Aprovado o texto do PL 4162/19, que atualizou o marco legal do saneamento, com importantes avanços regulatórios e instrumentos que garantirão investimentos no setor de Água e Esgoto, verificou-se a esdrúxula jabuticaba inserta, possibilitando que a contratação do serviços de Limpeza Urbana e Manejo de Resíduos Sólidos fossem mantidos sob a sombra dos ultrapassados contratos de programa, ou seja, excluídos da obrigação transparente e inexcusável de licitação prévia à delegação de tais serviços.
Em bom tempo o malfadado artigo foi objeto de veto presidencial, exatamente por quebrar a isonomia entre as atividades do Saneamento Básicoe por impactar negativamente na livre concorrência de mercado.
Contudo, no interregno, assistiu-se à SABESP, empresa de economia mista tutelada pelo Governo do Estado de São Paulo, celebrar, à sorrelfa e à socapa, contrato de programa com o Município de Diadema no dia 30/6/20, informando em singelo extrato de contrato que o objeto do instrumento é a “prestação de serviços públicos de tratamento e destinação final de resíduos sólidos e arrecadação de taxa do lixo no Município de Diadema, pelo prazo de 40 (quarenta) anos”.
Interessante cronologia culmina do dito contrato de programa:
- Em 12 de fevereiro de 2020 o Prefeito submeteu à Câmara de Diadema o projeto de lei para autorizar o Poder Executivo a celebrar convênio de cooperação, contrato de programa, termos aditivos e outros ajustes com o Estado de São Paulo, Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo — ARSESP e a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo — SABESP
- Em 13 de fevereiro de 2020 a Câmara de Vereadores aprovou na íntegra e sem outros debates o referido projeto;
- Em 14 de fevereiro de 2020 foi sancionada a Lei Municipal de Diadema nº 3949/2020, devidamente publicada no dia seguinte.
- Em 30 de junho de 2020 foi assinado o contrato de programa em questão, que, até a presente data, teve sua publicidade restrita ao singelo extrato mencionado acima, sem que ninguém, a não ser as partes, tenha conhecimento de sua íntegra.
Aos incautos poderá parecer que o decurso de mais de 130 dias entre a sanção da lei e a celebração do instrumento demonstre o aprofundamento e respeito aos procedimentos indispensáveis à delegação dos serviços de gestão e manejo de resíduos sólidos.
Contudo, exatamente ao contrário, verifica-se na prática que a SABESP acelerou todo o procedimento, com absoluto desrespeito às etapas exigidas pela própria legislação de regência para o Saneamento Básico (Lei 11.445/07).
No intuito de iluminar os até aqui impublicados atos que geraram o famigerado contrato de programa é de se notar que a lei 11.107/07, que disciplina essa modalidade de contratação, não deixa dúvidas que mesmo sem licitação, o contrato de programa não se exime das demais exigências feitas à qualquer delegação de serviço público.
Nesse sentido, a própria Lei Municipal de Diadema 3949/20 traz, em seu artigo 1º, § único que os instrumentos e ajustes referidos no caput deste artigo terão por fundamento, dentre outros, a lei federal 11.445/07.
O interessante é notar que a Lei Federal 11.445/07 traz, em seu artigo 11, como condição de validade da pretendida delegação dos serviços de gestão e manejo de resíduos sólidos, dentre outras:
a) a existência de estudo comprovando a viabilidade técnica e econômico-financeira da prestação universal e integral dos serviços, nos termos do respectivo plano de saneamento básico;
b) a realização prévia de audiência e de consulta públicas sobre o edital de licitação, no caso de concessão, e sobre a minuta do contrato.
Salta aos olhos que inexistiu a consulta pública prévia sobre a minuta do contrato de programa celebrado com a SABESP ! Aliás, nem mesmo o contrato em si, já assinado, está disponível até a presente data, para consulta nos portais da transparência.
A consulta pública da minuta do contrato, antes de sua celebração, não somente é um requisito legal indispensável, como também a participação popular em temas desse jaez é indissociável dos valores tutelados pela Administração Pública, sujeita ao controle legal e democrático de suas atividades.
Em relação ao Estudo de Viabilidade Técnica e Econômico Financeira – EVTE, tem-se que igualmente não existe, ou, se existe, não é público, o que implica em grave infração aos mais básicos deveres da administração pública, pois o ato administrativo não publicado é inexistente.
Ademais, o EVTE vem definido como condição de validade dos contratos que tenham por objeto quaisquer dos serviços públicos de saneamento básico, inclusive os de programa, nos termos do artigo 2º, I da Portaria nº 557/2016, do Ministério das Cidades, reiterando a disposição legal não cumprida pelo Município de Diadema e pela SABESP.
Anote-se, que não só a inexistência do EVTE, como igualmente a absoluta ausência de um projeto técnico específico para qual será a solução ambientalmente adotada para destinação dos resíduos sólidos, torna indene de dúvida que todo o planejamento dos serviços a serem prestados ficará à cargo da própria SABESP, que fará, para tanto, um chamamento público.
Entretanto, o §3º do artigo 13 da Lei 11.107/07, que exatamente regula os contratos de programa, é insofismável em declarar nula de pleno direito essa disposição, configurando-se mais uma ilegalidade na já longa lista existente.
Não fossem suficientes tamanhas ilegalidades até aqui apontadas, a maior mazela trazida pelo contrato de programa é decorrente da absoluta ausência de concorrência livre e isonômica, tungando-se um setor movimenta hoje 28 bilhões por ano e emprega quase 350 mil pessoas.
A delegação de tais serviços, sem nenhum tipo de licitação, sem a observância dos mínimos requisitos de validade, a uma empresa com tentáculos públicos e privados, como a SABESP, representa verdadeiro ato de concentração vertical do mercado.
Como muitíssimo bem explanado em artigo assinado pelos presidentes das entidades que representam a atividade econômica da Limpeza Urbana: “a iniciativa solapa a atividade de mais de 400 empresas privadas - 126 só em São Paulo, que se dedicam à limpeza urbana, coleta e destinação final de resíduos, na medida em que objetiva oferecer esses mesmos serviços às prefeituras de todo o País, de forma tarifada, valendo-se do artifício dos contratos de programa para se esquivar da concorrência com as operadoras privadas e aumentar arbitrariamente os lucros da nova empresa”.
E atos de concentração são nocivos não só às empresas do setor, como também e principalmente, aos munícipes usuários dos serviços.
De se notar que a legislação municipal comentada transfere a arrecadação da taxa de lixo para a SABESP, mas mantém a coleta de lixo e varrição de ruas como serviço da Prefeitura.
Salta aos olhos, ainda, que é do Município a responsabilidade pelo equilíbrio econômico-financeiro do contrato em questão, mediante suplementação orçamentária específica e previamente prevista no Orçamento Anual (artigo 7º).
Em outras palavras, o Município aportará recursos sempre que que as despesas da SABESP forem superiores à taxa arrecadada.
Considerando-se que inexiste mágica que permita a multiplicação do dinheiro, e que a lei municipal determina que esses valores sejam destinados exclusivamente ao contrato de programa para o tratamento e destinação final dos resíduos, outro não será o resultado que a oneração dos já combalidos cofres municipais, que perdem uma das fontes de custeio mas mantém a titularidade da obrigação da realização de coleta de resíduos e varrição de ruas.
Ora, a oneração do Erário nada mais é do que a oneração dos munícipes, que deverão arcar, necessariamente, com o aumento escalonado do custo de serviços.
O escalonamento nos custos dos serviços de coleta, varrição e destinação final de resíduos sofrerá impacto, ainda, com a inédita figura do intermediador de serviços entre o Município e o setor privado.
Isto porque não só a lei que delegou os serviços permite a subcontratação INTEGRAL dos serviços de tratamento e destinação final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos urbanos, mediante a contratação pela própria SABESP de empresa privada que preste tais serviços, como é intenção expressa e declarada das partes celebrantes desse contrato inédito de intermediação.
Chama atenção a reportagem publicada pela Prefeitura de Diadema, asseverando que “A contratação do operador será feita por meio da formação de uma Sociedade de Propósito Específico (SPE), formada por Sabesp e parceiro privado. A seleção será feita por chamamento público, nos termos do Regulamento Interno de Licitações e Contratações da Companhia. Assim, serão selecionados um ou mais sócios que reúnam capacidade de investimento, know-how para operar a unidade de processamento de resíduo e expertise na comercialização da energia elétrica. A SPE será a única empresa apta a tratar o lixo do município de modo eficiente e transformá-lo em energia.”
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Vale dizer: a SABESP sozinha não é apta nem a tratar o lixo do município, muito menos a transformá-lo em energia.
Por sua vez, falando ao jornal Valor, o presidente da SABESP, Benito Braga afirmou que o plano da SABESP é oferecer o serviço por meio de uma pareceria com o setor privado. A companhia paulista abrirá um chamamento público para selecionar a empresa, com que formará uma joint venture. Caso não tenha sucesso, a companhia irá avaliar se consegue fazer o projeto sozinha ou se o acordo será rompido.
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Trata-se, como se vê, de mais um descaso com a coisa pública, em serviço de natureza indispensável para a saúde da população e que vem sendo mantido e prestado diretamente por empresas que, participantes de uma licitação, assumem o projeto sem nenhuma dúvida de serem capazes.
Questiona-se qual é o objetivo de contratar um projeto inexistente, pois será obtido em um chamamento público posterior, com uma empresa de economia mista, com ações listadas na Bolsa de Valores, que por sua vez, irá contratar uma empresa com expertise na área para executar os serviços delegados à SABESP, que não tem certeza de conseguir fazê-lo sozinha?
Cabe ressaltar aos ideólogos dos subsídios cruzados e alegados benefícios de cooperação entre entes públicos, que, sendo a SABESP companhia listada em bolsa, não poderá operar com prejuízo ou sem auferir lucro, sob pena de responder gravemente a seus acionistas e à própria CVM. Mais, a empresa que formará a propalada “joint venture” com a SABESP, por óbvio, também precisará ser remunerada pelo serviço executado.
Corolário lógico, o munícipe de Diadema pagará à SABESP através da taxa de lixo e através das dotações orçamentárias suplementares, como também pagará ao município pela coleta e varrição dos resíduos, já que estes não compõem as atividades delegadas no contrato de programa. Como se não bastasse, os valores pagos pelos munícipes deverão remunerar a SABESP e a empresa parceira que ela contratar para executar os serviços inicialmente a ela delegados.
Evidente está que o resultado desse contrato de programa não será outro que não a bi (ou múltipla) tributação dos munícipes de Diadema, que acabarão por pagar, direta ou indiretamente, por serviços que poderiam ser diretamente prestados pelas empresas do setor, através de parcerias públicas ou concessões, devida e diretamente licitadas pela Prefeitura de Diadema, sem a atuação (e remuneração) do intermediário gigante que é a SABESP.
Quem perde com o contrato de programa celebrado?
- Sem dúvida, as empresas que se dedicam há anos aos serviços de Limpeza Urbana e Gestão e Manejo de Resíduos Sólidos, bem como seus empregados.
- Os munícipes de Diadema, que passarão a remunerar uma verdadeira agência de intermediação, do tamanho da SABESP.
- O cofre público local, que entregará a taxa de lixo municipal à SABESP, hoje na ordem de R$ 14 milhões por ano, terá a responsabilidade de aportar mais recursos para “equilibrar” o contrato de programa e ainda custeará os serviços de coleta e variação de resíduos.
O Meio Ambiente, que vê todos os serviços de gestão e manejo de resíduos sólidos entregues por 4 décadas à empresa que não tem qualquer expertise no setor, sem qualquer estudo prévio da viabilidade técnica ou financeira da delegação feita, sob risco concreto de, em alguns meses ou anos, estar o município de Diadema sem qualquer tratamento e disposição final de resíduos, na medida em que à SABESP reserva-se o discutível direito de romper o acordo, caso não encontre um parceiro privado.
Quem ganha com o contrato de programa celebrado?
Espera-se do Congresso a manutenção do veto presidencial, sem o qual jogar-se-á a conta para o meio ambiente, para as empresas e para o cidadão, sem qualquer garantia de prestação de serviços ambientalmente adequados.
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