Migalhas de Peso

Os fundamentos sociais e contratuais em tempos de crise

É complexo pensar nesses termos quando se contempla o cenário brasileiro. Não passamos por catástrofes ou acontecimentos severos que possam mudar o curso das obrigações jurídicas obrigacionais.

9/6/2020

A temática pulsante determina não só um olhar cauto do operador do direito, mas, acima de tudo, humano. Ante à avalanche de acontecimentos, e ao premente agravamento, quem trabalha de perto com contrato de trato sucessivo tem enfrentado os mais diversos desafios, seja do inquilino que se sente desobrigado, desconsiderando os termos pactuados, seja de outros, mais prudentes, que reivindicam parcelamento, desconto ou, em outras palavras, “a divisão dos prejuízos”.

É complexo pensar nesses termos quando se contempla o cenário brasileiro. Não passamos por catástrofes ou acontecimentos severos que possam mudar o curso das obrigações jurídicas obrigacionais – há casos especiais que brotam em todo o país pelo excesso na cobrança, por exemplo, ou constrangimentos e imposições que ditam a decisiva posição do Estado.

Para o fato hodierno, há elementos-chave: a saúde, o bem-estar subjetivo e social, e a dignidade. A Constituição brasileira de 1988 estabelece, claramente, os direitos sociais, dentre os quais pode-se frisar o direito à saúde. Coligado, vem o direito à moradia (caput de seu art. 6º). Antes ainda, pela singular importância, no seu art. 1º, inciso III, reputa-se fundamento do Estado Democrático de Direito, de nossa República, a dignidade da pessoa humana.

Com essas bases, partimos para a esfera privada. As pessoas são livres para pactuar, de um modo geral. Assim, as relações privadas regem-se pelo pact sunt sevanda, por meio do qual se constitui lei entre as partes, o vínculo da obrigatoriedade contratual - entende-se que provoca ato ilícito o ente que exceder a boa-fé, conforme dispõe o art. 187, do Código Civil de 2002.

Portanto, o ajuste sinalagmático é conferido e confiado pela autonomia da vontade e pela liberdade de contratar, como dito, não cabendo extrapolar os limites da cláusula geral da boa-fé: “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração” (Código Civil brasileiro, 2002).

Chega-se, naturalmente, ao princípio dos princípios das relações privadas: a boa-fé objetiva. As partes confiam, deste modo, na consecução do contrato; não há promessa de direito, mas legítima expectativa de que o contrato produzirá, para ambas, os frutos desejados. Então, a harmonia e a lealdade são peças indispensáveis, a balizarem desde as tratativas até a fase pós-contratual: “Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé” (Código Civil brasileiro, 2002).

Provêm da cláusula geral da boa-fé objetiva, ainda, os deveres anexos da cooperação e da confiança. Não é admissível relegar a nenhuma das partes o peso de um porvir incerto, infligindo carga excessiva, pois que, por exemplo, o credor deve mitigar o próprio prejuízo, não oferecendo barreiras para a concretização justa do negócio ao devedor, havendo situação superveniente grave que justifique a composição.

A jurisprudência e a doutrina conferem poderes de pacificação.

“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE CARTÃO DE CRÉDITO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DUTY TO MITIGATE THE LOSS. INVIABILIDADE NO CASO CONCRETO. JUROS REMUNERATÓRIOS. AUSÊNCIA DE CONTRATO NOS AUTOS. DISTRIBUIÇÃO DINÂMICA DO ÔNUS DA PROVA. TAXA MÉDIA DE MERCADO. RECURSO PROVIDO.

1. O princípio duty to mitigate the loss conduz à ideia de dever, fundado na boa-fé objetiva, de mitigação pelo credor de seus próprios prejuízos, buscando, diante do inadimplemento do devedor, adotar medidas razoáveis, considerando as circunstâncias concretas, para diminuir suas perdas. Sob o aspecto do abuso de direito, o credor que se comporta de maneira excessiva e violando deveres anexos aos contratos (v.g: lealdade, confiança ou cooperação), agravando, com isso, a situação do devedor, é que deve ser instado a mitigar suas próprias perdas. É claro que não se pode exigir que o credor se prejudique na tentativa de mitigação da perda ou que atue contrariamente à sua atividade empresarial, porquanto aí não haverá razoabilidade. 2. O ajuizamento de ação de cobrança muito próximo ao implemento do prazo prescricional, mas ainda dentro do lapso legalmente previsto, não pode ser considerado, por si só, como fundamento para a aplicação do duty to mitigate the loss. Para tanto, é necessário que, além do exercício tardio do direito de ação, o credor tenha violado, comprovadamente, alguns dos deveres anexos ao contrato, promovendo condutas ou omitindo-se diante de determinadas circunstâncias, ou levando o devedor à legítima expectativa de que a dívida não mais seria cobrada ou cobrada a menor [...]. (STJ. REsp 1.201.672/MS RECURSO ESPECIAL 2010/0133286-6. Ministro LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO) (8400). T4 - QUARTA TURMA. 21.11.17 (Grifo nosso)”.

“RESPONSABILIDADE CIVIL. SENTENÇA PUBLICADA ERRONEAMENTE. CONDENAÇÃO DO ESTADO A MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. INFORMAÇÃO EQUIVOCADA. AÇÃO INDENIZATÓRIA AJUIZADA EM FACE DA SERVENTUÁRIA. LEGITIMIDADE PASSIVA. DANO MORAL. PROCURADOR DO ESTADO. INEXISTÊNCIA. MERO DISSABOR. APLICAÇÃO, ADEMAIS, DO PRINCÍPIO DO DUTY TO MITIGATE THE LOSS. BOA-FÉ OBJETIVA. DEVER DE MITIGAR O PRÓPRIO DANO. [...] 4. Não fosse por isso, é incontroverso nos autos que o recorrente, depois da publicação equivocada, manejou embargos contra a sentença sem nada mencionar quanto ao erro, não fez também nenhuma menção na apelação que se seguiu e não requereu administrativamente a correção da publicação. Assim, aplica-se magistério de doutrina de vanguarda e a jurisprudência que têm reconhecido como decorrência da boa-fé objetiva o princípio do Duty to mitigate the loss, um dever de mitigar o próprio dano, segundo o qual a parte que invoca violações a um dever legal ou contratual deve proceder a medidas possíveis e razoáveis para limitar seu prejuízo. É consectário direto dos deveres conexos à boa-fé o encargo de que a parte a quem a perda aproveita não se mantenha inerte diante da possibilidade de agravamento desnecessário do próprio dano, na esperança de se ressarcir posteriormente com uma ação indenizatória, comportamento esse que afronta, a toda evidência, os deveres de cooperação e de eticidade [..] (STJ. REsp 1.325.862/PR RECURSO ESPECIAL 2011/0252719-0. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO (1140). T4 - QUARTA TURMA. 05.09.13. (Grifo nosso)”.

O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”. (Grifo nosso). (Enunciado 169, da III Jornada de Direito Civil).

Pensando no contrato de locação, com regras especiais, é possível dizer que há a correta e direta expectativa de direito, por parte do locador, de receber as contraprestações acordadas, como por parte do locatário, de ter a sua moradia assegurada, sem perturbações, usufruindo plenamente de sua posse direta - a Lei do Inquilinato determina a proteção do locatário quanto a intervenções lesivas: “Art. 22. O locador é obrigado a: II - garantir, durante o tempo da locação, o uso pacífico do imóvel locado; [...]”.

Logo, o locador não deve, a nosso ver, sob os auspícios da lei, unilateralmente acelerar qualquer processo de interrupção, estando ou não o contrato por prazo indeterminado – observado o caso concreto, se não for devedor contumaz e não tiver lançado dívidas antes da crise. É concorde à boa-fé que o locador possa considerar o histórico de bom pagador do inquilino, inclusive pelo dever de mitigar o próprio prejuízo.

Também, não é razoável se antecipar aos acontecimentos. Vislumbra-se que serão tempos difíceis, mas não cabe isentar por completo os contraentes de suas obrigações. O melhor termo, sem dúvida, é a composição; por ela, as partes provam da satisfação. Nesse momento, “colocar as cartas na mesa” e conversar o quanto for possível são medidas necessárias.

Destarte, não se deve trabalhar para o encerramento prematuro do pacto, porque, de certo modo, leva a crer que as intenções puramente financeiras deixariam a outra parte desamparada em meio à crise. É desumano e descabido conjeturar, através de ilações, que o inquilino se descapitalizará e, portanto, acarretará uma “bola de neve” insuportável. Não temos o controle do futuro. O que se tem é o presente, a humanidade; a possibilidade de amenizar os acontecimentos.

Cumpre ainda acentuar que o direito de propriedade deve estar alinhado às funções sociais do contrato e da propriedade, compreendendo-se que a continuidade do pacto carece abarcar as situações imprevistas, que atingem a todos indiscriminadamente.

 De tal modo, aquele que se arvora do direito de propriedade e, por isso, impõe obrigações exageradas, além do pactuado, para tencionar a desocupação, pratica ato ilícito, tocando aí a reparação. Far-se-á uso da indenização, com o quantum necessário para tentar amainar os prejuízos psicofísicos porventura suportados, englobada a esfera extrapatrimonial. O Código Civil brasileiro assim define:

“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

Para não descambar no descumprimento contratual, o que não interessa, de fato, a nenhum dos contraentes, pelo que se apresentou, são indispensáveis a razoabilidade e a moderação para compreender o cenário atual e não permitir que situações ainda mais agressivas possam comprometer a relação jurídica obrigacional.

_________

Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível clicando aqui. Acesso em: 9 abr. 2020.

Brasil. Lei n.º 8.245, de 18 de Outubro de 1991. Disponível clicando aqui. Acesso em: 9 abr. 2020.

Brasil. Código Civil. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível clicando aqui. Acesso em: 9 abr. 2020.

CARVALHO, Beatriz Veiga. O "dever de mitigar danos" na responsabilidade contratual: a perspectiva do direito brasileiro. Dissertação de Mestrado. Orientadora Profa. Dra. Patricia Faga Iglecias Lemos, USP.

Enunciado 169. III Jornada de Direito Civil. Coordenadores da Comissão de Trabalho: Antônio Junqueira de Azevedo e José Osório de Azevedo Jr. Coordenador-geral: Ministro Ruy Rosado de Aguiar.

SANTOS, Adriano Barreto Espíndola. Dissertação apresentada como requisito à obtenção de grau de Mestre, no Curso de Mestrado em Ciências Jurídico-Civilísticas/Menção em Direito Civil, ano letivo 2013/2015, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

STJ. REsp 1.325.862/PR Recurso Especial 2011/0252719-0. Ministro Luis Felipe Salomão (1140). T4 - Quarta Turma. 05.09.13.

STJ. REsp 1.201.672/MS Recurso Especial 2010/0133286-6. Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região) (8400). T4 - Quarta Turma. 21.11.17.

_________

*Adriano Barreto Espíndola Santos é advogado doutorando em Direito Privado pela Universidade de Salamanca. Mestre e especialista em Direito Civil. Especialista em Direito Público Municipal. Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024

O SCR - Sistema de Informações de Crédito e a negativação: Diferenciações fundamentais e repercussões no âmbito judicial

20/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024