Muito se discute sobre a natureza procedimental ou processual do contencioso administrativo tributário. Trata-se de discussão que não é nova, existindo fortes argumentos para ambas as correntes de pensamento.
Ocorre que, a superveniência de novas regras positivadas em nosso ordenamento jurídico parecem evidenciar a opção, pelo legislador pátrio, em reconhecer, verdadeiramente, que o contencioso administrativo tributário ostenta natureza processual (é processo) e, assim sendo, se traduz em um exemplo de atividade jurisdicional resolutiva de litígios em matéria tributária.
Para concluirmos pela natureza processual do contencioso administrativo tributário, somos obrigados a apresentar, ainda que de forma sintética, a distinção entre jurisdição una e dual.
É dizer, quando se discute sobre métodos de resolução de conflitos, sejam eles “tradicionais” (contencioso administrativo ou judicial) ou alternativos (transação, arbitragem1, conciliação), o intérprete não pode fugir à reflexão relativa ao tipo de sistema de jurisdição no qual está inserido.
Após isso, serão apresentados alguns argumentos que confirmam a natureza processual e jurisdicional da resolução de conflitos tributários em âmbito de contencioso administrativo, sendo este, portanto, o objeto do presente texto.
No caso brasileiro, diz-se que a resolução de conflitos em matéria tributária está adstrita a um sistema de jurisdição una2, por meio do qual, no âmbito administrativo, são solucionadas questões de fato e de direito atinentes ao controle de legalidade do ato administrativo do lançamento tributário, sem obstar, entretanto, a hipótese de, em esfera judicial, o contribuinte buscar a tutela jurisdicional efetiva para a solução final da questão (em homenagem ao princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário — artigo 5º, XXXV, CF).3
E é em razão de referido princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário de onde se sucede que, no Brasil, vigora o modelo de jurisdição una, pois caberá, em último caso, ao Poder Judiciário dar a palavra final sobre o litígio. Por outro lado, existem outros países que adotam o sistema de jurisdição dual, que é refletido na “existência de duas ordens de competência jurisdicional: a jurisdição comum, competente para a apreciação de questões penais e de natureza privada, e a jurisdição administrativa, exercida pela Administração Pública, competente para apreciar questões administrativas e fiscais”4, como por exemplo ocorre na França.
Fixada a premissa no sentido de que o sistema de jurisdição brasileira é uno, cabe perquirir sobre qual seria a natureza da tutela prolatada especificamente no âmbito do contencioso administrativo tributário, o qual permite ao contribuinte apresentar defesa em face do lançamento de tributo que foi praticado em seu desfavor pela Autoridade Fiscal (por meio de ato administrativo vinculado, nos termos do art. 142, parágrafo único do CTN).
Em síntese, o questionamento seria o seguinte: a apreciação e “resolução” do conflito entre contribuinte e fisco no âmbito do contencioso administrativo tributário consistiria no exercício de uma autotutela, de modo que teríamos um mero procedimento, ou então tal tutela se consubstancia no exercício de uma verdadeira atividade jurisdicional por órgãos vinculados à administração tributária?
Longe de ser mero preciosismo, identificar a natureza jurídica do contencioso administrativo tributário, se procedimento (em que a “resolução” do litígio se dá por autotutela) ou processo (em que há efetiva resolução de conflito entre partes por meio de atividade de caráter jurisdicional) é questão de suma importância, na medida em que, a depender da posição que se adote sobre o tema, a dinâmica, a eficácia e os limites cognitivos do contencioso administrativo tributário serão afetados.
Parcela da doutrina5 entende que a natureza do chamado “processo administrativo tributário” seria, na realidade, de procedimento, não comportando o exercício de jurisdição, eis que se trataria de uma sequência de atos jurídicos concatenados, visando, ao fim e ao cabo, garantir o aperfeiçoamento do ato administrativo do lançamento tributário (prezando para que tal ato administrativo ocorra dentro da legalidade), sendo necessário apenas para fins de manutenção da legitimidade e presunção de liquidez, certeza e exigibilidade do crédito tributário dele decorrente.
Sob esta ótica, entende-se que, nesta sequência de atos que se destinam ao controle e revisão do lançamento fiscal, a Administração Tributária estaria exercendo tão somente uma autotutela e não exercendo uma atividade jurisdicional.
Assim, esta corrente de pensamento não enxerga a decisão prolatada em âmbito de contencioso administrativo tributário como se tutela jurisdicional fosse, tal como ocorre com o exercício da jurisdição pelo Poder Judiciário.
De outro turno, também é possível entender que há, no âmbito do contencioso administrativo tributário, o exercício de genuína atividade jurisdicional6, na medida em que estariam presentes 3 (três) características essenciais, para tanto: (I) a existência de uma lide, ou seja, de um conflito relativo à obrigação tributária havida entre duas partes, (fisco e contribuinte); (II) a inércia, na medida em que a tutela administrativa (o controle da legalidade do lançamento tributário) somente será exercida caso o contribuinte resista ao lançamento, apresentando defesa formal; e (III) a definitividade, na medida em que, uma vez cancelado o auto de infração, o Fisco não poderá discutir judicialmente a correição do crédito tributário, devendo-se ressalvar que, em caso de manutenção da exigibilidade do crédito tributário, o contribuinte ainda poderá buscar uma tutela jurisdicional em âmbito judicial.
A nosso ver, o “contencioso administrativo tributário”7, em especial aquele desenvolvido no âmbito do CARF, é claramente um processo (e não mero procedimento), no bojo do qual, portanto, é desenvolvida legítima atividade jurisdicional.
O primeiro fundamento para tal assertiva advém da própria literalidade do artigo 5º, inciso LV, da CF8, o qual prevê que, “aos litigantes” (pressupõe-se a existência de lide, portanto), são assegurados, não apenas no âmbito do processo judicial, mas também no processo administrativo, o contraditório e a ampla defesa.
É nítido, pela redação do referido dispositivo, que a norma constitucional pressupõe o exercício do contraditório e da ampla defesa também em âmbito administrativo. Mais do que isso, a literalidade do texto deixa claro que há a figura do litigante, tanto em âmbito judicial, quanto em esfera administrativa.
Pela norma constitucional, portanto, existe litígio, no sentido técnico do termo, tanto na esfera judicial, quanto em âmbito administrativo. E é mediante o exercício da atividade jurisdicional, a qual é desenvolvida em meio a elementos de processualidade (e não de um mero procedimento), que se busca resolver litígios.
Logo, se há litígio em âmbito administrativo e se a atividade jurisdicional resolve tal lide, forçoso reconhecer que o processo administrativo tributário, ao resolver autêntico litígio fiscal, é um exemplo de jurisdição (do latim “Jurisdicere” - dizer o que é de direito no caso concreto), de modo que o fato de a cognição ser desenvolvida em âmbito administrativo não seria suficiente para afastar o caráter jurisdicional da atividade julgadora desenvolvida.
E nem seria possível sustentar que órgãos vinculados ao Poder Executivo não poderiam exercer atividade reservada tipicamente aos órgãos do Poder Judiciário, haja vista que, mesmo com a tripartição constitucional dos poderes, diversas regras organizacionais de competência contidas em nossa Carta Magna possibilitam o exercício de funções atípicas pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Logo, é plenamente viável o exercício atípico, pelo Poder Executivo, da função jurisdicional.
Nesse sentido, Conrado conclui, de forma acertada, que “é inevitável, por essas premissas, que se enxergue nos órgãos administrativos de julgamento o exercício de função atipicamente jurisdicional”9.
Assim, quando verificada a resistência pelo contribuinte (que apresenta defesa formal à acusação fiscal lavrada em seu desfavor) à pretensão fiscal, a Administração Tributária submete o lançamento tributário ao devido processo legal, perante tribunais ou conselhos administrativos (geralmente, órgãos colegiados), que irão, em posição de imparcialidade, proferir juízos fáticos e jurídicos atinentes ao controle de legalidade do crédito tributário constituído.
Mas não são apenas estes os fatores responsáveis por evidenciar a natureza eminentemente “processual” da atividade desenvolvida no âmbito do contencioso administrativo tributário.
É que, após o advento do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15), ficou ainda mais nítido que o contencioso administrativo tributário possui natureza jurídica de verdadeiro processo, enquanto atividade jurisdicional resolutiva de conflitos, já que o artigo 15 do novel diploma processual prevê a aplicação supletiva e subsidiária do CPC/15 aos processos administrativos10. E assim o faz não por outra razão, senão em virtude de se enxergar o exercício da jurisdição no âmbito do processo administrativo11.
Por fim, o advento da lei 13.988/20, a nosso ver, também se traduz em uma evidência acerca da opção do legislador em reconhecer que há de fato processo administrativo tributário tendente a, por meio de tutela jurisdicional, resolver litígios em matéria tributária.
A lei 13.988/20 reascendeu grandes discussões sobre o contencioso tributário administrativo, não apenas por ter revogado o instituto do voto de qualidade no âmbito do CARF, mas também por permitir aos contribuintes que, por meio de uma autocomposição com a Fazenda Nacional, transacionem créditos tributários federais.
Louvável a iniciativa do legislador federal ao converter em lei a medida provisória 899/19 para regulamentar o artigo 171 do Código Tributário Nacional (CTN) e dar praticabilidade à transação em matéria tributária, enquanto meio alternativo de resolução de conflitos.
De acordo com o artigo 2º da lei 13.988/20, há três modalidades de transação: (I) por proposta individual ou por adesão, na cobrança de créditos inscritos na dívida ativa da União, de suas autarquias e fundações públicas, ou na cobrança de créditos que sejam de competência da Procuradoria-Geral da União; (II) por adesão, nos demais casos de contencioso judicial ou administrativo tributário; e (III) por adesão, no contencioso tributário de pequeno valor.
Como se vê, além da transação na cobrança de créditos inscritos em dívida ativa da União, a lei prevê a possibilidade de transação de créditos tributários que estejam sendo discutidos: (I) tanto no âmbito do processo administrativo tributário; (II) quanto em esfera judicial; o que evidencia o intuito do legislador federal, através de um método alternativo de resolução de conflitos, em reduzir a litigiosidade em matéria fiscal e reduzir o estoque de créditos em aberto.
Mas qual seria o fator relativo à transação em matéria tributária que evidenciaria a natureza processual da discussão travada entre fisco e contribuinte no contencioso administrativo tributário?
Seria, justamente, a premissa para implementação da transação tributária, qual seja: a preexistência de um litígio.
De acordo com o artigo 171 do CTN, a transação importa em “determinação de litígio”. Da mesma forma, o artigo 1º da lei 13.988/20 prevê que a transação realizada entre Fisco e contribuinte é “resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária”12.
Ora, se a transação é um método alternativo de resolução de conflitos e se, dentre as modalidades de transação existentes, há previsão de transação tanto no âmbito administrativo, quanto em esfera judicial (inciso II do artigo 2º da lei), forçoso reconhecer, por conseguinte, que há litígio a ser resolvido em ambas as órbitas: administrativa e judicial.
Se o litígio administrativo tributário é passível de resolução pela transação, enquanto método alternativo de resolução de conflitos, não há razões para se impedir a resolução de tal litígio pelo método tradicional, qual seja a jurisdição, e, existindo exercício de atividade jurisdicional em âmbito administrativo, somos obrigados a reconhecer que se trata de processo (e não procedimento) administrativo tributário.
Há espaço para muitos debates e digressões envolvendo o presente tema. Apesar disso, o advento do CPC/15, das normas de suspensão de prazos do CNJ e da lei 13.988/20, a nosso ver (sem prejuízo da extensão da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa também aos litigantes em âmbito administrativo – art. 5º, inc. LV, CF), evidenciam uma clara opção do legislador em reconhecer a natureza processual da discussão travada entre Fisco e contribuinte no âmbito do contencioso administrativo tributário.
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1 Sobre a possibilidade de implementação de arbitragem tributária, como meio alternativo de resolução de conflitos, a ser exercida no âmbito da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF), sugerimos a seguinte leitura: MALPIGHI, Caio Cezar Soares. A Arbitragem tributária vai representar um importante avanço para o Brasil.
2 ROCHA, Sergio André. Processo administrativo fiscal: controle administrativo do lançamento tributário. São Paulo: Almedina, 2018, p. 168
3 MALPIGHI, Caio Cezar Soares. Op. cit.
4 ROCHA, Sergio André. Processo administrativo fiscal: controle administrativo do lançamento tributário. São Paulo: Almedina, 2018, p. 167.
5 Nesse sentido, são as lições de Geraldo Ataliba, Sérgio André Rocha e Luís Eduardo Schoueri, respectivamente: ATALIBA, Geraldo. Princípios Constitucionais do Processo e Procedimento em Matéria Tributária. Revista de Direito Tributário, nº 46, São Paulo. 1988. P. 118-132. apud ROCHA, Sergio André. Processo administrativo fiscal: controle administrativo do lançamento tributário. São Paulo: Almedina, 2018, p. 63; ROCHA, Sergio André. Op. Cit.p. 155-156; SCHOUERI, Luís Eduardo; SOUZA, Gustavo Emílio Contrucci A. de Souza. Verdade Material no “Processo” Administrativo Tributário. Disponível clicando aqui. Acesso em: 15.06.20. p. 8-9.
6 Neste sentido podemos citar a doutrina de Odete Medauar, Hely Lopes Meirelles e Paulo Cesar Conrado: MEDAUAR, Odete. Processualidade administrativa tributária Iob: Repertorio de Jurisprudência: Tributário e Constitucional, São Paulo, v. no 1994, n. 21, p. 430-29, 1994; MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 16ª ed., rev. e atual. pela Constituição de 1988, 2ª tiragem, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.apud SCHOUERI, Luís Eduardo; SOUZA, Gustavo Emílio Contrucci A. de Souza. Verdade Material no “Processo” Administrativo Tributário. Disponível clicando aqui. Acesso em: 15.06.20.p 3; CONRADO, Paulo Cesar. Perspectivas do Contencioso Tributário, Judicial e Administrativo, em vista do Novo Código de Processo Civil. IBET. Disponível clicando aqui. Acesso em: 24 de maio de 2020. P. 21.
7 Para fins do presente artigo, o contencioso administrativo tributário sob análise é aquele desenvolvido no âmbito do CARF.
8 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
9 CONRADO, Paulo Cesar. Perspectivas do Contencioso Tributário, Judicial e Administrativo, em vista do Novo Código de Processo Civil. IBET. Disponível clicando aqui. Acesso em: 24 de maio de 2020. P. 21.
10 Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.
11 Vale destacar que, ainda que de forma indireta, a natureza processual e jurisdicional da atividade desenvolvida em âmbito administrativo (ainda que não haja especial referência ao contencioso administrativo tributário), já foi reconhecida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), quando da edição da Resolução nº 314. Isso porque, o artigo 3º da referida resolução é expresso em mencionar a retomada dos prazos processuais dos processos administrativos. Além disso, para chegar a tal determinação o CNJ tomou por premissa o fato de que o processo administrativo é decidido por “órgãos colegiados de cunho jurisdicional e administrativo”. A nosso ver, o fato de o CNJ, enquanto órgão componente do Poder Judiciário que regula diversas facetas do controle jurisdicional com competência delineada no artigo 103-B da CF/88, tratar também da retomada dos prazos processuais dos processos administrativos, conceituando-os como órgãos colegiados de cunho jurisdicional e administrativo, seria outro argumento forte para que se conclua que o contencioso administrativo tributário ostenta natureza de verdadeiro processo (e não mero procedimento), pelo qual é desenvolvida atividade nitidamente jurisdicional.
12 Também o inciso II do artigo 23 da lei 13.988/20 qualifica a transação como um meio alternativo de resolução de conflitos.
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