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A competência do Poder Legislativo municipal para criação de incentivos urbanísticos

Passamos a tecer breves considerações sobre a competência do Poder Legislativo do município de São Paulo para criação de projetos de lei voltados a importante setor da nossa economia, o setor da construção civil, em especial os projetos que tratam dos chamados incentivos urbanísticos de caráter temporário.

9/6/2020

Desde o início do atual período de pandamia, observamos a mobilização do Poder Legislativo – seja em âmbito federal, estadual ou municipal – na elaboração de projetos de lei que tratam de importantes temas para a sociedade, como os projetos relacionados às áreas da saúde pública e assistência social, inclusive a partir da instituição de regimes emergenciais de direcionamento das verbas de arrecadação, além dos projetos de incentivo a setores produtivos como o comércio, a indústria, a construção civil, dentre outros.

Incontroverso que esses projetos de lei de iniciativa do Poder Legislativo refletem a intenção dos legisladores de criar medidas rápidas e eficazes voltadas à mitigação dos impactos negativos causados pela pandemia. Porém, essa produção legislativa acelerada, para além de ocasionar eventuais conflitos entre si, tem o condão de reabrir importante debate sobre os limites da competência do Poder Legislativo para criação de leis sobre determinados temas que, em tese, seriam de iniciativa exclusiva do Poder Executivo.

No presente artigo, passamos a tecer breves considerações sobre a competência do Poder Legislativo do município de São Paulo para criação de projetos de lei voltados a importante setor da nossa economia, o setor da construção civil, em especial os projetos que tratam dos chamados incentivos urbanísticos de caráter temporário.

Há o entendimento de que a iniciativa de propor as normas urbanísticas que regem as cidades, em especial o Plano Diretor Estratégico e a Lei de Zoneamento, seja de iniciativa do Poder Executivo, o que não impede, entretanto, que o Poder Legislativo também tenha competência concorrente para propor normas que tratem de questões urbanísticas, como os incentivos urbanísticos, inclusive na cidade de São Paulo, dentro de alguns parâmetros estabelecidos na legislação municipal.

A questão jurídica ora analisada se funda na controvérsia sobre a iniciativa legislativa privativa (ou reservada) e a iniciativa legislativa concorrente1. A esse respeito, é incontroverso que, no nosso ordenamento jurídico, a regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo e a exceção é a atribuição dessa iniciativa ao Poder Executivo e/ou a determinada categoria de agentes, entidades e órgãos.

Por se tratar de uma exceção, a iniciativa legislativa privativa do Poder Executivo não pode ser presumida, e as hipóteses previstas na Lei Orgânica do Município devem sempre ser interpretadas de maneira restritiva2, sob pena de transferir a iniciativa do processo legislativo (função típica do Parlamento e de seus membros) a agentes que não detém tal prerrogativa. A esse respeito, merece destaque o entendimento da doutrina3 e da jurisprudência do C. STF4.

Com relação ao caso em análise, na cidade de São Paulo, o artigo 695 da Lei Orgânica do Município (“L.O.M.”) de São Paulo estabelece, em extenso rol, quais são os atos de competência privativa do prefeito6, dentre os quais não se encontra a proposição ou criação de incentivos urbanísticos, de caráter temporário, atualmente debatidos perante o Poder Legislativo.

Por sua vez, o artigo 70 da L.O.M. de São Paulo estabelece em seus diversos incisos os atos que competem ao Prefeito, porém não de forma privativa, estabelecendo, portanto, as hipóteses de iniciativa concorrente:

Art. 70 - Compete ainda ao Prefeito:

(...)

VIII - propor à Câmara Municipal alterações da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo, bem como de alterações nos limites das zonas urbanas e de expansão urbana;

(...)

X - propor à Câmara Municipal o Plano Diretor

Parágrafo único - As competências definidas nos incisos VIII, X e XI deste artigo não excluem a competência do Legislativo nessas matérias. (grifamos)

Nota-se que a proposição de alterações em matéria de zoneamento e plano diretor cabe, de maneira concorrente, ao Prefeito, não em caráter exclusivo – pois a competência privativa, como já exposto, abrange apenas as matérias indicadas no artigo 69 –, e também ao Poder Legislativo, conforme expressamente previsto no parágrafo único do artigo 70 da L.O.M. Sobre a competência legislativa concorrente dos Poderes Executivo e Legislativo, merece destaque o entendimento da doutrina especializada7 e a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo8 que, em casos análogos, afastou a tese de inconstitucionalidade de leis municipais e iniciativa do Poder Legislativo que versam sobre uso e ocupação do solo.

Conclui-se, portanto, que há fundamento jurídico para sustentar que o Poder Legislativo do Município de São Paulo detém competência legislativa para criação de leis como a que pretende instituir o Plano Emergencial de Ativação Econômica na Cidade de São Paulo, com previsão de alteração das normas urbanísticas através dos chamados incentivos urbanísticos, de caráter temporário.

Para ler o artigo na íntegra clique aqui.

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1 Por sua vez, a iniciativa concorrente é aquela pertencente a vários legitimados de uma só vez (por exemplo: parlamentares e Presidente da República), enquanto iniciativa exclusiva é aquela reservada a determinado cargo ou órgão (...)” (Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, 20ª ed., São Paulo: Atlas, 2006, p. 603).

2 Trata-se de importante regra de hermenêutica jurídica pela qual não se pode dar interpretação ampliativa à norma restritiva. Isso porque, “as disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas, ou contra o Direito comum; por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente.” (Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 17ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 225/227). No mesmo sentido: STJ, REsp 853.086/RS, rel. min. Denise Arruda, j. 25.11.08.

3 A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

4 A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 27.04.01, g.n.)

5 Art. 69 - Compete privativamente ao Prefeito, além de outras atribuições previstas nesta Lei:

- iniciar o processo legislativo na forma e nos casos nela previstos;

II - exercer, com os Secretários Municipais, os Subprefeitos e demais auxiliares a direção da administração municipal;

III - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como, no prazo nelas estabelecido, não inferior a trinta nem superior a cento e oitenta dias, expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução, ressalvados os casos em que, nesse prazo, houver interposição de ação direta de inconstitucionalidade contra a lei publicada; (Alterado pela Emenda 31/08)

IV - vetar projetos de leis, total ou parcialmente, na forma prevista;

V - nomear e exonerar os Secretários Municipais e demais auxiliares;

VI - convocar extraordinariamente a Câmara Municipal, no recesso, em caso de relevante interesse municipal;

VII - subscrever ou adquirir ações, realizar ou aumentar o capital de sociedades de economia mista ou empresas públicas, na forma da lei;

VIII - dispor, a qualquer título, no todo ou em parte, de ações ou capital que tenha subscrito, adquirido, realizado ou aumentado, mediante autorização expressa da Câmara Municipal;

IX - apresentar à Câmara Municipal projeto de lei dispondo sobre o regime de concessão ou permissão de serviços públicos;

- propor à Câmara Municipal projetos de leis relativos ao plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual, dívida pública e operações de crédito;

XI - encaminhar ao Tribunal de Contas, até o dia 31 de março de cada ano, a sua prestação de contas, bem como o balanço do exercício findo;

XII - encaminhar aos órgãos competentes os planos de aplicação e as prestações de contas exigidas em lei;

XIII - apresentar à Câmara Municipal, até 45 (quarenta e cinco) dias após a sua sessão inaugural, mensagem sobre a situação do Município, solicitando as medidas de interesse público que julgar necessárias;

XIV - propor à Câmara Municipal a contratação de empréstimos para o Município;

XV - apresentar, anualmente, à Câmara Municipal, relatório sobre o andamento das obras e serviços municipais;

XVI - propor à Câmara Municipal projetos de leis sobre criação, alteração das Secretarias Municipais e Subprefeituras, inclusive sobre suas estruturas e atribuições;

XVII - nomear Conselheiros do Tribunal de Contas do Município, observado o disposto nesta Lei Orgânica, em especial o prazo fixado no § 3º do art. 42;

XVIII - propor à Câmara Municipal a criação de fundos destinados ao auxílio no financiamento de serviços e/ou programas públicos. (grifamos)

6 "Leis de iniciativa exclusiva do prefeito são aquelas em que só a ele cabe o envio do projeto à Câmara. Nessa categoria estão as que disponham sobre matéria financeira; criem cargos, funções ou empregos; fixem ou aumentem vencimentos ou vantagens de servidores, ou disponham sobre o seu regime funcional; criem ou aumentem despesas, ou reduzam a receita municipal" (Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 15. Ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 541)

7 Em sua função normal e predominante sobre as demais a Câmara elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é a sua função específica, bem diferenciada da do Executivo, que é a de praticar atos concretos de administração. Já dissemos - e convém se repita - que o Legislativo provê 'in genere', o Executivo 'in specie'; a Câmara edita norma gerais, o prefeito as aplica aos casos particulares ocorrentes(...) (Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 15. Ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 604/605).

8 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei nº 11.290, de 3 de janeiro de 2013, do Município de São José do Rio Preto, que permitiu a ampliação do potencial construtivo de imóveis localizados em pequena e específica região urbana ali definida. Inocorrência de vício de iniciativa do projeto de lei deflagrado pelo Legislativo Municipal, haja vista que a norma editada não regula matéria estritamente administrativa, afeta ao Chefe do Poder Executivo, delimitada pelos artigos 24, §2°, 47, incisos XVII e XVIII, 166 e 174 da CE, aplicáveis ao ente municipal, por expressa imposição da norma contida no artigo 144 daquela mesma Carta. Previsão legal que apenas tratou de tema pertinente ao uso e ocupação do solo urbano, inserido, portanto, na competência legislativa comum dos poderes Legislativo e Executivo, razão pela qual poderia mesmo decorrer de proposta parlamentar. (...)(TJSP, ADI 0125155-62.2013.8.26.0000, rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, j. em 26.03.14, g.n.).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR Nº 115, DE 30 DE NOVEMBRO DE 2016, DO MUNICÍPIO DE ITAPETININGA (...) NÃO CARACTERIZAÇÃO, ADEMAIS, DO VÍCIO DE INICIATIVA. MATÉRIA DE INICIATIVA CONCORRENTE ENTRE O LEGISLATIVO E O EXECUTIVO. PRECEDENTES DO ÓRGÃO ESPECIAL NESSE SENTIDO (...) Não se observa, também, a afronta ao princípio da Separação de Poderes. Destaque-se, por imperioso, que a regra geral acerca da competência de iniciativa legislativa é a da competência concorrente, ou seja, tanto o Executivo, quanto o Legislativo, podem dar início aos projetos normativos. A competência privativa ou exclusiva, por sua vez, é a exceção e, como tal, deve ser tratada de forma restritiva. (...). Ademais, o artigo 47 da Constituição Estadual, ao tratar da competência privativa do Governador do Estado não traz em seu rol qualquer tópico relativo ao uso e a ocupação do solo. (...) É certo, assim, que a Câmara detém competência concorrente, para dispor acerca das regras gerais previstas no artigo 181, da Constituição Estadual (...). E essa é exatamente a hipótese dos autos, em que a Câmara Municipal, mediante projeto de iniciativa Parlamentar, tratou de questões afetas ao uso e ocupação do solo" (TJSP, ADI 2255977-03.2016.8.26.0000, rel. Des. Amorim Cantuária, j. em 26.04.17, g.n.).

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*Rodrigo Passaretti é coordenador da área de Direito Ambiental e Urbanístico do escritório Bicalho e Mollica Advogados.

*Rodrigo Cury Bicalho é sócio do escritório Bicalho e Mollica Advogados. Especializado em Direito imobiliário.

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