O desprestígio às Constituições é um fenômeno global. Referindo-se à tensão entre as forças políticas alemãs e a Constituição daquele país, o juiz do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (Bundesverfassungsgericht) Dieter Grimm escreveu "essa cultura de direito fundamental, desenvolvida de forma extraordinariamente alta e tida por muitos países como exemplar, parece estar diante de uma crescente falta de vontade com os direitos fundamentais".
Por aqui, no Brasil, a mesma falta de vontade parece sintomática do "cansaço dos direitos fundamentais na atualidade" – expressão também cunhada pelo jurista Dieter Grimm.
Interessa-nos nesse artigo analisar essa hipótese sob o enfoque da restrição às liberdades fundamentais, especialmente no que tange àquelas restrições que importam em suspensão de direitos políticos por condenação em ação civil de improbidade. Este foco se justifica ante o potencial impacto que tais restrições tenham, ou possam vir a ter, sobre o resultado das eleições municipais de 2020.
Segundo o Cadastro Nacional de Condenações Cíveis por Ato de Improbidade Administrativa e Inelegibilidade (CNCIAI/CNJ), condenações em ações civis de improbidade têm levado a uma ascendente de suspensões de direitos políticos, iniciando no ano de 2012 com 1.162 casos de inelegibilidade, seguindo-se o ano de 2013 com outras 2.377 suspensões, e nos anos seguintes 8.347 (2014), 9.201 (2015), 13.092 (2016), 11.831 (2017), 14.149 (2018) e 13.258 casos em 2019. Os números parciais divulgados até o mês de fevereiro de 2020 já indicam 1.557 casos apenas no ano de 2020.
Tais números não consideram a totalidade das condenações por improbidade administrativa, nem tampouco indicam se os condenados possuem ativa participação política, mas sua leitura é relevante por demonstrar como tem aumentado progressivamente o número de potenciais lideranças políticas e candidatos a cargos eletivos alijados do processo democrático eleitoral.
Justas ou injustas, o que nossa experiência demonstra é que muitas condenações por improbidade aplicam a suspensão de direitos políticos de forma objetiva e sem qualquer fundamentação que justifique a excepcionalidade da pena política capital; em outras letras, a restrição à liberdade fundamental de participar do processo político democrático é aplicada indistintamente sempre que há condenação por improbidade.
A suspensão de direitos políticos é medida excepcional que somente se justifica face a gravidade da conduta improba praticada (conforme §9º do art. 14 da Constituição), tornando razoável, nesta excepcional hipótese, a restrição das liberdades fundamentais garantidas pelos artigos 14 e 5º, §3º, da Constituição da República e pelo art. 23 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Perante essas disposições constitucionais e supralegais, devem-se curvar a Lei de Improbidade Administrativa e também a Lei da Ficha Limpa.
Não justifica a suspensão de direitos políticos, portanto, o mero erro no exercício da função pública que atente contra os princípios da administração pública, ou ainda o ato culposo que cause danos ao erário. Em casos tais e mesmo se causados danos a res pública, não parece razoável a suspensão de direitos políticos porque o agente não agiu deliberadamente com a intenção de abusar de seu poder econômico ou de abusar do exercício de função, cargo ou emprego, conforme baliza hermenêutica definida no citado §9º do Art. 14 da Constituição da República.
Para fins da pena de suspensão de direitos políticos é admissível como fundamento determinante, tão somente, a gravidade da conduta do agente, uma vez que o ato ímprobo, per si, não justifica a restrição ao processo democrático pela suspensão de direitos políticos. É dizer, em outras letras, que a gravidade dos danos causados por erro ou culpa não são justo fundamento para aplicação da pena de suspensão de direitos políticos.
Condenações judiciais que padeçam desse vício ao fixar a pena política capital, mesmo quando transitadas em julgado, devem ser rápida e prontamente revisadas pelo Poder Judiciário, restabelecendo-se a liberdade política dos condenados por ato ímprobo sem gravidade.
Nesse contexto de aparente injustiça que poderá mitigar a universalidade e legitimidade do processo eleitoral no ano de 2020, encerramos com a citação do prof. Miguel Rodrigues Nunes Neto em estudo sobre a obra do John Rawls, professor da Universidade de Harvard, onde afirma que "a negação da justiça ou a criação de um cenário comissivo de injustiça, porventura causado pelas próprias instituições que compõem a estrutura básica da sociedade, representa um abandono (...) das decisões políticas ali tomadas".
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*Franklin da Costa é advogado, subprocurador-geral da República aposentado e consultor do escritório Burjack, Nunes & Vasconcelos Advogados.
*Paulo Burjack é advogado criminalista e sócio do escritório Burjack, Nunes & Vasconcelos Advogados.