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MPV 945 e a meia proteção do setor portuário

O cenário, ainda coberto pelas sombras das incertezas jurídicas provocadas pela caducidade da MPV 927, nos obriga a pontuar aspectos relevantes da norma citada nos entornos da proteção social devida aos trabalhadores e, consequentemente, dos operadores, gestores e tomadores de serviços diretamente impactados pela pandemia decorrente da Covid-19.

30/7/2020

O fim da vigência da Medida Provisória (MPV) 945 se aproxima, e a apresentação do Projeto de Lei de Conversão com aprovação parcial do texto será encaminhado ao Senado. O cenário, ainda coberto pelas sombras das incertezas jurídicas provocadas  pela caducidade da MPV 927, nos obriga a pontuar aspectos relevantes da norma citada nos entornos da proteção social devida aos trabalhadores e, consequentemente, dos operadores, gestores e tomadores de serviços diretamente impactados pela pandemia decorrente da Covid-19. 

Como tantos outros setores atingidos, o setor de transportes marítimos, que enfrenta disrupções sem precedentes, não foi diferente. Sobre ele deve recair atenção redobrada dada a essencialidade da atividade portuária que concentra quase que a totalidade da corrente de comércio exterior.

Sua edição, de 4 de abril de 2020, cuidou de resguardar o direito à saúde e prevenção à doença como direito constitucional indisponível, assegurando a criação de políticas públicas de prevenção da disseminação da doença, ao tempo em que determinou ao Estado a obrigação de gerar condições objetivas que possibilitassem a continuidade das atividades portuárias.

No texto, entre outras disposições, foi determinado o não escalamento dos trabalhadores avulsos portuários (TPA's) que apresentem sintomas compatíveis com a doença, ou assim diagnosticados, submetidos à medidas de isolamento domiciliar por coabitação com pessoa diagnosticada,  gestantes, lactantes ou com idade superior à 60 anos e comorbidades, sendo necessário o envio da documentação comprobatória de forma eletrônica ao Órgão Gestor de Mão de Obra (OGMO).

Durante o impedimento de escalação, previu-se pagamento de indenização compensatória mensal aos TPA's, no valor correspondente a metade da média mensal recebida por ele por intermédio do OGMO, entre 1º de outubro de 2019 e 31 de março de 2020, a ser custeado pelo operador portuário ou por qualquer tomador de serviço que a ele requisita TPA’s, que poderá ser reequilibrada e recomposta nos termos da Portaria 46 do Ministério da Infraestrutura.

Neste aspecto, na tentativa de compensar os prejuízos que serão suportados pelos operadores portuários no que diz respeito ao  pagamento das prestações indenizatórias, em seu parágrafo 5º, do artigo 3º,  foi garantido “desconto tarifário aos operadores portuários pré-qualificados que não sejam arrendatários de instalação portuária em valor equivalente ao acréscimo de custo decorrente do pagamento da indenização”, de modo à promover, ainda que parcialmente, o reequilíbrio econômico-financeiro.

Anote-se que ignorou a MPV a possibilidade de custear as indenizações  com os valores recolhidos ao Fundo Desenvolvimento do Ensino Profissional Marítimo – FDEPM, que é administrado pela Marinha do Brasil, de modo que não acarretaria impacto no fluxo de caixa de operadores portuários, terminais arrendados e terminais de uso privado, tema amplamente defendido pelos Terminais de Uso Privado (TUP's) que, por sua vez, ficaram fora da abrangência da medida debatida. Ambas as sugestões, porém, foram parcialmente sanadas pelo PLV.

Contrariando a Lei 12.815/2013, a MPV trouxe também uma inusitada situação com relação à exclusividade do trabalho portuário, ao determinar na cabeça do  artigo 4º - de constitucionalidade questionada pela ADI 6404 e não modificada  no texto do PLV -  o seguinte:

Art. 4º. Na hipótese de indisponibilidade de trabalhadores portuários avulsos para atendimento às requisições, os operadores portuários que não forem atendidos poderão contratar livremente trabalhadores com vínculo empregatício por tempo determinado para a realização de serviços de capatazia, bloco, estiva, conferência de carga, conserto de carga e vigilância de embarcações.  

Nessa esteira, deduz-se que o OGMO, enquanto responsável pela cessão de trabalhadores portuários para trabalhar com vínculo empregatício por prazo indeterminado junto ao operador portuário, deva manejar esta contratação. Mesma conduta deve observar o operador portuário, quanto à mão de obra do trabalhador portuário avulso, que atende os requisitos da escalação e do registro no OGMO, a teor do artigo 32, inciso II, da Lei nº 12.815/2013 e no artigo 5º, da Lei nº 9.719/1998.

A indisponibilidade é tratada na medida como  “qualquer causa que resulte no não atendimento imediato às requisições apresentadas pelos operadores portuários ao Órgão Gestor de Mao de Obra, tais como greves, movimentos de paralisação e operação-padrão”, sendo de bom tom concluir que o Executivo desviou os motivos que levaram a publicar a MPV. É que com essa permissão e a manutenção do seu texto no PLV, a prorrogação de contratação por tempo determinado pode se perpetuar no período pós-pandemia.

Não houve, portanto, tratamento isonômico aos trabalhadores portuários, isso por que o impedimento temporário ao trabalho ficou restrito ao trabalhador portuário avulso, ficando à margem o trabalhador portuário empregado, podendo assim dizer, que a Medida Provisória ao tratar de forma desigual os iguais, viola o principio constitucional da isonomia entre a mesma categoria de trabalhadores, mediante o contido no caput do artigo 5º da Carta da República e  artigo 7º, inc. XXXIV,  princípio da isonomia como direito e garantia fundamentais. 

Essas referências remetem inegáveis questões polêmicas trazidas pela medida que nem sempre são dotadas de relevância e urgência e que, por isso, fogem do objeto principal, qual seja, a proteção à saúde do trabalhador e manutenção da atividade portuária, de maneira que diversas instituições representativas dos trabalhadores, gestores e operadores interpretam que houve verdadeiro proveito político da crise instaurada para suprimir direitos e proteções e delegar deveres.

DA ADEQUAÇÃO DA PROTEÇÃO SOCIAL DEVIDA

Delimitada a figura da “meia-proteção” prevista na MPV 945, que prevê pagamento em pecúnia de meia renda indenizatória injustificadamente custeada, num primeiro momento, pelo tomador de serviços, é preciso reparar que os trabalhadores avulsos, enquanto segurados obrigatórios do Regime Geral de Previdência Social, necessitam de maior atenção e devem estar protegidos do ponto de vista não apenas assistencial ou indenizatório, mas, sobretudo, previdenciário e, portanto, dotados de garantias constitucionais que lhe são inerentes.

Conforme já debatido pela coautora em artigo diverso, a finalidade do benefício previdenciário no cenário atual - além do seu potencial mecanismo de redistribuição de renda, é a cobertura efetiva da situação de risco social traduzida na impossibilidade da realização do trabalho em detrimento de restrições sanitárias, das quais não se discute sua necessidade e importância.

A incapacidade para o trabalho portuário, que não pode ser exercido remotamente, contempla a ideia de que o risco social a ser acobertado pela Previdência Social é a incapacidade e não a doença, especialmente após a alteração do texto constitucional promovido pela EC 103, que passou a nomear o auxílio-doença como auxílio por incapacidade temporária.

Se analisarmos a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - CID 10, observaremos que a determinação de afastamento por exposição a fatores de risco, codificada com a CID  10 - ZZ57, pode ser fator determinante para concessão de benefício de ordem previdenciária ao ser visualizada em conjunto com o contexto social vivenciado pelo segurado.

Muito embora o PLV preveja que as indenizações pagas aos TPA's sejam vinculadas ao salário mínimo como sendo o menor valor do benefício indenizatório, como expõe o relator Dep. Felipe Francischini (PSL-PR) nos motivos das aprovações das respectivas emendas, o texto propriamente dito não é muito claro quanto ao ponto, pairando a dúvida sobre a limitação ser relacionada à média salarial, nela incidindo o percentual de 50%, ou a indenização em si. Ainda que o fosse, é inegável que a prestação previdenciária deve anteceder a prestação indenizatória ou assistencial.

Na mesma linha de raciocínio, em maio de 2020,  a Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou dois estudos em que alertam: “os atuais déficits de proteção social podem comprometer os planos de recuperação, expor milhões de pessoas à pobreza e afetar a capacidade de reação global para enfrentar crises semelhantes no futuro. Os documentos analisam detalhadamente o papel das medidas de proteção social no enfrentamento do surto de COVID-19 nos países em desenvolvimento, incluindo a concessão de auxílio-doença durante a crise.”

O documento  denominado Social protection responses to the COVID-19 pandemic in developing countries  descreve a proteção social como “um mecanismo indispensável para fornecer apoio às pessoas durante a crise”. Já o documento intitulado Sickness benefits during sick leave and quarantine: Country responses and policy considerations in the context of COVID-19,  trata especificamente da necessidade de benefícios previdenciários durante a quarentena e a necessidade de adequação em caráter de urgência quanto eventuais lacunas normativas.

É certo que as medidas tratadas na MPV 945, que preveem suporte indenizatório prestado ao trabalhador a ser operado pelo órgão gestor, subvertem a ordem constitucional previdenciária e devem ser examinada à luz da legislação vigente que, dentro do contexto mencionado, são indiscutivelmente menos vantajosas do que a cobertura social previdenciária devida tanto para os trabalhadores, quanto para os gestores, operadores, tomadores de serviços e terminais, enquanto financiadores do sistema de seguro social.         

Sendo assim, a proposta trazida ao debate é legítima por seguir no sentido de aliviar economicamente as relações portuárias, de modo à garantir aos trabalhadores avulsos a proteção previdenciária adequada, cujos campos ainda inexplorados precisam ser imediatamente debatidos - assim como o fez a OIT - visando garantir a sobrevivência de boa parte do sistema e manutenção dos postos de trabalho em seu devido lugar.

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Proteção previdenciária no sistema constitucional de crise

Social Protection Spotlight. 

Social protection responses to the COVID-19 pandemic in developing countries: Strengthening resilience by building universal social protection.

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*Marília Lira de Farias é advogada, especialista em Direito Previdenciário e sócia do escritório Farias e Coelho Advogados

*Rosete Soares é advogada, especialista em Direito Previdenciário, Diretora da AAPREV  - Associação dos Advogados Previdenciaristas de Pernambuco e diretora do Instituto de Advogados Previdenciários de Pernambuco - IAPE.

 

 

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