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A possibilidade jurídica da revisão do contrato de locação ante ao estado de fragilidade econômica causada pela covid-19

É certo de que essas medidas sejam prorrogadas até que a solução definitiva para o combate efetivo ao vírus seja encontrada. Diante desse cenário de patente calamidade pública e evidente desequilíbrio econômico, a atuação jurisdicional no sentido de conferir segurança às relações contratuais é imprescindível.

29/5/2020

Com as medidas adotadas pelo Governo, visando elidir a proliferação da covid-19, é fato evidente que as relações contratuais sofreram patente desequilíbrio econômico.

O estado de calamidade pública, por meio do decreto legislativo 6, de 20 de março de 2020 e o estado de emergência de saúde, por meio da lei 13.979, de 6 de fevereiro de 20201, impuseram à sociedade a necessidade de isolamento social, bem como, a suspensão de inúmeras atividades empresariais de diversos setores.

Em outras localidades do país, também foi reconhecido o estado de emergência. A título de exemplo, o Distrito Federal editou o decreto 40.539, de 19 de março de 2020, impondo à sociedade medidas de contenção do vírus. Uma dessas medidas se refere à suspensão de atividades empresariais de diversos setores.2

Além disso, é certo de que essas medidas sejam prorrogadas até que a solução definitiva para o combate efetivo ao vírus seja encontrada. Diante desse cenário de patente calamidade pública e evidente desequilíbrio econômico, a atuação jurisdicional no sentido de conferir segurança às relações contratuais é imprescindível.

Isso porque, com a determinação de fechamento dos estabelecimentos comerciais, sem previsão para o retorno, as empresas, seja ela de grande, médio e pequeno porte, se encontram totalmente impedidas de arcar com a avença nos moldes entabulados no contrato.

Com a determinação da suspensão do comércio (no que tange às atividades ditas não essenciais), as empresas se encontram totalmente impedidas de exercer suas atividades econômicas, comprometendo, sobremaneira, o fluxo de caixa utilizado para operacionalizar a sua atividade, em especial para o pagamento de salários, insumos básicos da operação, pagamentos de tributos, etc.

A pandemia causada pela proliferação do covid-19 se trata de uma situação típica de caso fortuito ou força maior, totalmente imprevisível, que tem levado inúmeros estabelecimentos à onerosidade excessiva do contrato.

Nesse sentido, a revisão das cláusulas remuneratórias insertas nos contratos de locação de imóveis se reveste de evidente plausibilidade jurídica, haja vista o caráter excepcional causado pela pandemia, que levou ao fechamento do comércio, no que tange às mais diversas áreas do setor econômico.

A possibilidade jurídica da revisão do contrato de locação de imóvel reside na disposição contida no artigo 317 do Código Civil de 2002, ao dispor que quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Conforme se verifica, o artigo 317 do CC/02 possibilita, por meio da atuação jurisdicional, a revisão contratual, quando, na ocorrência de fatos supervenientes e imprevisíveis, causar desproporcional onerosidade a alguma das partes contratuais, de modo que, assegure, quanto possível, o valor real da prestação. Nesse sentido, o dispositivo traz a possibilidade de revisão contratual por fato superveniente, diante de uma imprevisibilidade somada à onerosidade excessiva.

Sob o ponto de vista doutrinário, trata-se da teoria da imprevisão que, na hipótese de acontecimentos de fatos estranhos, imprevisíveis, independentes da vontade das parte, visa o alcance do justiça contratual, que impõe o equilíbrio das prestações nos contratos comutativos, a fim de que os benefícios de cada contratante sejam proporcionais aos seus sacrifícios.3

Ora, é evidente que a pandemia causada pela covid-19 é um fato imprevisível, exemplo de caso fortuito, e que, sendo a justificativa da imposição do isolamento social e do fechamento do comércio, torna ao locatário contrato excessivamente oneroso, devendo ser aplicado, além da disposição contida no artigo 317, os artigos. 3174, 393, 478 e 4795, todos do Código Civil de 2002.

E com base nesses fundamentos jurídicos que o judiciário tem se manifestado no sentido de revisar os contratos de locação de imóveis, sob o fundamento de que, com a redução das atividades e dos rendimentos dos estabelecimentos, causada por fato evidentemente imprevisível, as obrigações se tornaram excessivamente onerosas ao locatário.

A 22ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo autorizou a redução no valor do aluguel pago por um restaurante em decorrência da atual crise ocasionada pela Covid-19, que resultou na redução das atividades e dos rendimentos do estabelecimento alimentício.6

O juiz de direito Fernando Henrique de Oliveira Biolcati citou o decreto estadual 64.881/20 que, no artigo 2º, inciso II, proíbe a abertura ao público das atividades de restaurante. “Tal situação ocasionou a queda abrupta nos rendimentos da autora, tornando a prestação dos alugueres nos valores originalmente contratados excessivamente prejudicial a sua saúde financeira e econômica, com risco de levá-la à quebra”.7

Na mesma linha de raciocínio o juiz da 24ª Vara Cível de Brasília/DF concedeu, em sede de tutela de urgência, redução de 50% no valor do aluguel do imóvel onde funciona, há mais de 20 anos, o restaurante Villa Tevere8. A decisão considerou a queda no faturamento da empresa em razão das restrições comerciais impostas pelo poder público na tentativa de conter a disseminação do covid-19.

Estamos diante de um fato imprevisto, que causa um dano efetivo para o locatário (desequilíbrio contratual), tornando excessivamente onerosa a obrigação originalmente pactuada, com vantagem excessiva ao locador, previsão do art. 393, CC.9

Não se pode negar que a situação trouxe prejuízos a ambas as partes. O desafio, portanto, é a minimização dos efeitos da crise, com a sua diluição entre os contratantes, até porque nenhum deles deu causa ao ocorrido. É preciso dividir entre o locador e o locatário o esforço necessário para a continuidade da relação jurídica neste momento de crise.

É certo que os efeitos mais nefastos da crise econômica ocasionada pela covid-19 ainda estão por vir e são imprevisíveis. O que é certo é que o mercado de locações comerciais deve ser fortemente impactado, com a gradativa adequação dos preços de mercado a patamares compatíveis com a queda na procura por novos imóveis comerciais e a esperada vacância que a crise irá gerar.

Ora, as medidas de restrição impostas em decorrência da situação de calamidade pública impedem o exercício regular das atividades desenvolvidas pelos locatários, o que gera, por óbvio, inegáveis e gravosos reflexos sobre o seu faturamento. Além disso, por força de situação extraordinária de onerosidade excessiva do contrato pactuado, reveste-se de plausibilidade jurídica o pontual sobrestamento da exigibilidade obrigacional, ou, supletivamente, a sua transitória e pontual redução.

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1 O estado de emergência de saúde foi regulamentado Portaria MS 356, de 11 de março de 2020, do Ministério da Saúde

2 Art. 2º Ficam suspensos, no âmbito do Distrito Federal, até o dia 05 de abril de 2020:

I - eventos, de qualquer natureza, que exijam licença do Poder Público;

II - atividades coletivas de cinema e teatro;

III - atividades educacionais em todas as escolas, universidades e faculdades, das redes de ensino pública e privada;

IV - academias de esporte de todas as modalidades;

V - museus;

VI - zoológico, parques ecológicos, recreativos, urbanos, vivenciais e afins;

VII - boates e casas noturnas;

VIII - atendimento ao público em shoppings centers, feiras populares e clubes recreativos;

3 ROSENVALD, Nelson. Código civil comentado. Coord.: Cezar Peluso. 7ª ed. Barueri: Manole, 2013, p. 530.

4 Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

5 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. 

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.

6 Processo 1026645-41.2020.8.26.0100.

7 Processo 1026645-41.2020.8.26.0100.

8 Processo 0713297-63.2020.8.07.0001

9 Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

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*Juliana Reis é sócia do escritório Petrarca Advogados.

*João Paulo Gregório é sócio do escritório Petrarca Advogados.

 

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