Migalhas de Peso

A suspensão das obrigações do adquirente sob a perspectiva da exceção de contrato não cumprido diante da paralisação da obra

Discussão acerca do dever de continuidade ou suspensão dos pagamentos por parte do adquirente de imóvel que se depara com os popularmente denominados “embargos de obra”, o que enseja a aplicação da exceção de contrato não cumprido

15/4/2020

Não são raras as vezes em que nos deparamos com obras suspensas em razão de irregularidades na concessão de licenças e alvarás, tendo em vista os frequentes problemas relacionados com as degradações ambientais, tudo em razão da inobservância dos órgãos ambientais, mais especificamente, do próprio servidor do órgão e do técnico responsável pela avaliação dos impactos ambientais e pela consequente concessão da licença irregular.1

A construção civil se encontra atualmente como um dos principais alicerces do país propiciando o seu desenvolvimento econômico e social, não sendo por acaso que se mostra imprescindível uma abordagem altamente crítica e capaz de unir o plano social, o econômico e o ambiental, a fim de que a livre iniciativa, um dos pressupostos caracterizadores da ordem econômica se concretize dentro de sua máxima lastreada em assegurar a todos a existência digna, já que, além de diretriz de todos os demais princípios elencados no artigo 170 da Constituição Federal2, funciona como propulsora do desenvolvimento social e econômico do país.

No que se diz respeito às irregularidades na concessão de licenças na construção de moradias, a situação toca especificamente o aspecto social, ensejando a incidência de sanções administrativas, cíveis e criminais aos agentes faltosos.

Assim, importa discorrer acerca da hipótese de aquisição de imóvel em obra que posteriormente fora suspensa em virtude de irregularidade na concessão de licenças para a construção do empreendimento, cabendo ao adquirente da unidade imobiliária suscitar a regra da exceção de contrato não cumprido visando a suspensão de suas obrigações, principalmente, no que diz respeito ao pagamento das prestações do financiamento imobiliário e obrigações junto à construtora, sendo pois, de extrema relevância, discorrer sobre os fundamentos que levam ao cabimento da suscitação de tal instituto jurídico.

Destarte, cumpre trazer a interpretação do instituto em comento, a partir das palavras do ilustre jurista Pontes de Miranda, cujo qual ressalta a necessidade de deixar claro que para a aplicação da exceção, necessária é a existência da reciprocidade: “Nem todas as dívidas e obrigações que se originam dos contratos bilaterais são dívidas e obrigações bilaterais, em sentido estrito, isto é, em relação de reciprocidade. (...) A bilateralidade - prestação - contraprestação - faz ser bilateral o contrato; mas o ser bilateral o contrato não implica que todas as dívidas e obrigações que deles se irradiam sejam bilaterais”3.

Dessa forma, a exceção de contrato não cumprido tem aplicação quando há origem comum das obrigações recíprocas (sinalagma) e quando há nexo de causalidade entre as prestações assumidas pelas partes no contrato bilateral, ou seja, quando houver interdependência e reciprocidade entre as prestações devidas, de modo que o contratante só pode cumprir sua parte na avença se e quando o outro também o fizer”4

Em síntese: “somente o devedor comprador tem a obrigação de cumprir com sua obrigação, in casu, o pagamento, se a outra parte, o construtor, estiver apresentando sua contrapartida, a construção e/ou a entrega do imóvel”.

Tem-se, portanto, que na hipótese de suspensão da obra por tempo indeterminado como ocorre nas paralisações decorrentes de ato ilícito praticado pelo dono da obra, atingindo diretamente o objeto contratado, a suspensão do cumprimento das obrigações contratuais pelo empreendedor se revela inquestionável, caracterizando pois, a exceção de contrato não cumprido, o que, per se, retira dele o direito de exigir o adimplemento das obrigações contraídas pelo adquirente, nos exatos termos do disposto no art. 476 do Código Civil5. Diante desse caso, resta evidenciada a possibilidade de suspensão da exigibilidade em relação ao adquirente, tanto relativa ao pagamento dos valores referentes ao contrato celebrado com a construtora/incorporadora, quanto ao contrato celebrado com a instituição financeira.

Veja-se que, além da suspensão versada na inexigibilidade dos pagamentos do adquirente, a qual poderá ser requerida judicialmente, inequívoco ainda o cabimento do pedido das indenizações cabíveis em face da construtora/incorporadora, com esteio nos artigos 186 e 927, ambos do Código Civil.

Por essa perspectiva, importante também a discussão acerca da responsabilidade da instituição financeira, amparada na previsão constante na lei 6.938/816, na qual pode-se inferir a possibilidade de responsabilização, independentemente do agente ser compreendido como pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, consistindo em pressuposto apenas o exercício direto ou indireto da atividade que deflagre a degradação ambiental.

Não bastasse poder-se chegar claramente à essa conclusão, tem-se ainda que, de acordo com previsão constante no artigo 12, caput, da lei 6.938/81,fora expressamente consignada aresponsabilidade das instituições financeiras estatais quanto à avaliação do cumprimento das normas, dos critérios, bem como dos padrões expedidos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA, no que se inclui a realização do licenciamento ambiental, antes da celebração dos contratos de mútuo.

Nesse sentido, vale colacionar entendimento proferido no REsp 51.169/RS, pelo relator Ari Parengler, no sentido de que: “A obra iniciada mediante financiamento do Sistema Financeiro da Habitação acarreta solidariedade do agente financeiro pela respectiva solidez e segurança”7.

Não obstante, tem-se que a lei 11.105/058, ao estabelecer normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvem organismos geneticamente modificados – OGMs, dispôs ainda em seu artigo 2º, § 4º sobre a responsabilização de instituições financiadoras públicas, bem como privadas, quando essas deixarem de exigir a comprovação quanto a sua regularidade9

Vozes importantes como Paulo Affonso Leme Machado10 sustentam o mesmo entendimento, no sentido de que as instituições financeiras privadas teriam exatamente as mesmas obrigações que as instituições públicas relativamente ao meio ambiente, não se mostrando razoável tratamento diferenciado aos referidos setores do sistema financeiro, o que segundo Talden Farias seria uma visão “consentânea com um preceito-chave da Lei nº 6.938/81, segundo o qual “as atividades empresariais públicas ou privadas serão exercidas em consonância com as diretrizes da Política Nacional do Meio Ambiente”11.

Ainda quanto a exceção de contrato não cumprido, vale salientar que a possibilidade de um dos contraentes não se ver obrigado a cumprir sua obrigação diante do descumprimento do outro, não se trata de novidade no ordenamento jurídico pátrio, inclusive, no que diz respeito ao agente financeiro, eis que tal regra se encontra disposta expressamente na lei, o que se renova, no entanto, são as nuances em que tais celeumas jurídicas ocorrem. Destarte, importante destacar que a hipótese que se traz a comento é aquela decorrente da paralisação de obra fundada em ato ilícito do dono da obra (a exemplo de compra de licenças mediante atos corruptivos, ou concessão irregular devidamente comprovada), permitindo a incidência do instituto da exceção de contrato não cumprido.

Não obstante, cabe lembrar ainda, para fins elucidativos, que de acordo com a jurisprudência pátria remansosa, alegações pautadas em “entraves burocráticos, morosidade dos órgãos públicos na confecção e entrega do habite-se, ocorrência de chuvas em excesso, falta de mão de obra, aquecimento do mercado ou, ainda, percalços administrativos”12 não afastam a responsabilidade das construtoras/incorporadoras pelo atraso na entrega do imóvel, ensejando a responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar, além da suspensão dos pagamentos por parte do adquirente da unidade imobiliária.

Por outro lado, tem-se como inequívoco que, nas hipóteses de ocorrência de caso fortuito ou força maior, não há como suscitar a aplicação de tal instituto jurídico, eis que tais eventos, por si só, dada a impossibilidade de previsão ou ingerência, impõem “o reconhecimento da ausência de culpa de ambas as partes e o retorno destas ao status quo ante, desacompanhado do pagamento de perdas e danos pelo inadimplente, haja vista a presença de causas excludentes da responsabilidade civil”, eis que, ainda em consonância com acórdão de relatoria do Desembargador Sandoval Oliveira, “somente o fortuito externo, ou seja, aquele evento que não tenha ligação direta com a atividade desempenhada pela empresa, afigura-se apto a romper o nexo de causalidade13.

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1 ROCHA, Debora de Castro. Licenciamento Ambiental - Irregularidades e Seus Impactos Socioambientais. 2019.

2 BRASIL. CF. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (...)

3 PONTES DE MIRANDA apud Humberto Theodoro Jr., O contrato e seus princípios, 2ª ed., 1999, p. 85.

4 TJSP - Ap. 0015518-97.2013.8.26.0576 - São José do Rio Preto - 13ª Câmara de Direito Privado - Rel. Francisco Giaquinto - J. 17.11.14

5 BRASIL. CC - Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.

6 BRASIL. Lei federal 6.938/81. Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências.

7 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p. 184.

8 BRASIL. Lei 11.105, de 24 de março de 2005. Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados (...)

9 BRASIL. Lei 11.105, de 24 de março de 2005. Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a lei 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a medida provisória 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da lei 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências. Disponível em: Clique aqui Acesso em: 19 mai. 2019.

10 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 9. Ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 317 in FARIAS, Talden. Licenciamento Ambiental: Aspectos Teóricos e Práticos. 6. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 198-199.

11 FARIAS, Talden. Licenciamento Ambiental: Aspectos Teóricos e Práticos. 6. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 200.

12 Acórdão 1220013, 07113443520188070001, Relator: SANDOVAL OLIVEIRA, 2ª Turma Cível, data de julgamento: 04.12.19, publicado no DJE: 09.12.19.

13 Acórdão 1220013, 07113443520188070001, Relator: SANDOVAL OLIVEIRA, 2ª Turma Cível, data de julgamento: 04.12.19, publicado no DJE: 09.12.19.

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*Debora Cristina de Castro da Rocha é advogada fundadora do escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia. Graduada em Direito pelo Centro Universitário Curitiba. Presidente da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico da Associação Brasileira de Advogados (ABA) Curitiba.



*Edilson Santos da Rocha é Controller Jurídico pelo escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia. Acadêmico de Direito pela Faculdades da Industria - FIEP. Pesquisador pelo Centro Universitário Curitiba.

 

 

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