No dia 21/7/20, foi publicada a lei 14.027/20, que trata das regras para distribuição gratuita de prêmios por Organizações da Sociedade Civil, também chamadas de Terceiro Setor. As OSCs são entidades privadas que atuam em áreas de interesse social, sem finalidade lucrativa. Para manter a execução dessas ações, que são realizadas em campos como assistência social, saúde, cultura e educação, é muito comum que as organizações arrecadem recursos por meio de sorteios de brindes, rifas e iniciativas semelhantes. O dinheiro obtido é revertido para as atividades de interesse social, que geram alto impacto em prol da população. Pesquisa realizada pelo Fórum Nacional das Instituições Filantrópicas (FONIF) apurou que, a cada R$1,00 disponibilizado para essas instituições, é entregue em média para a população o equivalente a R$7,39 em serviços de relevância social prestados pelo Terceiro Setor1. Logo, as OSCs disponibilizam para a sociedade um valor muito superior ao montante nominal dos recursos que gerenciam.
Por se tratar de uma situação bastante comum entre as OSCs e por ser notório que a arrecadação dos valores é aplicada em projetos sociais, a lei 13.204/05 previu que as organizações poderiam “distribuir ou prometer distribuir prêmios, mediante sorteios, vale-brindes, concursos ou operações assemelhadas, com o intuito de arrecadar recursos adicionais destinados à sua manutenção ou custeio”, sem que, para isso, fosse necessária algum tipo de certificação. Porém, essa redação era fonte de dúvidas, porque não deixava claro se isso significaria então uma dispensa de todas as regras previstas na lei 5.768/71, que determina a necessidade de autorização prévia por parte do Ministério da Fazenda/Economia para que um particular possa realizar sorteios com prêmios. Essa norma exige, além de um complexo procedimento de liberação junto ao Poder Público, o pagamento pelo requerente de uma “taxa de distribuição de prêmios", no montante de 10% do valor total da promoção.
Diante disso, em 2020 foi feita uma proposta legislativa, por meio do projeto de lei de conversão 16/20, relativo à medida provisória 923/20. No caso, o Congresso Nacional sugeriu explicitar que a realização de sorteios pelas OSCs dependeria de autorização prévia, nos moldes da lei 5.768/71, caso a distribuição gratuita de prêmios fosse superior a R$10.000,00 ao mês. Abaixo disso, não haveria necessidade do procedimento, o que certamente traria mais segurança jurídica às milhares de entidades que realizam esse tipo de arrecadação em todo o Brasil, para ajudar a manutenção das suas atividades em prol da população. E essa proposta ainda tinha o mérito de, ao prever um limite para a dispensa das exigências, evitar o surgimento de OSCs de fachada que tivessem como função apenas conferir uma aparente legalidade à exploração de jogos de azar com premiações.
Porém, de forma surpreendente, o Executivo Federal vetou a dispensa do procedimento de autorização prévia para distribuição de prêmios de menor valor. A justificativa para tanto na exposição de motivos para o veto foi, nos dizeres da Presidência da República, que “a permissão conferida pelos dispositivos, sem a previsão de autorização prévia do poder público, inviabiliza a demanda fiscalizatória que garante mecanismos de controle do Estado, principalmente, no que tange à lavagem de dinheiro, à sonegação fiscal e à adoção de práticas de proteção”2. Entretanto, isso é um equívoco, que desconsidera não só os benefícios da atuação do Terceiro Setor, como também os princípios da Eficiência e da Economicidade, contradizendo até mesmo regras há muito consolidadas no próprio Poder Executivo Federal a respeito de situações cujo custo de controle não se justifica.
Em que pese alguma divergência doutrinária, normalmente o princípio da Eficiência é entendido como a busca pela forma de atuação que gere o melhor resultado, quanto a Economicidade foca em análises de custo-benefício, de modo que um ato cujo custo supere os ganhos sequer deve ser realizado. Esses princípios estão expressamente previstos em várias normas referentes ao Poder Público e ao Terceiro Setor, como os artigos 37 e 70 da Constituição da República, bem como o decreto-lei 4.657/42 e as leis 9.637/98, 9.790/99, 13.019/14 e 13.874/19, por exemplo. Porém, considerando tais premissas (que devem ser aplicadas pela Administração Pública) é fácil perceber que submeter as OSCs à obrigação de autorização prévia para realização de sorteios, independente do seu valor, não é eficiente e nem econômico.
Nesse sentido, é importante notar que o Governo Federal já havia entendido que não justifica a atuação da máquina pública em casos que envolvam questões de menor valor, sobretudo porque o próprio custo da fiscalização nesses casos é maior do que eventual benefício ao interesse social que possa decorrer desse tipo de controle. Considerando a justificativa dada pelo Executivo Federal para vetar a dispensa de autorização prévia para sorteios de valor inferior a R$10.000,00, é importante então examinar a forma de atuação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), órgão responsável pelo combate à lavagem de dinheiro. Nesse sentido, é curioso notar que o próprio COAF dispensa qualquer controle sobre operações em espécie ou envolvendo bens cujo valor seja inferior a R$10.000,003. Ou seja: ao contrário do que consta na justificativa de veto, o próprio órgão público de controle e repressão à lavagem de dinheiro não atua nos casos que o Executivo alegou precisarem ser objeto de fiscalização.
Na mesma linha, a portaria 349/18 da Advocacia-Geral da União (AGU) dispensa o ajuizamento de ações ou outros procedimentos quando o crédito discutido seja igual ou inferior a R$10.000,00, salvo nos casos de multas. Essas normativas da AGU e do COAF deixam bastante claro que já foram feitas análises, dentro do próprio Governo Federal, que concluíram ser antieconômico estabelecer regras de controle e fiscalização em casos de menor valor. O dispositivo da lei 14.027/20 que foi vetado seguia exatamente as mesmas premissas, logo é incoerente alegar que o veto seria necessário por razões de combate à lavagem de dinheiro ou à sonegação fiscal, ao contrário das justificativas apresentadas pelo Governo Federal.
Do ponto de vista da eficiência, a conclusão também é pelo equívoco do veto. Como indicado pela pesquisa do FONIF, o Terceiro Setor promove um efeito multiplicador sobre os recursos que arrecadam, entregando à sociedade um valor muito maior na forma de serviços de interesse público. Se for mantido o veto, de modo a exigir que qualquer ação de captação de recursos para as OSCs por meio da realização de sorteios e ações similares dependa de autorização prévia, no mínimo haverá custos que a entidade deverá suportar para conduzir o procedimento e quitar as taxas exigidas pela lei 5.768/71. E, logicamente, os valores gastos com isso não poderão ser aplicados nas atividades de interesse social, diminuindo seu impacto e prejudicando a população.
Assim, fica bastante claro que o veto é extremamente prejudicial ao Terceiro Setor e ao público que é atendido pelas ações executadas pelas OSCs, além de ser ineficaz em relação aos objetivos que foram alegados para barrar a regra da dispensa de autorização prévia nos casos de menor valor. Logo, é muito importante que o veto seja derrubado pelo Congresso, sobretudo porque a lei 5.768/71 não deu margem para a regulamentação (que ainda será editada) resolver o problema que foi criado, uma vez que a ela caberá apenas “tratar da limitação do número de sorteios e da aplicação de taxa de fiscalização das operações promovidas por organizações da sociedade civil”4. Somente dessa forma o interesse público será de fato atendido.
_________
_________
*Renato Dolabella Melo é advogado do escritório Dolabella Advocacia e Consultoria. Doutor e mestre em Propriedade Intelectual e Inovação. Mestre em Direito Econômico. Pós-graduado em Direito de Empresa.