A crise do mercado financeiro americano e a bancarrota de instituições como o Leman Brothers Holdings Inc. em 2008 elevou o risco econômico financeiro em todo o mundo, alterando drasticamente um ciclo econômico positivo criado pela a expansão das commodites. Em 2011, o atentado as Torres Gêmeas também freou a economia mundial trazendo consequências das mais diversas ordem. Por aqui, em 2015 e 2016, sofremos virulenta recessão econômica sendo que em 2018, a “greve dos caminhoneiros” que fez com que nossa economia suspendesse suas atividades, ainda que temporariamente. Nada, porém, parece ser semelhante ao covid-19. No Word Economic Outlook, realizado em abril deste ano, o FMI previu que países como o Brasil, México e Rússia terão suas economias encolhidas em mais de 5% em 2020. O distanciamento social recomendado pela Organização Mundial da Saúde, certamente, freia a circulação de pessoas, que por sua vez, deixam de produzir produtos, prestarem serviço e ainda: consumir. Temos, portanto, um crise de oferta diante da interrupção do fornecimento em toda cadeia produtiva e também de uma crise de demanda, em virtude da perda da renda e do emprego. Nesse cenário, tramita na Câmara dos Deputados elogiável projeto de lei de autoria do deputado federal Hugo Leal que, propõe alterações transitórias a Lei de Recuperação Judicial e Falências que devem ter vigência até 31 de dezembro de 2020 ou enquanto durar o estado de calamidade pública deflagrado pelo decreto legislativo federal 06/20. No Senado Federal, o senador Rodrigo Cunha apresentou o projeto de lei 2.373/20. Ambos à sua maneira, tentam evitar caos econômico ainda maior e os efeitos deletérios da quebra generalizada tentando dar “sobrevida” aos agentes econômicos produtivos; a facilitar o acesso ao sistema de insolvência a quem dele precisa fazer uso e ainda, em última análise: evitar a falência. Em 15.04.20, o deputado Arthur Lira apresentou no Plenário da Câmara dos Deputados, o requerimento de urgência 677/20, para esse projeto e sobre ele, apresentaremos dois artigos, divididos apenas para facilitar a compreensão.
Antes de adentrarmos na análise normativa, necessário se faz, traçarmos um corte metodológico para apurarmos o trabalho. Nessa ordem de idéias, não é demais rememorar que a lei ordinária federal 11.105/05 significou um avanço ao sistema de insolvência vigente à época. De forte inspiração norte americana (o Bankrupt Code ), a nossa recuperação judicial tem por base a própria divisão equilibrada do ônus entre credores e devedores, em que o objetivo é garantir a preservação dos benefícios trazidos pela atividade empresarial em si, tais como geração e preservação de empregos; geração e pagamento de tributos; produção e circulação de riquezas de bens, produtos e serviços. Dito de outro modo: a LRJF não tem por pressuposto proteger o devedor ou o credor, e sim a atividade fomentadora da função social empresária. Em qualquer hipótese, este deve ser o vetor pré e pós legislativo. Na feliz passagem do jurista Daniel Cárnio da Costa, a partir da a citada lei: “superou-se, portanto, o dualismo pendular1”. Com o passar do tempo, porém, a prática dos tribunais e o desenvolvimento das relações econômicas apontam a necessidade de ajustes, e pulularam vários projetos de lei, que agora, se encontram reunidos no PL 6.229/05. Que reste claro, neste, as mudanças legislativas propostas deverão ser permanentes. No PL 1.397/20, elas devem ser “temporárias” e agora se passa analisar os institutos denominados de suspensão legal e negociação preventiva. Para tanto, primeiro se firmará importante premissa da análise que por sua vez também será uma alteração da lei temporária.
A primeira grande alteração do PL 1.397/20 aqui é a ampliação subjetiva daqueles que podem pedir recuperação judicial nos termos do art. 2º Resta claro de uma vez por todas, que não mais só o empresário pode pedir RJ. Agora durante a pandemia, qualquer agente econômico o poderia, acabando com discussões infinitas nas cortes estaduais. Essa modificação é louvável e deveria ser, inclusive, mantida permanentemente. Se o desiderato da lei é salvaguardar a função social da atividade econômica, não faz sentido restringir o acesso ao remédio aos outros agentes uma vez se este também gera os benefícios percorrido pela Lei. Clubes de futebol; associações; profissionais liberais entre outros, também empregam, geram renda e pagam tributos, não havendo razão lógica para impedi-los de ter acesso ao sistema de insolvência da lei 11.205/05. Ademais, tal norma traria segurança jurídica uniformizando o entendimento do tema por todos os rincões do país, o que beneficia a todos pois restará indene de dúvidas para todos os envolvidos na relação jurídica, a possibilidade de o devedor solicitar recuperação judicial. Sobre o tema, no que tange ao produtor rural, lhes reporto para outro artigo de minha autoria, em que tive oportunidade de analisar o ponto com mais profundidade2.
Agora, trataremos dos aspectos mais relevantes novo e temporário sistema, que perpassa pelas normas dos artigos dos arts. 3º, 4º e 5º do PL em comento. Nestas, a lei previu primeiramente, a suspensão automática de toda e qualquer ação judicial executiva que envolva a discussão ou cumprimento de obrigações vencidas após 20.03.20 bem como as revisionais de contrato por 60 (sessenta) dias a contar da vigência da lei. Nesse período, não haverá execução de garantias; cobrança de multas; decretação de quebra; cobrança de multa despejo por falta de pagamento ou mesmo resolução unilateral de contratos bilaterais. O parágrafo único do art. 4º informa ainda que durante esse período de suspensão, os credores devem buscar de forma extrajudicial e direta a renegociação. Decorrido esse prazo, o devedor (qualquer agente econômico) poderia suscitar, uma única vez, procedimento de jurisdição voluntária frente ao juízo da recuperação judicial, com nova suspensão das mesmas ações supracitadas por no máximo 60 (sessenta) dias. Neste “alongamento da suspensão” seria necessário a comprovação da diminuição de 30% ou mais, do faturamento do devedor, em comparação com o mesmo trimestre no exercício anterior, o que pode ser atestado por profissional de contabilidade. Esse segundo período de suspensão seria deduzido do período previsto no art. 6º da LRJF. Caso não preenchido o requisito, o juiz deverá extinguir a ação, fazendo cessar a suspensão. O devedor pode requerer que seja nomeado um negociador profissional, que terá seus serviços contra prestados por ele. Os credores deverão ser avisados do início das negociações, sendo sua participação nestas, facultativa. Findo o prazo, o negociador deverá apresentar relatório e o juízo extinguir o procedimento.
A pretensão aqui é louvável e parece pretender ser um estímulo a auto composição de conflito. Para fomentar a negociação, o legislador criou um período em que o devedor (todo e qualquer agente econômico) ficaria “blindado”, não podendo qualquer credor acessar seu patrimônio ou mesmo avançar no caminho desse desiderato. Seria uma espécie de suspensão incondicional de “ações e algumas medidas executivas” para atravessar a crise, e que em um primeiro período, seria incondicional e em um segundo momento, sujeita a prova retro mencionada.
Seus defensores argumentam que apenas medidas extraordinárias governamentais de injeção de liquidez não serão suficientes para superarmos a avalanche de inadimplência a ser gerada e assim, precisaríamos de legislação específica que crie regras para o enfrentamento, assim como já acontece em vários países do mundo. Seria impositivo uma solução para evitar a judicialização em massa bem e assim o esgotamento do Poder Judiciário bem como a extinção de agentes econômicos saudáveis, alcançados pela crise, que ao final farão falta no sistema econômico. Os partidários dessa corrente trazem dados estatísticos interessantes para justificar a amplitude da norma: segundo o Sebrae paulista, microempresas teriam, em média 12 (doze) dias de caixa para adimplir seus compromissos e as empresas de pequeno porte, 21. Em 84% dessas, já no início da crise, a queda no fluxo teria alcançado 30% e ainda que 60% dessas, tiveram crédito negado. Para os mesmos, segundo a FIESP 63%3, as indústrias teriam caixa disponível para no máximo um mês, e destas, 73% vão precisar de crédito para capital de giro nos próximos 3 (três) meses. Assim, como o Brasil já vinha de uma crise gravíssima, muitas empresas ainda estavam alavancadas, não tinham crédito, sendo a situação agora agravada.
De outro de giro, a corrente oposta defende a necessidade de renegociação das dívidas e contratos sim, mas entende que o PL não deveria contrariar o intuito da lei originária que justamente, superou o já explicitado dualismo pendular. Do modo que foi previsto, a lei traria benefício apenas para o devedor que deixaria de honrar suas obrigações por mais no mínimo 120 (cento e vinte) dias, o que aniquilaria o faturamento do próprio credor. Alegam ainda que em momento de crise não se poderia gerar a suspensão automática geral, no primeiro período pois, se estaria criando uma espécie de moratória legal que imporia ônus demasiado a quem, assim como o devedor, também atravessa período de crise. A lei teria dado um verdadeiro cheque em branco para o devedor, que em qualquer contexto seria favorecido pela “moratória” e indistintamente. Por fim, argumentam que a se estimularia o não pagamento de toda e qualquer compromisso, desvirtuando o sistema. Aduzem, que a preocupação de não judicialização teria pouco resultado pois, as ações a serem suspensas já teriam sido distribuídas. Afirmam que o segundo período do “novo stay” pouco ajudaria na crise pois apenas grandes empresas poderiam pagar por um negociador privado, elevando com sua contratação os custos da já inacessível recuperação judicial.
Pessoalmente, penso que diante do fato imprevisível: crise econômica causada pelo covid-194 (uma norma própria e temporária para a situação é louvável e mesmo, necessária. Em que pese termos mecanismos suficientes para ultrapassar a crise, partilho da opinião que a previsão legal previne e ou, ainda diminui conflitos. Fatos e consequências deles previstos em lei sempre serão um avanço no que se refere a segurança jurídica. Mas temos que ter parcimônia com a legislação excepcional. Para que a sociedade conviva harmonicamente, sistema econômico deve ser equilibrado e a própria lei RJ, no seu nascedouro não beneficiou nem devedor e nem credor como citado. Se assim foi, penso que ainda que seja por um período de crise, não devemos nos distanciar do arcabouço principiológico inaugurado. Se a LRJF avançou e pretendeu salvaguardar os benefícios sociais gerados pela atividade econômica, estes devem ser, com mais razão agora, serem perseguidos. Quero dizer com isso que a superproteção desmensurada do devedor pode gerar o efeito reverso do pretendido pois assim, podemos estar apenas postergando o ajuizamento de novas ações para quando a nova lei não mais tiver vigência. Se a lei retende desafogar o Poder Judiciário, penso que em verdade, como ela está prevista, só postergará o problema.
Inicialmente, diante dos dados do Sebrae e FIESP citados, me parece razoável uma suspensão de no máximo 60 (sessenta dias) para que devedor possa realocar recursos e assim, recompor de algum modo seu fluxo de caixa o permitindo continuar a atuar no mercado. Mais do que isso, pode desonerar o devedor com o custo de liquidar o credor, que também poderá ser extinto. Esse novo período de suspensão, por ser “favor legal e extraordinário”, também não deveria ser automático. Os interessados, de forma clara e objetiva, deveriam apresentar em juízo, as razões da impossibilidade do cumprimento das obrigações vencidas após 20 de março de 2020, devendo ser ela e somente ela: a crise inaugurada com o covid-19, o problema que gerou retração do seu fluxo de caixa projetado a ponto de ser impossível cumprir tal obrigação no caso concreto. O percentual de retração desse fluxo deve ser analisado caso a caso, tornando a medida mais real. A documentação a ser juntada deve robusta oportunizando aos credores terem acesso a real situação econômica do seu devedor, conferindo assim legitimidade à própria negociação que seria obrigatória. Para tanto, o devedor comprovaria sua tentativa de renegociação através de expedição inequívoca de comunicação, por qualquer meio, ao credor. Neste, deverá informar que o credor poderá ter sua ação executiva suspensa e ainda os motivos reais e específicos em que a pandemia afetou seu negócio, se colocando a imediata disposição para o início das tratativas de redimensionar o contrato e a relação jurídica subjacente. Desse modo, evitaríamos pedidos oportunistas que apenas desequilibrariam a sinalagma, obrigando aquele que precisa do benefício envidar esforços para que a negociação possa ser exitosa em nítida comprovação de colaboração e lealdade, facetas da boa fé objetiva, vetor há muito previsto na norma do art. 422 do Código Civil nacional. Qualquer outra razão para a crise da empresa, como a má projeção do fluxo de caixa, que não o covid-19 seria hipótese de negativa do benefício. Imperioso aqui lembrar que teríamos um controle mais rígido e casuístico da hipótese como sóis ocorre com a prorrogação do stay período, que vem sendo flexibilizado pelos Tribunais. O TJSP, inclusive, no enunciado IX das Câmaras de Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial5 é enfático ao estabelecer expressamente: a flexibilização do prazo do “stay period’ pode ser admitida, em caráter excepcional, desde que a recuperada na~o haja concorrido com a superação do lapso temporal e a dilação se faca por prazo determinado. Nesse exato sentido, o Conselho Nacional de Justiça propõe na recomendação 63, art. 3º6. Me parece que a necessidade é a fim.
Outro ponto que merece destaque. Como sabemos, as normas jurídicas apresentam homogeneidade sintática (apresentam sempre a mesma forma, garantindo a pertinência ao sistema jurídico) e heterogeneidade semântica. Sobre esta, temos que as normas podem ser primárias (instituem relações jurídicas com a previsão de uma hipótese fática e sua consequência) e ou, secundárias (garantem o cumprimento das primeiras através de sanções aplicadas pela intervenção do Estado Juiz). As normas jurídicas só são completas se ambas as espécies estiverem presentes. Ao se admitir a norma primária sem a secundária, não garantimos a efetividade da mesma. Quando o PL citado prevê a obrigatoriedade de busca de saída extrajudicial e direta, ela é incompleta pois o não cumprimento do modal “dever” não gera qualquer intervenção do Poder Judiciário. O devedor pode ter as ações executivas suspensas, mas o Estado, ao não estabelecer uma sanção, não pode intervir. Por isso, a norma é incompleta, se assemelhando às normais morais e religiosas. É fundamental que, o PL preveja uma sanção para o comportamento oportunista de suspender as ações e não, ao menos, tentar com empenho a renegociação extrajudicial da dívida.
Por tudo, penso louvável a proposta do deputado federal Hugo Leal e entendo muitíssimo pertinente. Penso apenas, que como prevista precisa de ajustes pontuais para não violentar todo o arquétipo construído com a lei 11.205/05. O avanço da pandemia não pode ser classificada genericamente como motivo do não adimplemento. É preciso no caso concreto ser averiguar se houve efetivamente impossibilidade da prestação pelo devedor, ou mesmo excessiva onerosidade. Também se deve perquirir se há algum impacto “exógeno” a perturbar a relação contratual como é o caso da frustação do próprio contrato. A pandemia exige de credores e devedores sacrifícios econômicos mútuos na tentativa de salvaguardar o pacta sunt servanda para que não tenhamos desarrazoadas deformações e o temido engessando ainda maior da economia. Muitas vezes, ainda que haja onerosidade excessiva e mesmo impossibilidade de prestação específica de um contrato, não seria salutar trazer solução teórica e genérica, que possa fomentar o desinteresse na preservação de todo e qualquer contratos. A suspensão das ações executivas é medida extrema que também desaguará na frustação do fluxo de caixa do credor que, certamente, também vai descumprir suas obrigações, criando assim uma espiral que pode arrastar toda a cadeia produtiva. De modo algum aqui, penso que o acesso a RJ deve ser afunilado. Muito pelo contrário. Penso apenas que para ampliar sua utilização, temos que ter regras para evitar o colapso do sistema. O projeto tem outras normas interessantíssimas que aqui não fora analisadas apenas por limites editoriais do veículo. Eis, por hora, o que penso.
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1 COSTA, Daniel Cárnio em Clique aqui. Site visitado em 04.05.20.
2 GAHYVA, Samantha Rondon em: Clique aqui. Site visitado em 05.05.20.
3 Fonte citada pelos partidários da corrente: Clique aqui
4 Há quem o classifique como caso fortuito ou força maior nos termos do art. 393 do Código Civil bem como há a quem classifique como fato imprevisível e extraordinário nos termos da norma do 478 do mesmo Codex.
5 Fonte: Clique aqui. Site visitado em 05.05.20
6 Fonte: Clique aqui. Site visitado em 05.05.20.
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*Samantha Rondon Gahyva é sócia do escritório Gahyva e Maldonado Sociedade de Advogado.