O seguro garantia teve como país de origem os Estados Unidos da América, em 1893. Os construtores vinculados a obras públicas se tornaram inadimplentes, fazendo com que o Congresso Americano aprovasse a obrigatoriedade em fazer constar, nos contratos do Governo, garantias capazes de caucionar as operações. No Brasil, a inclusão do seguro garantia no ordenamento jurídico pátrio se deu em 1966, mas somente com a lei 8.883/94 – que alterou dispositivos da lei 8.666/93, regulamentadora das licitações – passou a constituir espécie de caução, autorizando, ao contratado, a escolha da garantia a ser apresentada.1 Com o desenvolvimento gradual da referida modalidade de seguro no país, em 2013, a SUSEP editou a circular 477 dispondo sobre o seguro garantia, suas condições e os tipos inseridos nessa categoria (anexo I, circular SUSEP 477/2013); em complementação à matéria, foi publicada, em 2018, a circular 577.
A crise econômica em decorrência da pandemia do novo coronavírus deu fôlego ao debate relacionado ao uso do seguro garantia judicial em substituição ao depósito efetivado por empresas privadas em ações judiciais. Existem demandas nas quais se exige que o réu cumpra com depósito judicial para garantir o processo e como requisito de admissibilidade de recursos, estimando-se que os valores que se encontram depositados em juízo atualmente somem mais de 500 bilhões de reais.2 O problema atinge tanto o setor privado, quanto o público, pois, se empresas são extintas e a população empobrece, a arrecadação de impostos também sofre queda.
Nesse contexto, desponta-se a imperiosidade de se ponderar acerca da utilização dessa ferramenta que poderá fomentar a economia, possibilitando empresas a permanecerem funcionando. Em uma pergunta: admite-se a substituição de depósito em dinheiro já realizado, nos âmbitos cível, trabalhista e tributário, pelo seguro garantia? É o que se pretende desvendar a seguir.
I– Seguro Garantia Judicial no âmbito cível
O Código de Processo Civil elenca no artigo 835 a ordem preferencial da penhora. A despeito de o primeiro lugar ser ocupado pelo "dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira", o § 2º do citado dispositivo equipara o dinheiro ao seguro garantia judicial, desde que o valor da apólice não seja "inferior ao do débito constante da inicial, acrescido de trinta por cento". Indo além, ao dispor sobre as modificações da penhora, o CPC autoriza a substituição do depósito pelo seguro garantia judicial, se cumprida a exigência do acréscimo de 30% ao valor inicialmente devido (art. 848, parágrafo único). Apesar de o legislador ter feito a equiparação de forma clara, bem como autorizado expressamente a substituição, alguns Tribunais ainda tendem a se posicionar de forma contrária, fazendo com que pleitos dessa natureza cheguem ao Superior Tribunal de Justiça.
Para além da autorização do CPC – notadamente sobre a substituição de penhora pelo seguro garantia judicial –, no artigo 805 do mesmo diploma legal concede-se ao executado o benefício de ter a execução realizada da maneira menos gravosa para si, quando houver vários meios para que o exequente satisfaça o seu direito. É possível deduzir que, ao elaborar o dispositivo, o legislador cuidou para que o Estado, ao intermediar a satisfação do direito do credor, observe se os limites do devedor não foram excedidos e, de igual sorte, leve em conta a dignidade e subsistência do devedor.3 No parágrafo único do referido art. 805, estabeleceu-se que o ônus da indicação de meios diversos – mais eficazes e menos onerosos – recairá sobre o devedor e, no caso de não cumprimento, mantém-se a execução já determinada. Assim, a substituição, expressamente prevista em lei (art. 848 do CPC), deve ainda ser analisada, no caso concreto, sob a égide do princípio da menor onerosidade do devedor (art. 805 do CPC).
A respeito da eficácia do seguro garantia judicial, a circular SUSEP 477/2013 dispõe sobre as especificidades da modalidade e, conforme se extrai dela, imposições objetivando proteger o segurado, como: i) a manutenção da apólice ainda que o tomador esteja inadimplente (§ 1º do art. 11); ii) a seguradora só poderá se manifestar pela não renovação se não houver mais risco ou se comprovada a perda de direito do segurado; iii) a seguradora comunicará ao segurado e ao tomador (com antecedência mínima de noventa dias) do final da vigência da apólice, para fins de renovação; iv) o sinistro ficará caracterizado com o não pagamento pelo tomador do valor executado, quando o juízo determinar (anexo I da referida circular). Já em relação à salvaguarda das seguradoras, estabelece-se que, se não for efetuado o pagamento de qualquer parcela do prêmio na data convencionada, a seguradora poderá executar o contrato de contragarantia em desfavor do tomador (§ 2º do art. 11).
No que se refere à menor onerosidade do meio, a fim de evitar o congelamento de ativos e oxigenar o fluxo de caixa, a contratação do seguro garantia judicial será para muitas empresas medida que possibilitará o cumprimento de obrigações, como o pagamento de funcionários, fornecedores e tributos. A partir desse quadro, foi instituída, em 31 de março de 2020, a recomendação 63 do CNJ, preconizando aos Juízos a apreciação de "questões relativas ao levantamento de valores em favor de credores ou empresas recuperandas com a correspondente expedição de Mandado de Levantamento Eletrônico", tendo em vista serem medidas de relevância social e econômica, possibilitando o "regular funcionamento da economia brasileira e para a sobrevivência das famílias". Nessa conjuntura, julgadores já têm levado em consideração os prejuízos sofridos pelas empresas, autorizando a substituição e o levantamento dos valores.4
Quanto à admissibilidade da substituição, o Superior Tribunal de Justiça já se posiciona favoravelmente há algum tempo. Em importante precedente do ano de 2017, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva dissecou os benefícios oferecidos pelo seguro em apreço, sob o aspecto da eficiência econômica do direito. Nessa oportunidade, se sustentou que, além de reduzir prejuízos ao "desonerar os ativos de sociedades empresárias submetidas ao processo de execução", ele ainda garante "com eficiência equiparada ao dinheiro, que o exequente receberá a soma pretendida quando obter êxito ao final da demanda". Por fim, o ministro recordou o princípio da menor onerosidade do devedor e que a indisponibilização de volumosas quantias "poderá causar severos prejuízos às atividades da empresa executada, sendo recomendável a aceitação da fiança bancária ou do seguro garantia".5
Do exame da legislação processual civil é possível inferir que não existe nenhum impedimento para a utilização do seguro garantia judicial em substituição ao depósito em dinheiro já realizado, bem como não há definição de um momento para tal. Ao contrário, é hipótese prevista expressamente em lei, podendo ser feita a qualquer tempo. Esse tem sido, inclusive, o posicionamento adotado pelo STJ e harmoniza-se perfeitamente com a recomendação 63/2020 do CNJ, especialmente diante de um cenário econômico tão delicado, no qual o retorno do capital para as respectivas empresas poderá, em muitos casos, permitir o não encerramento das suas atividades. Superada a análise da admissibilidade da garantia no ordenamento cível, passa-se a examinar a questão à luz da legislação trabalhista.
II – Seguro Garantia Judicial no âmbito trabalhista
Após a reforma trabalhista (lei 13.467/2017), o artigo 899 da CLT, que trata dos recursos e de seus respectivos depósitos, passou a permitir a substituição do depósito recursal por fiança bancária ou seguro garantia judicial (§ 11). A novidade trazida pela lei não obteve a adesão de grande parte dos Tribunais Regionais e causou divergência no TST, resultando na rejeição de muitos pedidos de substituição – por vezes, em virtude do prazo de vigência da apólice, ainda que com cláusula de renovação automática.6 Não havia uniformidade em relação à utilização da garantia, impossibilitando-se prever se o recurso interposto e garantido através do seguro seria julgado deserto.
Em outubro de 2019, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho, o TST e a Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, publicaram o ato conjunto 1, regulando o uso do seguro garantia judicial em substituição ao depósito recursal e para garantia da execução trabalhista. No artigo 3º do ato, estabeleceram-se os requisitos para a aceitação da garantia que deverão constar expressamente na apólice, destacando-se: i) o montante segurado deve ser o valor supostamente devido com acréscimo de 30%, tanto para execução trabalhista, quanto para depósito recursal; ii) a manutenção do contrato de seguro pela seguradora, ainda que o tomador não tenha efetuado o pagamento do prêmio nas datas convencionadas; iii) a vigência da apólice deve ser de, no mínimo, três anos; e iv) a inclusão de cláusula de renovação automática.
Além das exigências, limitava-se a substituição aos casos nos quais a apresentação se desse "antes do depósito ou da efetivação da constrição em dinheiro, decorrente de penhora, arresto ou outra medida judicial" (artigo 7º), bem como inadmitia-se a utilização do seguro garantia judicial para substituir depósito recursal já realizado (artigo 8º). Essas restrições, contudo, foram suspensas com o julgamento de Procedimento de Controle Administrativo que versava sobre a matéria, pelo Plenário Virtual do Conselho Nacional de Justiça, em 27 de março de 2020. Concluiu-se que o Código de Processo Civil, no § 2º do artigo 835, autoriza de forma expressa a substituição, tendo em vista equiparar o seguro ao dinheiro. Tal assertiva, sublinhou-se, é aplicável ao processo do trabalho, pois, além da remição constante do artigo 882 da CLT ao artigo 835 do CPC, não há norma que verse sobre a questão na legislação trabalhista, incidindo, assim, as regras dos artigos 769 da CLT e 847 do CPC.7
Dois meses depois da decisão do CNJ que suspendeu a eficácia dos artigos, o TST, o CSJT e a CGJT, em 29 de maio de 2020, assinaram o ato conjunto 1/2020 alterando os artigos 7º, 8º e 12, do ato conjunto 1/2019, que passaram a: i) admitir a apresentação do seguro garantia judicial para garantir a execução fiscal, equiparando-o a dinheiro, desde que atendidos os requisitos exigidos pelo ato (art. 7º); ii) autorizar a substituição do depósito recursal pelo seguro garantia judicial, desde que atendidos os requisitos exigidos pelo ato (art. 8º); e iii) aplicar as disposições do ato aos seguros garantias judiciais apresentados após a vigência da lei 13.497/2017, devendo ser fixado, pelo magistrado, prazo razoável para fins de adequação (art. 12).
Portanto, depreende-se que, na legislação trabalhista em vigor, não há qualquer impedimento para a aceitação do seguro garantia judicial para fins de caucionar a execução ou o depósito recursal do processo, na hipótese de terem sido os requisitos do ato devidamente cumpridos.8 O seguro cuja apólice possua prazo de duração determinado é garantia que cabe ser aceita pelo Juízo; entretanto, faz-se necessário observar tal prazo, pois, antes da data de vencimento, impõe-se renovar ou substituir a garantia.
Não há previsão legal determinando ser o prazo de duração da apólice indeterminado, ou, ainda, vinculado ao final do processo litigioso e existem prerrogativas contratuais que permitem às seguradoras, para questões relacionadas à reclamação do sinistro, requererem documentos ou informações, que não podem descaracterizar a garantia.9 Além do mais, conforme já apresentado anteriormente, a circular da SUSEP (477/2013), órgão competente para regulamentar a apólice do seguro, dispõe sobre a questão.
A eficácia da lei que prevê a substituição deve ser imediata e, como a lei não determinou um momento processual específico para a ocorrência dessa comutação, a substituição dos depósitos realizados anteriormente à sua vigência deve ser considerada admissível.10 Estima-se que os valores depositados em juízo para caucionar processos, seja na execução, seja para depósito recursal, somam, aproximadamente, R$ 30 bilhões,11 sendo certo que, para muitas empresas, o retorno desse capital para o caixa seria o elemento central para a sua continuidade em tempos de crise.
Constatada a admissibilidade da substituição nas esferas cível e trabalhista, caberá examinar, na segunda parte dessa coluna, o problema no plano tributário.
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1 GALIZA, Francisco. Uma análise comparativa do seguro garantia de obras públicas. Rio Janeiro: ENS-CPES, 2015. p. 15-16.
2 Cf. BACELO, Joice. CNJ abre depósitos judiciais de R$ 500 bi a banco privado. Acesso em: 20 de maio de 2020.
3 TEIXEIRA, Christian Cezar Marins. A penhorabilidade de bens imóveis de família considerados de luxo e o conflito de princípios processuais: a busca pela efetividade da execução e o ideal da menor onerosidade do devedor. Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016. Acesso em: 20 de maio de 2020.
4 Por todos, TJSP. Apelação 1028183-62.2016.8.26.0564. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Desembargador Relator Cesar Ciampolini. p. 16 de abril de 2020.
5 STJ. RECURSO ESPECIAL 1.691.748 - PR (2017/0201940-6). Ministro relator Ricardo Villas Bôas Cueva. Terceira Turma. j. 7/11/2017. Quanto à idoneidade da apólice, em recente apreciação, afirmou-se que há de ser verificada a partir das normas da Susep (circular 477/2013), "sob pena de desvirtuamento da verdadeira intenção do legislador ordinário". STJ. RECURSO ESPECIAL 1.838.837 – SP (2019/0097513-3). Ministro relator. Ricardo Villas Bôas Cueva. Terceira Turma. j. 12/5/2020.
6 Cf. TST, 2ª Turma, AIRR 20394520165130026, Ministro Relator José Roberto Freire Pimenta, j. 3/4/2019, DJe em 5/5/2019.
7 CNJ. PCA 0009820-09.2019.2.00.0000. Relatora conselheira Tânia Regina Silva Reckziegel. j. 27/3/2020.
8 TST. AIRR 0000214-53.2014.5.06.0019. Ministro Relator Alexandre de Souza Agra Belmonte, 3ª turma. DJe 17/2/2019.
9 TST. RR 1000393-43.2016.5.02.0202. Ministra relatora Dora Maria da Costa. Data de Julgamento: 11/12/2019, 8ª Turma, DJe em 13 de dezembro de 2019.
10 BARBA FILHO, Roberto Dala. Modificação legal e jurisprudencial do depósito recursal pós-reforma trabalhista. Revista eletrônica [do] Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, PR, v. 8, n. 82, p. 33-40, set. 2019.
11 VOLTARE, Emerson. Seguro garantia no processo trabalhista pode "devolver" R$ 30 bilhões a empresas. Acesso em: 19/05/2020.
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*Thaís Dias David é advogada, pós-graduada em Ciências Criminais pela UCAM. Coordenadora jurídica na Antunes Mascarenhas Advogados, no Rio de Janeiro.
*Thiago Junqueira é doutor em Direito Civil pela Uerj. Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor do ICDS e do Programa de MBA da Escola Nacional de Seguros. Sócio de Chalfin, Goldberg, Vainboim Advogados.