O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em 18.12.19, concluiu o julgamento do Recurso em Habeas Corpus (RHC) 163.334, reconhecendo que configura crime de apropriação indébita tributária (art. 2º, II, da lei 8.137/90) deixar de recolher, de forma contumaz e com dolo, o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço.
Desde que tal decisão fora proferida, os debates acadêmicos em torno do mencionado tipo penal e seus desdobramentos se intensificaram. Assim, para além das críticas quanto ao enquadramento da conduta neste tipo penal (com o que não concordamos), buscando colaborar com as discussões, avaliaremos neste artigo os contornos traçados pelo STF para este tipo penal e alguns desdobramentos práticos da decisão, que poderão gerar ainda mais controvérsias.
A apropriação indébita tributária e o RHC 163.334
O art. 2º, II, desta lei estabelece que constitui crime contra a ordem tributária “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. Este é o denominado “crime de apropriação indébita tributária”, objeto de análise do STF no RHC 163.334.
Como se em sua essência, os crimes contra a ordem tributária envolvem, de uma forma ou de outra, a falta de pagamento de tributo. Ocorre que, o Ordenamento Jurídico brasileiro repudia a mera prisão por dívidas.
A esse respeito, nota-se que, à luz da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), ninguém deve ser detido por dívidas, ressalvados os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. Tal princípio é reiterado no art. 5º, LXVII, da Constituição Federal. Portanto, juridicamente, a regra é a vedação da prisão por meras dívidas.
Nesse tocante, o STF já teve a oportunidade de avaliar a compatibilidade dos crimes contra a ordem tributária com a vedação da prisão por dívidas. Assim, no Recurso Extraordinário com Agravo 999.425, o STF confirmou sua jurisprudência no sentido de que os crimes contra a ordem tributária não violam o art. 5º, LXVII, da Constituição Federal, porquanto não se referem simplesmente ao não pagamento de tributos, mas a atos dolosos e fraudulentos praticados pelo contribuinte com o fim de sonegar o tributo devido, de forma que a punição não alcançaria uma mera inadimplência de dívida para com o fisco.
Portanto, uma primeira conclusão que se pode extrair é que os tipos penais dos crimes contra ordem tributária pressupõe o dolo, ou seja, uma vontade de lesar o Erário Público com o não pagamento de tributo, sob pena de convertê-lo em punição pelo mero inadimplemento.
Com efeito, no RHC 163.334 o Plenário do STF, por maioria, fixou tese no sentido de que “O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990” (destacamos).
Um primeiro reflexo desta tese é o de que o STF se posicionou no sentido de que o ICMS devido pelo próprio vendedor (contribuinte) representaria um tributo cobrado do adquirente, sendo o inadimplemento tributário considerado conduta típica penal.
Vale notar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) havia firmado entendimento no sentido de que a “interpretação consentânea com a dogmática penal do termo "descontado" é a de que ele se refere aos tributos diretos quando há responsabilidade tributária por substituição, enquanto o termo "cobrado" deve ser compreendido nas relações tributárias havidas com tributos indiretos (incidentes sobre o consumo), (...)” (HC 399.109, 3ª Seção)
Registramos que, em nosso entendimento, o tipo penal em questão não seria aplicável aos tributos devidos diretamente pelo sujeito passivo, na condição de contribuinte (tal como o ICMS incidente em suas operações). De qualquer forma, para além da incorreção da tese fixada pelo STF, buscaremos avaliar neste artigo alguns desdobramentos práticos desta decisão.
Com efeito, da análise da tese firmada, pode-se extrair que não é o mero inadimplemento tributário que tipifica o crime de apropriação indébita tributária, mas sim o inadimplemento contumaz e doloso.
Assim, apesar de nossa discordância quanto ao enquadramento da conduta no tipo penal, entendemos que, ao menos, o STF caminhou bem ao tipificar como crime apenas o inadimplemento qualificado (contumaz e doloso). Assim, o STF reafirmou a sua jurisprudência no sentido de que os crimes contra a ordem tributária não devem punir o mero inadimplemento.
Isso, por um lado, confere certa margem de segurança, porquanto sabe-se (ou espera-se) que o inadimplemento pontual e justificado não tipificará conduta criminal; por outro lado, como será avaliado, com base nos elementos da decisão do STF, a tipificação da conduta poderá ser demasiadamente controvertida, porquanto não haveria parâmetros precisos (mas apenas, quanto muito, diretrizes gerais) para a identificação do “dolo” e da “contumácia” no inadimplemento.
O inadimplemento tributário criminalizado
Um primeiro ponto controvertido que salta aos olhos diz respeito ao momento da consumação do crime de apropriação indébita tributária à luz da decisão do STF. Isso porque, historicamente, considerou-se que este tipo penal é instantâneo, consumando-se na data em que deveria ter sido realizado o pagamento, conforme, por exemplo, decidido pelo STJ no HC 374.318/SP (5ª Turma) e HC 490.057 (6ª Turma).
Ocorre que, com base na decisão do STF no RHC 163.334, o tipo penal em questão se configura com o inadimplemento reiterado, de forma que não basta um único e instantâneo inadimplemento para caracterizar a conduta típica. O problema, então, é definir quando se considera que o sujeito passivo reiteradamente se apropriou de tributos para caracterizar a ocorrência do tipo penal.
Assim, diversas dúvidas surgem, por exemplo: quantos inadimplementos são necessários para caracterizar a contumácia? Determinada quantidade de vencimentos inadimplidos (seis meses, por exemplo)? Os vencimentos devem ser consecutivos, ou podem ser alternados? Os débitos devem ser de um mesmo tributo (apenas ICMS-próprio, ou ICMS-ST também)?
Vale notar que diversas Estados possuem em sua legislação critérios objetivos para se identificar um devedor contumaz. É o que ocorre, por exemplo no art. 19 da Lei Complementar de São Paulo 1.320/18 e no art. 2º da Lei do Rio Grande do Sul lei RS 13.711/11, que caracterizam o devedor como contumaz em razão de períodos inadimplidos ou montante de débitos.
Alerta-se, contudo, que, apesar de tais parâmetros objetivos poderem ser utilizados para fins fiscais, não podem ser utilizados, mesmo que supletivamente, para fins penais. Isso porque, nos termos do art. 22, I, da Constituição Federal, legislar sobre direito penal é matéria privativa da União. Portanto, apenas uma norma penal da União (jamais estadual) poderia definir legalmente os parâmetros para identificação da contumácia para fins penais, porquanto trata-se de elemento do tipo penal.
Nesse contexto, apesar da ausência de definição objetiva, entendemos de observância obrigatória as ponderações feitas pelo Ministro Relator Roberto Barroso, no sentido de que a apropriação indébito tributária visa punir o devedor contumaz, que faz do inadimplemento seu modus operandi para financiar suas atividades empresariais. Portanto, segundo o Ministro, não haveria crime nos casos em que o comerciante, em virtude de circunstâncias excepcionais, deixar de pagar o tributo em um ou outro mês
Diante disso, parece-nos que a contumácia dolosa deve ser avaliada segundo a conduta padrão do empresário. Com efeito, tem-se que as empresas conceitualmente visam ao lucro, de modo que ao compor o preço de bens e serviços, tende a considerar os custos inerentes ao seu fornecimento, nisso incluído os tributos.
Assim, um empresário que sempre considerou (e continua a considerar) os tributos incidentes em suas operações como custos empresariais, realizando os pagamentos tempestivamente, estaria agindo em conformidade com um padrão de conduta comum.
Por outro lado, um empresário que nunca considerou os tributos como custos, apenas destacando-os no preço, mas deixando de proceder ao repasse para o Erário Público, valendo-se indevidamente do dinheiro público para financiamento de suas atividades, esse sim teria uma postura dolosamente fora do padrão.
Nessa medida, parece-nos que o caminho mais adequado seria o de se avaliar a conduta esperada do empresário “homem médio”.
Vale notar, inclusive, que o plenário do STF na Ação Penal 517 orientou no sentido de que, mesmos nos crimes contra a ordem tributária, deve-se avaliar a inexigibilidade de conduta diversa no contexto das crises financeiras empresariais como causa excludente de culpabilidade em face da “precária condição financeira da empresa, extrema ao ponto de não restar alternativa socialmente menos danosa que não a falta do não-recolhimento do tributo devido”, sendo necessário avaliar o “elemento subjetivo do comportamento, pois a boa-fé é requisito indispensável para que se confira conteúdo ético a tal comportamento”.
Tal sensibilidade se mostra ainda mais necessária em tempos de graves crises econômicas (por exemplo, a gerada pelo covid-19) ou mesmo dificuldades financeiras do sujeito passivo, sendo a tipificação penal da conduta nestes casos perigosa e delicada. Isso porque, em tais cenários, a capacidade de pagamento de tributos pode ser rapidamente afetada no início do cenário adverso, não havendo prazo para a sua recuperação ou, sequer, a imediata recuperação ao fim da adversidade, de forma que inadimplementos podem vir a ocorrer.
Um cenário de crise financeira é situação extraordinária, que abala a normalidade, de forma que, a depender do caso concreto, poderia resultar que o inadimplemento tributário não é uma prática com intuito de prejudicar o erário, mas sim uma medida de desespero frente a uma adversidade.
Não se trata de negar o dever cívico de contribuir com a sociedade pelo pagamento de tributos. Contudo, diante de um cenário de crise financeira, o empresário, por vezes, se vê diante de ponderações quanto a danos imediatos versus o pagamento do tributo. Nessa linha, surgem questionamentos se, do ponto de vista de uma conduta de um home médio, é preferível pagar tributos ou: pagar os fornecedores, mantendo os negócios e possível recuperação financeira; pagar os encargos trabalhistas, mantendo a dignidade do trabalhador e o sustento da sua família; e buscar a manutenção da empresa, como fonte geradora de empregos e riquezas para a o sociedade.
Com efeito, a proteção do Erário Público não se daria apenas de forma imediata pela arrecadação tributária, mas também pela manutenção da empresa como fonte geradora de empregos e riquezas. A manutenção da atividade produtiva, possibilitando a sua recuperação e retorno à normalidade, propiciará a contribuição com a sociedade, evitando o desemprego, movimentando a economia e gerando riquezas tributáveis.
Conclusões
Sem nos distanciarmos das críticas quanto à tipificação penal erigida no RHC 163.334, não negamos que a tipificação de condutas contra a Ordem Tributária seja importante mecanismo para assegurar a sua higidez. De fato, é a arrecadação tributária que possibilita o financiamento estatal e a promoção dos ideais do art. 1º da Constituição Federal, sendo a sua defesa um interesse da coletividade.
Contudo, não se pode esquecer que a obrigação tributária é, em sua essência, uma obrigação pecuniária e que a própria Constituição Federal e a Convenção Americana de Direitos Humanos vedam a prisão por meras dívidas.
Portanto, a nosso ver, agiu bem o STF ao decidir que a apropriação indébita tributária somente se configura com o inadimplemento doloso e contumaz. Assim, não seria o mero inadimplemento tributário que a normal penal visa punir, mas sim o inadimplemento consciente, com vontade de lesar o Erário Público em benefício próprio, confirmado pela reiteração da conduta penal.
Contudo, a identificação da conduta típica não é uma avaliação simples, com critério objetivos e parâmetros definidos. Ao contrário, requer uma análise cuidadosa das circunstâncias fáticas, histórico do contribuinte e sensibilidade diante de contextos de adversidade.
Ponderações devem ser feitas quanto à conduta do inadimplemento tributário (e suas circunstâncias) frente a outros males que se tenha buscado evitar. Tal sensibilidade se torna ainda mais necessária em tempos de adversidade econômica, pois o objetivo imediato da arrecadação tributária não pode resultar na morte da empresa em dificuldade, com a consequente extinção de empregos e encerramento da futura geração de riquezas tributáveis.
A simples criminalização do empresário que deixou de pagar tributos resulta num perigoso ativismo jurídico que, ao invés de proteger o Erário Público, pode gerar ainda mais danos para a sociedade.
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