Migalhas de Peso

Caviar, rapadura, jabuticabas e precatórios

Precatório é uma palavra que deriva do latim que significa "deprecare" ou requisitar algo.

17/4/2020

Embora este artigo seja destinado ao público em geral, quero dirigir uma pergunta inicial aos servidores públicos:

Você sabe a diferença do caviar com a rapadura?

Tem uma música cantada pelo sambista Zeca Pagodinho, que diz assim:

"Você sabe o que é caviar?
Nunca vi, nem comi, eu só ouço falar
Você sabe o que é caviar?
(Refrão)

Nunca vi, nem comi, eu só ouço falar
Caviar é comida de rico curioso fico,
só sei que se come.
Na mesa de poucos fartura adoidado
Mas se olha pro lado depara com a fome
Sou mais ovo frito, farofa e torresmo
Pois na minha casa é o que mais se consome
Por isso, se alguém vier me perguntar
O que é caviar, só conheço de nome
Nunca vi, nem comi, eu só ouço falar".

Então, com certeza a resposta a esta pergunta é que pouquíssimos ou quase nenhum servidor público já comeu caviar, pois é comida de rico.

Agora se eu perguntar se você já viu ou comeu rapadura, uma infinita maioria vai responder que sim.

A diferença é bem simples.

Caviar1 é uma iguaria de luxo, consistente nas ovas de um peixe chamado esturjão que vive no Mar Cáspio e seus afluentes, lá pelas bandas da Rússia e Irã, custa entre 6 e 12 mil euros o quilo. Por isso é comida de rico!

Já a rapadura, como todos sabem, é um derivado da cana de açúcar em forma de pedras que é servido como uma iguaria no campo, entre os humildes agricultores, o que com certeza não atrai os ricos.

Mas o que isso tem a ver com os precatórios? Calma, deixa eu os intrigar um pouco mais.

Agora me digam: você sabe a semelhança que tem entre a jabuticaba e o precatório. Não?

Pois vou dizer: ambos só existem no Brasil, é uma invenção tupiniquim.

Por isso quero contar pra vocês hoje a estória desta herança maldita, esta desgraça jurídica que é o precatório.

Precatório é uma palavra que deriva do latim que significa "deprecare" ou requisitar algo.

Acontece que antigamente, quando o Brasil ainda era uma Colônia e cumpria ordem de Portugal, as leis se chamavam "ordenações" e eram ditadas pelo rei de Portugal que na época era o rei Felipe. Este editou as Ordenações Filipinas estabelecendo que as dívidas públicas eram impenhoráveis.

Esta lei datada em 27.7.1582, incluiu o seguinte texto ao Livro II, Título LXXXVI, § 23 das Ordenações Filipinas: (...) os Fidalgos, os Cavalheiros e os Desembargadores nos cavalos, armas, livros, vestidos de seus corpos, nem as mulheres dos sobreditos, nem as mulheres fidalgas nos vestidos de seus corpos e camas de suas pessoas, postos que outros bens não forem necessários, se fará a execução, quando não tiverem outros bens móveis, ou de raiz. E isto se não entenda nos roubos e malfeitores, porque portais casos serão penhorados e constrangidos, até que paguem, assim por seus bens, postos que sejam sobreditos, como por prisão de suas pessoas"2.

Ou seja, contra os poderosos nada podia ser feito. Eram intocáveis.

Vai daí que um dia um comerciante aqui no Brasil que havia prestado um serviço e não lhe pagaram processou uma Câmara Municipal (naquela época não haviam prefeituras municipais, herança de Portugal, onde até hoje persiste esta tradição) e chegando o processo ao final o juiz mandou notificar a mesma para que pagasse a dívida.

Lá se foi o oficial de justiça com o mandado de notificação, mas chegando lá não pode penhorar os bens da citada, nem receber a dívida, porque o contador não quis receber a notificação, com base na tal lei acima citada, das Ordenações Filipinas.

Então o juiz não tendo outra saída, mandou um ofício ao Tribunal para que este expedisse um pedido de súplica para que o governo mandasse pagar aquela dívida.

Vem daí então a regra até hoje existente: quando o processo contra um órgão público termina, o juiz do processo manda um resumo do caso ao seu Tribunal o qual por expede um ofício requisitório ao Secretário da Fazenda, com a súplica de que a dívida deve ser paga.

Mas, pagar quando? Bem isso veremos mais adiante.

Surgiu assim então o termo até hoje existente da palavra "precatório" ou "deprecare", uma típica "invenção nacional" ou figura "tupiniquim" igual a jabuticaba3.

Então respondendo à pergunta acima a semelhança entre jabuticaba e precatório é que ambos só existem no Brasil.

Então foi das Ordenações Filipinas, escritas pelo Rei Felipe, de Portugal, que herdamos esta desgraça.

Depois de proclamada a nossa independência de Portugal (1822), a nova Constituição Imperial, de 1824, não se referiu diretamente aos precatórios, mantendo a regra de que as dívidas da coroa e demais órgãos não podiam sofrer penhora.

Mas uma malsinada Instrução Normativa 10 de abril de 1851, estabeleceu em termos legais a impenhorabilidade dos bens de Fazenda Nacional.

E então perpetuaram a regra até hoje existente que se o governante não pagar a dívida pública, seja dele ou de seu antecessor, não acontece nada com ele, porque a regra é a mesma do caviar: os ricos, abastados e maus governantes são protegidos.

Está vendo então a diferença: caviar são os ricos, pois só eles podem consumir esta caríssima iguaria, os quais tem bons advogados e pagam suas dívidas quando quiserem.

Já os pobres mortais, que são obrigados a pagar suas dívidas imediatamente - senão terão seus bens penhorados, se equiparam a rapadura, que custa pouco e é consumida pelos pobres.

A república foi proclamada em 1889, mas foi somente em 1934 que uma nova Constituição Federal entrou em vigor trazendo a tímida mudança de que os precatórios deveriam ser pagos na ordem cronológica de sua apresentação na Secretaria da Fazenda.

A novidade foi que autorizou o sequestro de quantia necessária à satisfação do débito caso a ordem de pagamento for preterida, ou seja, se um débito que está atrás da fila passar na frente de outro, o preterido poderá pedir a penhora do valor de seu crédito.

Nada mais. Porém, novamente nenhuma punição foi estabelecida se a fila não andasse e se a dívida não fosse paga, de modo que até hoje vivemos um círculo vicioso danado onde cada governante que entra joga a culpa em seu antecessor e pendura a dívida.

Existem dois: os precatórios alimentares e os não alimentares:

Precatórios alimentares que são aqueles oriundos das ações trabalhistas movidas por servidores públicos, aposentados e pensionistas contra o governo ou prefeituras, tais como: servidores que cobram diferenças salários, gratificações, indenizações, para que sejam incorporadas em seu holerite etc.

Ou seja, tudo o que tiver origem na relação trabalhista, inclusive aqueles decorrentes de acidentes de trabalho.

Os não alimentares são os precatórios de dívidas dos governos com empresas e particulares: tipo asfalto de uma rua, compras, viagens, combustíveis, desapropriações etc.

Por isso a Constituição Federal fixou a regra de que os alimentares têm prioridade em seu pagamento, vez que são indispensáveis à sobrevivência do servidor público e de seus dependentes.

Determinou que devem ser pagos em ordem cronológica de sua apresentação, mas não fixou penalidade caso não sejam pagos dentro do ano em curso.

E para os não alimentares veio uma regra dizer que devem ser pagos em 10 parcelas mensais, estabelecendo neste caso que se o governante atrasar uma das parcelas o juiz poderá mandar penhorar o valor da dívida nos caixas do órgão devedor.

Estabeleceu-se assim uma inversão de valores, pois os governantes de plantão pagam as dívidas não alimentares, porque ela tem uma regra punitiva e protelam os alimentares, já que não há punição.

Então precatório não cai do céu, não é uma dádiva, nem um favor do governante de plantão, são direitos dos servidores públicos conquistados na via judicial.

E tem mais, enquanto contra nós mortais um processo judicial tem uma série de regras e exigências, inclusive a penhora de bens do devedor, contra os entes públicos há uma série de privilégios processuais.

Por exemplo: os prazos para os advogados públicos são em dobro; um processo não termina enquanto não bater lá no Supremo em Brasília.

Ou seja, demora de 8(oito) a 12(doze) anos para terminar e ainda assim a fase da execução (apuração) da dívida vai mais uns 4(quatro) anos e no fim vem o maldito precatório.

Em São Paulo a fila dos precatórios caminha a passos lentos no ano de 2002. Isso mesmo, a maior e a mais rica unidade federativa do Brasil pagou o último precatório regular do ano de 2002.

Os idosos e doentes gozam de prioridade nesta fila, mas não recebem o valor integral. Por exemplo: se um servidor público com mais de 60 anos ou doente estiver na fila para receber R$ 120 mil reais, por conta desta sua situação ele vai receber R$ 33 mil reais, antes dos demais e o saldo restante vai para fila.

Este valor R$ 33 mil é fruto de uma nova lei aprovada pela Assembleia Legislativa em novembro passado, onde por 1(um) voto de diferença, reduziram de R$ 150 mil para R$ 33 mil, conforme projeto de lei de iniciativa do governador João Dória.

Porque antes os idosos e doentes tinham direito de receber 5 vezes o valor da RPV – requisição de pequeno valor (por volta de R$ 150 mil reais), devido a idade ou doença.

Este projeto do governador João Dória reduziu drasticamente esta prioridade, pois a RPV que era de 1.135 UFESPs (aproximadamente R$ 31 mil reais) desde 2003 foi reduzida para 449 UFESPs (por volta de R$ 11 mil reais).

Hoje o Estado de São Paulo - repita-se, o mais rico de todos, paga na justiça ao servidor público uma RPV de pouco mais de R$ 11 mil reais, o mesmo valor que é pago pela Prefeitura de Ariranha4 aos seus servidores. 

A fila dos precatórios em São Paulo tem assim 18 anos de atraso. Mas o Brasil tem mais de 6 mil devedores de precatórios, ou seja, somadas as prefeituras, estados e demais órgãos se chega próximo disso. Mas não são todos os que estão em atraso.

Estes são os campeões nas dívidas de precatórios5:

SÃO PAULO: Municípios do Estado de São Paulo e o próprio Estado, juntos devem quase 50% dos precatórios do país.

PARANÁ: O Estado do Paraná juntamente com seus municípios deve quase 13 BILHÕES DE REAIS ou 14% do total do Brasil

RIO GRANDE DO SUL: A dívida do Estado do Rio Grande do Sul é de mais de 7 BILHÕES, representando 8% da dívida total.

MINAS GERAIS: Assim como o RS, MG tem a dívida do estado muito maior que a de seus municípios cerca de 3 vezes mais. Sendo responsável por 5% do total de precatórios.

DISTRITO FEDERAL: No DF há mais de 3,5 Bilhões, ou 4% do total, mais do que grande parte dos estados.

Mas voltemos nossos olhos para o governo do Estado de São Paulo que ano passado depositou em torno de R$ 2,3 bilhões destinados para pagamentos de precatórios alimentares, beneficiando apenas 8 % dos credores.

Segundo dados do TJSP ainda há cerca de 500 mil servidores na fila dos precatórios alimentares. Pesquisas em sites dos Tribunais e do CNJ apontam que a dívida total no Brasil de Estados e Municípios chega em 141 bilhões.

Mas que culpa o servidor público tem?

Não é demais lembrar que os precatórios têm origem em decisões judiciais transitadas e julgadas, ou seja, decisões da justiça em ações judiciais que o Estado-devedor levou até as últimas consequências perdeu e agora tem que pagar.

E há uma regra na CF que decisões transitadas e julgadas são irrecorríveis. Logo, protelar o pagamento desta dívida para depois parcelar ou dar canseira no pagamento é uma afronta constitucional pela qual prefeitos e governadores que honraram cumprir a CF deveriam ser punidos, uma vez que ao tomarem posse juram honrar e respeitar a Constituição Federal.

E faz parte lamentável desta lista mais de 150 mil que já faleceram enquanto esperavam. Morreram...

Desta grande relação de credores, que aguardam na fila até décadas para receberem, uma maioria tem mais de 60 anos e uma grande parte tem 80 anos ou mais.

E então por que não pagam? Simples: porque não existe penalidade. Entra governador e sai governador, entra prefeito e sai prefeito e cada um empurra a dívida com a barriga, porque não são punidos.

Ano a ano o calote vem se perpetuando. Vejam.

Em 5 de outubro de 1.988 a CF deu um prazo de 8 anos para a quitação das dívidas acumuladas; a EC 30/2000 concedeu mais 10 anos; a EC 62/2009 deu mais 15 anos.

E depois que a desmoralização chegou a um ponto inconcebível as EC 94 e 99 estabeleceram como prazo para pagamento final dos atrasados até 2024.

E tem mais: as EC 94 e 99 ainda ofereceram aos governos devedores diversos instrumentos financeiros para honrarem a dívida e pegarem os precatórios, dentre eles podemos citar: (i) possibilidade de utilização dos depósitos judiciais; (ii) possibilidade de firmar acordos com descontos; (iii) compensações e mais prazo até 2020, que depois foi estendido até 2024 pela EC 99/2017.

E mesmo assim eles não pagam as dívidas.

Mas o que é pior de todo o acima escrito é que agora por causa da pandemia do coronavírus o governador Dória e outros governantes querem suspender o pagamento dos precatórios6.

Conforme anunciou Caio Augusto Silva dos Santos, Presidente da OABSP isso será o caos social, porque como visto acima são exatamente os servidores idosos e doentes os mais necessitados.

Os precatórios fazem rodar a economia. Quando uma pessoa recebe o valor ela compra comida, paga suas dívidas, ajuda um membro da família endividado, constrói um puxadinho, ajuda um filho ou filha a se casar, enfim, este dinheiro não será usado para comprar caviar, talvez se sobrar, uma rapadura.

E eles não perdem tempo, pois esta iniciativa já virou um PROJETO DE DECRETO LEGISLATIVO 116/2020 - por iniciativa do Senador Otto Alencar (PDS/BA) e corremos o risco de mais um calote constitucional, pois ele está em vias de ser votado com urgência.

Se aprovado ele vai depois ser discutido na Câmara dos Deputados. Por isso toda atenção e muita cautela.

É uma incoerência justificar o não pagamento dos precatórios com o covid-19 pois como dito acima, a sociedade não quer e não aceita mais políticos que juram cumprir a lei, a Constituição e as decisões judiciais e quando eleitos tem essa vergonhosa conduta e dão mal exemplo de não pagar o que devem.

Estão adiando o inadiável, penalizando os idosos com mais de 60 e 80 anos que dependem e tem direito a receber os precatórios para comprar alimentos, remédios, planos de saúde e outras necessidades.

Neste momento a solidariedade humana emerge para combater a pandemia do coronavírus, não se justificando penalizar os servidores idosos e aposentados que esperam na fila há tanto tempo, especialmente os servidores da saúde que estão na linha de frente combatendo esta pandemia.

Como disse o advogado Julio Bonafonte a isso se dê o nome de "precatoricídio" porque mais de 150.000 já morreram na fila e não receberam nada em vida e muitos mais irão morrer.

Esta prorrogação do pagamento dos precatórios vai penalizar por exemplo os servidores da saúde pública que estão na linha da frente tratando os doentes do coronavírus.

Como dito acima a EC 94 e a 99 autorizaram o uso dos depósitos judiciais por Estados e Municípios na amortização da dívida dos precatórios.

Os depósitos judiciais são oriundos do pagamento das custas e depósitos judiciais das ações em tramitação na justiça, que não tem uso e ficam rendendo juros, o chamado spread bancário.

E dinheiro existe: Segundo dados da Comissão de Precatórios da OABSP7 "há R$ 9 bilhões em depósitos judiciais disponíveis para serem exclusivamente utilizados no pagamento das dívidas com os servidores públicos. Se utilizados estes recursos, um terço da dívida total do Estado com precatórios, que hoje é de R$ 27 bilhões, seria liquidada"8.

Então se o TJSP usar estes 9 bilhões que está parado no Banco do Brasil rendendo juros será possível quitar a dívida com milhares de credores de precatórios e assim o governo do estado não vai precisar parcelar os precatórios.

Com a palavra o TJSP.

Entendeu por que caviar é diferente de rapadura e igual a jabuticaba ambos só existem no Brasil? "Por isso, se alguém vier me perguntar. O que é caviar, só conheço de nome. Nunca vi, nem comi, eu só ouço falar".

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1 Caviar.

4 O município de Ariranha localiza-se no Estado de São Paulo, mais especificamente na Região Administrativa de São José do Rio Preto, estando mais precisamente distante 388 km da capital do Estado de São Paulo. Tem pouco mais de 9 mil habitantes, ou seja, quase a mesma população que os residentes no Edifício Copan, na Capital.

5 Fonte: CNJ. 

8 Clique aqui.

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*Aparecido Inácio Ferrari de Medeiros é advogado. Conselheiro da AATSP. Sócio titular de Aparecido Inácio e Pereira Advogados Associados. Membro do SINSA-CESA e do MADECA. 

 
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