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Crise da COVID-19 e os riscos de leis emergenciais em Direito Privado: é tempo de ação?

Pode-se questionar, é verdade, o que deveria ser feito em um contexto de tamanha instabilidade, no qual, inegavelmente, há desarranjos nas relações de Direito Privado que precisam ser equilibradas.

13/4/2020

Vivemos tempos de crise. A pandemia da COVID-19 e as medidas necessárias ao seu combate têm trazido fortes impactos ao mercado e à vida das pessoas.

Em meio a tantas invocações à noção de crise, é necessário nos atermos, entretanto, ao significado dessa palavra tão poderosa. Entre as diversas acepções do termo crise, a que se aplica para descrever o momento corrente é um "[e]stado de incerteza ou ruptura em relação a escolhas, crenças etc"1.

Portanto, o que marca um momento de crise é, justamente, a falta de parâmetros claros de ação. A crise não é a doença e muito menos a convulsão econômica e social. Isso são apenas fatos. A crise está na falta de certeza acerca das perspectivas do futuro, do que fazer, do como proceder, do quanto e até quando devemos, simplesmente, nos abster. Essa é uma angústia que hoje experimentamos no nosso dia a dia, mas é um fardo ainda mais pesado àqueles incumbidos de tomar grandes decisões que afetam a vida dos cidadãos e o equilíbrio do mercado.

Contenção da propagação do vírus, auxílio aos mais vulneráveis, políticas de manutenção de emprego e redução dos impactos econômicos da pandemia estão entre as pautas mais urgentes que ocupam as autoridades.

Nesse contexto, uma das medidas emergenciais vislumbrada é a regulação das relações de Direito Privado, dada sua íntima conexão com o funcionamento dos mercados e com os aspectos mais essenciais da vida das pessoas. Para evitarmos desentendimentos, consideramos, por Direito Privado, aquelas relações particulares entre dois ou mais sujeitos, nas quais há um balanço equilibrado de forças e de necessidades, tais como as relações interempresariais e as relações entre cidadãos. O Direito do Trabalho e o Direito do Consumidor, por sua vez, mesmo que regulem relações entre particulares, possuem lógica própria e autonomia principiológica que os excluem de um tratamento unitário.

Diante desse cenário peculiar, que desafia o nosso imaginário, assiste-se a uma proliferação de propostas de leis emergenciais, em todas as esferas do Poder Legislativo, visando a regular as relações privadas em tempos de crise. Estão nas pautas mais frequentes as moratórias ou reduções no pagamento de prestações de aluguel, a dilação do vencimento de obrigações contratuais e/ou a modificação de suas condições, a redução de mensalidades escolares, etc.

Cita-se, como um precedente histórico de propostas dessa natureza, a célebre Loi Failliot. Tratava-se de uma lei de emergência, editada pelo Poder Legislativo francês, em 1918, que autorizava a resolução do contrato ou a suspensão de seu cumprimento quando a prestação se tornasse excessivamente onerosa, em razão dos fatos imputáveis à Primeira Guerra Mundial2.

Descura-se, no entanto, que a Loi Failliot foi editada no contexto de uma concepção ainda muito restrita da interpretação jurídica e das possibilidades de atuação do direito no caso concreto. Não se cogitava, então, como hoje é corriqueiro, a concretização de princípios, possibilitada por meio de cláusulas gerais presentes nas modernas legislações civis. No Brasil de 2020, diferentemente da França de 1918, a legislação codificada conta com diversos dispositivos que autorizam o Poder Judiciário, após analisar, detidamente, as peculiaridades do caso concreto, a proceder ao reequilíbrio de contratos na hipótese de alterações de circunstâncias graves, como a pandemia do coronavírus.

O art. 317 do Código Civil, por exemplo, autoriza a revisão da prestação pelo Poder Judiciário naqueles casos em que, por conta de fatos imprevisíveis, seu valor se torne desproporcional em comparação aos parâmetros vigentes à época da formação contratual. Na mesma linha, o art. 478 do referido Diploma permite a resolução contratual quando haja uma excessiva desproporção entre as prestações correspectivas, com vantagem extrema para uma das partes, em decorrência de eventos imprevisíveis e extraordinários. Complementando, os arts. 113, 187 e 422 do Código Civil versam sobre uma atuação conforme a boa-fé objetiva que, em um cenário de calamidade, reforça o dever de cooperação entre as partes, a fim de que elas alcancem um resultado equitativo em meio aos desequilíbrios ocasionados pela crise. Notamos, pois, que o panorama jurídico atual não é mais de um positivismo absoluto do início do século XX, quando se fazia necessária a intervenção emergencial do legislador para dar conta de situações críticas que afetavam as relações de Direito Privado.

Para além de uma certa ociosidade de grande parte de referidas propostas de leis emergenciais, elas guardam, ainda, um outro perigo. Nas relações de Direito Privado, necessariamente, estão em jogo interesses de igual valor normativo e pretensões de idêntico peso moral. Não há uma parte hipossuficiente em conflito com uma entidade de poderio superior. Em relações tipicamente privadas (civis ou empresariais), como regra, o benefício conferido a um importa um prejuízo direto e concentrado ao outro. É por isso que os clássicos institutos de Direito Privado, em um processo de acumulação e acomodação milenar, se estruturaram como um jogo de equilíbrio de interesses igualmente legítimos e bilateralmente contrapostos, inspirado pela ideia de Justiça Corretiva3. Essa lógica, é importante ressaltar, tem, no Brasil, relevância constitucional, haja vista que a nossa Constituição reconhece a relevância política da livre-iniciativa (art. 170) e do direito à propriedade privada (art. 5º, XXII), que são, afinal, o subtrato das normas de Direito Privado.  Nesse sentido, qualquer medida que importe em modificações genéricas (ainda que temporárias) dessas normas de Direito Privado, inevitavelmente, desequilibra a balança de interesses igualmente legítimos, constitucionalmente assegurados, arriscando violar o pacto político assumido pela sociedade brasileira.

Não é adequado, por exemplo, ao nosso ver, estatuir, em absoluto, uma moratória a todos os aluguéis comerciais, pois, em situações como a presente, há negócios (como o de supermercados e de farmácias) que, a depender da localidade, nunca foram tão demandados. Isso esvaziaria, sem razão aparente, o direito de propriedade do locador. De igual modo, nas locações residenciais, há locatários que não tiveram redução de renda. Portanto, qual seria a justificativa para o não pagamento do aluguel? No mesmo sentido, nem todos os Estados e Municípios estão adotando um regime de quarentena estrito, razão pela qual os impactos econômicos da crise sobre contratos não se dará de modo uniforme em todo território nacional, ainda que referidas medidas devam ser, necessariamente, editadas pela União Federal, nos termos do art. 22, I, da Constituição4. Nesse contexto, normas que atribuam o ônus contratual maior a uma parte em relação à outra abalam a dinâmica da livre-iniciativa, importando em uma injustificada intervenção estatal na esfera do particular.

Pode-se questionar, é verdade, o que deveria ser feito em um contexto de tamanha instabilidade, no qual, inegavelmente, há desarranjos nas relações de Direito Privado que precisam ser equilibradas. Parece-nos, ao menos no tocante às relações entre particulares, nas quais presume-se uma posição isonômica das partes, que é o momento de cautela no que se refere à atividade legislativa, deixando-se, a priori, a cargo das próprias partes renegociarem as condições contratuais e, em última instância, ao Poder Judiciário o papel de rever situações específicas para as quais não tenha havido um consenso. Alertamos, na oportunidade, para o fato de que a crise, no que se refere às relações de Direito Privado, não será sanada por leis.

Uma modificação genérica e abrangente de dispositivos de Direito Privado, ainda que temporária, arrisca colocar todo o ônus do fato imprevisível ocorrido em apenas uma das partes, violando a sua esfera particular de seus direitos e legítimos interesses. Caberá, pois, ao Poder Judiciário, ponderando as situações efetivamente levadas à sua cognição, consoante o arcabouço normativo já existente para situações como a presente, restaurar o equilíbrio contratual das partes.

Estabilizada a crise, é possível cogitar acerca de normas extraordinárias para endereçar ex post possíveis desequilíbrios que tenham se consumado, respeitando-se, sempre, o ato jurídico perfeito, nos termos do art. 5º, XXXVI, da Constituição. Referidas leis, sim, poderão ser feitas com o devido estudo de impacto econômico e social, analisando de forma detida todos os interesses envolvidos. Por ora, no entanto, enquanto ainda não temos claro o cenário que se delineará, entendemos ser, no âmbito das relações de Direito Privado, o tempo de aguardar e observar, evitando-se que, com a melhor das intenções, criem-se ainda mais inseguranças, celeumas interpretativas e riscos para as pessoas e para o mercado.

________

1 CALDAS AULETE, Francisco Júlio de. Aulete Digital. Lexikon, 2020. Disponível em: <_https3a_ _www.aulete.com.br2f_crise="">. Acesso em abril de 2020.

2 A transcrição traduzida de referida lei pode ser encontrada em RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: Autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 29-30.

3 Sobre a ideia de que a Justiça Corretiva seria o conceito unificador de toda a lógica interna do sistema de direito privado, remete-se à obra: WEINRIB, Ernest J. The Ideia of Private Law. 2ªed. Oxford: Oxford University Press, 2012.

4 Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho; [...].

_________

*Natália Cristina Chaves é professora de Direito Empresarial da Faculdade de Direito da UFMG e sócia da Passos e Chaves Sociedade de Advogados.

*Henry Colombi é mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da UFMG e sócio da Passos e Chaves Sociedade de Advogados.

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