Introdução
Juiz há quase trinta e sete anos, sempre me estremeceu a possibilidade de cometimento de injustiças na área criminal. Talvez por isso, na judicatura, tenha buscado refúgio em outras áreas do direito. Contudo, depois de exercer a Presidência do Tribunal de Justiça, o destino – sempre ele –, a fórceps, deu-me assento em uma das Câmaras Criminais, onde, como um bebê, ainda engatinho na matéria penal.
Não era minha intenção escrever um artigo acadêmico a propósito de tão palpitantes temas, como os referentes aos standards de provas no processo penal e a consideração das informações do inquérito policial na decisão de pronúncia. Foi a necessidade, nascida de um caso concreto que está sob minha relatoria, que me atiçou para entender um pouco melhor o nível de exigência probatória que o juiz criminal deve considerar em cada decisão que profere no processo.
O foco maior, no voto prolatado, foi estabelecer o standard de prova que o juiz deve trabalhar na pronúncia e a possibilidade de o juiz considerar as informações do inquérito policial para remeter o réu a julgamento popular. Meu propósito, em tornar públicas as considerações que expendi no julgamento, é despertar reflexões, especialmente nos juízes que atuam na área criminal.
Os standards de provas
Os standards de prova são modelos de constatação ou de verificação de fatos no processo, no nível e exigência que a lei considera como necessária e suficiente para aceitar como demonstrada uma ou mais proposições, segundo o grau de probabilidade que a decisão reclama.
Trata-se de técnica estabelecida como regra de decisão para que se possa admitir provada determinada hipótese, para os fins e consequências pretendidas por quem tem o ônus de demonstrar suas afirmações.
Em todas as áreas de conhecimento humano, incluindo as ciências naturais, as provas clínicas em medicina, as matemáticas, os estudos epidemiológicos, etc., o investigador trabalha com parâmetros que possa informar-lhe quando se pode considerar algo como provado1.
No campo do direito, os standards se prestam a orientar o juiz e as partes informando-lhes o grau de corroboração que as provas devem atingir para que um enunciado fático possa ser considerado provado. As partes devem saber, de antemão, quais esforços devem empreender para alcançar a suficiência probatória exigida. Por isso, Jordi Ferrer Beltrán destaca como crucial a importância de definir, com claridade, todos os standards de prova que devem orientar as decisões proferidas no processo, uma vez que “sem eles não se pode pretender uma valoração racional da prova, nem um controle da valoração realizada”2.
Conhecendo a parte seu ônus probatório e o standard de prova que o juiz exigirá para considerar provado o enunciado fático afirmado –, de acordo com critérios objetivos –, pode ela controlar o aval dado na decisão, diminuindo-se os riscos do solipsismo judicial.
Daí a importância de extrair da legislação quais os graus de constatação que as decisões tomadas no processo exigem para que um fato possa ser tido por provado.
Larry Laudan chega a dizer que nenhum procedimento penal que mereça seu nome pode ter lugar na ausência de um standard de prova. O dito standard serve como regra de decisão para que o julgador dos fatos alcance o veredicto do caso. Sem um standard de prova, o veredicto mesmo não estará justificado e qualquer declaração de culpabilidade será injusta, a menos que se possa mostrar que as provas apresentadas contra o acusado satisfazem o standard probatório preestabelecido3.
A título de registro histórico, segundo Jordi Nieva Fenoll, os juristas anglo-saxões do século XVIII e XIX, ante a impossibilidade de instruir os jurados sobre o nível de prova a se observar nos julgamentos, criaram os chamados standards, que nada mais são do que frases ou expressões elegantes para esclarecer a um leigo qual é a sua missão4.
De fato, nos países com tradição no sistema common law, os jurados, chamados a decidir inclusive as causas de natureza civil, normalmente são orientados pelo juiz togado a respeito do grau de certeza que devem obter para considerar um fato provado.
Os standards probatórios têm sido pouco estudados, e menos ainda observado, no direito brasileiro, especialmente na área penal, o que tem servido para encorpar as estatísticas de erros judiciários.
Tivessem, os juízes, parâmetros sobre o grau de suficiência probatória que deve servir a determinada decisão, teríamos menos condenação do que a realidade mostra. A verdade é que as decisões, principalmente na área penal, são tomadas sob o standard da “preponderância das provas”, do “mais provável que não”, o que é um disparatado absurdo.
O estabelecimento de standards probatórios não é uma questão epistemológica5, mas fruto de decisão ética e política6. O fundamental, dizem os epistemólogos, é saber qual o grau de erros que uma sociedade esteja disposta a tolerar diante da importância aos seus valores e interesses. São os custos sociais e individuais que se pesam.
Quando se protege o réu de condenações injustas, é a sociedade que é protegida. Nosso sistema considera que a liberdade, como direito fundamental do homem e valor supremo da dignidade da pessoa humana, deve prevalecer acima de outros valores ou interesses da sociedade. Naturalmente que, em sendo assim, manifesta ele preferência de que mais vale a pena correr riscos de absolver um culpado (falso negativo) do que condenar um inocente (falso positivo). É verdade que, à medida que cresce o standard, diminui-se o número de falsos positivos, ainda que aumente o de falsos negativos.
Por conseguinte, a definição de um standard probatório, sendo de caráter ético-político, obedece à importância que se dá ao direito ou ao interesse afetado por uma decisão errônea, de acordo com a proteção que gozam dentro do ordenamento jurídico. Quanto mais relevante for o direito ou interesse, mais rigoroso será o standard probatório.
Todavia, o nível de prova exigido vai além da natureza dos bens envolvidos, dependendo também do grau de afetação da decisão sobre eles. Evidentemente que o nível de exigência de uma busca e apreensão domiciliar não pode ser o mesmo de uma prisão preventiva ou de uma condenação. Do mesmo modo, o standard de prova de uma ação indenizatória decorrente de um homicídio não pode ter o mesmo peso da decisão que condena o causador do dano a cumprimento de pena.
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1 Larry Laudan, Verdad, error y proceso penal, Ed. Marcial Pons, 2013, p. 124.
2 La valoración racional de la prueba. Ed. Marcial Pons, 2007, p. 152.
3 Estándares de prueba y prueba científica. La elemental aritmética epistémica del derecho II: los inapropriados recursos de la teoria moral para abordar el derecho penal. Ed. Marcial Pons, 2013, p. 121.
4 La valoración de la prueba, Ed. Marcial Pons, 2010, p. 90.
5 “Efetivamente, a decisão sobre o nível de suficiência probatória não é em absoluta epistemológica. A epistemologia nos pode ajudar a delinear um standard de prova que reflete corretamente o nível de suficiência probatória que se tenha decidido adotar, mas não nos diz nada sobre o nível dele. Essa é uma decisão política” (Jordi Ferrer Beltrán. ob. cit., p. 32-33).
6 Especialmente em matéria penal, a lei não delega ao juiz a tarefa de fazer a distribuição dos erros judiciais no processo, a critério de suas escolhas pessoais. O ordenamento jurídico não lhe dá carta branca para assumir os riscos de uma condenação falsa (falso positivo), que transcende sua convicção particular acerca do fato criminoso, pois são os valores, os interesses e as preferências sociais que contam na hora de decidir. A distribuição de erros é questão afeta à política social, que só o Estado pode definir.
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