baseado’ de maconha, cheirando sua ‘carreira‘ de cocaína, ou degustando seu ‘cachimbo’ de crack, não poderá sequer ser preso, ante a vedação legal.

Consoante a noviça lei, através do artigo 28, as penas previstas para o usuário de drogas consistem em I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; e III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Se não bastasse retirar a pena de detenção e a multa do usuário condenado, ainda prevê a lei atual uma desconcertante e desafortunada advertência sobre os efeitos das drogas. Para prever tal reprimenda, partiu-se o legislador da premissa que o usuário desconhece os consectários do uso de drogas? Caso afirmativo, é de se lamuriar estar o legislador desprovido de informações sobre a hodierna sociedade, pois, os usuários são, geralmente, aqueles que mais conhecem os efeitos das drogas, sendo os malefícios, por mais que isso possa incomodar a inteligência de quem redigiu a lei, um dos atrativos do uso.

Ademais, quem fará e como será a primeira admoestação sobre os efeitos da droga? Aguardemos.

O usuário é o timoneiro da nau, o fomentador do tráfico de drogas, crime este que deveria ser coibido em todas as suas diretrizes, mormente em seu nascedouro. Seria mais fácil reprimir o delito de tráfico ilícito de entorpecentes se pudéssemos tentar impedir o crescimento desenfreado do número de incautos - ou dos calejados - usuários, sempre dispostos a desfazer de seu patrimônio com o fito de sustentar seu vício.

Outrossim, dúvidas pairam se o novo crime de uso de entorpecentes, pela ausência de previsão de qualquer pena - seja detenção ou reclusão - seria, de fato, um delito, sob o prisma do nosso ordenamento jurídico.

Com espeque no art.1º da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto Lei nº 3.914, de 9 de dezembro de 1941, assinado pelo então presidente Getúlio Vargas): “Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas. alternativa ou cumulativamente.”

Ora, partindo do silogismo oriundo da filosofia do direito, se crime é aquele no qual haja previsão de pena de detenção ou reclusão, e se o artigo 38 não prevê esses tipos de reprimenda, logo, não é delito, ao arrimo do nosso direito penal.

Destarte, até que as discussões sobre a descriminalização do uso de entorpecentes se encetem, o artigo encontra-se em vigor, para ser aplicado aos denunciados sob a égide da nova lei, e até mesmo em prol daqueles, que, mesmo condenados na jurisdição da lei antiga, possam ser beneficiados, com fulcro no já citado princípio do novatio legis in mellius.

VI - Conclusão

Ante o exposto, conclui-se que a neófita Lei nº 11.343/06, apesar das várias alterações na redação da revogada Lei nº 6.368/76, não obrou com a devida severidade que deveria nortear a entrada em vigor de dispositivos desta natureza na seara penal.

Porém, a benevolência aflorada da nova lei não mais assusta os operadores do direito penal, eis que, após ter nosso Excelso Supremo Tribunal Federal, intérprete maior da Constituição da República, julgado inconstitucional a vedação à progressão de regime aos condenados em crimes hediondos - v.g. estupro e homicídio qualificado - ou a eles equiparados - caso do tráfico de drogas -, era mesmo de se esperar legislações mais brandas.

Ora, embora seja vedada a aplicação de penas alternativas aos condenados por crimes hediondos ou a eles equiparados, isso, inclusive, já ocorreu, no julgamento do HC nº 84.928-MG, cujo relator foi o Ministro Cézar Peluso. In casu, o traficante de drogas teve sua pena de reclusão substituída por doação de cestas básicas, de onde se espera que, em pouco tempo, permanecendo a onda liberalizante difundida por nosso maior Tribunal, teremos o traficante sendo condecorado com uma medalha pelo dignificante munus que exerce.

A nova Lei de Tóxicos, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com esteio de seu Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos - dono de um dos maiores escritórios de advocacia criminal do estado de São Paulo -, deveria ser guiada pela austeridade, e não pela benevolência aos traficantes de drogas e seus inseparáveis comparsas, os usuários de entorpecentes.

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* Advogado e assessor judiciário da 1ª Câmara Criminal do TJ/MG.

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