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A notificação compulsória de doenças

O ato de comunicar a doença de notificação compulsória não fere as regras éticas.

9/4/2020

Em nosso país as normas relativas à notificação compulsória de doenças encontram-se na Lei 6.259, de 30 de outubro de 19751, conhecida como Lei de Vigilância Epidemiológica e no Decreto 78.231, de 12 de agosto de 19762, seu regulamento. A lei determina serem de notificação compulsória os casos suspeitos ou confirmados de certas doenças que, de acordo com o Regulamento Sanitário Internacional, possam requerer medidas de isolamento ou quarentena; as doenças constantes de relação elaborada pelo Ministério da Saúde para cada unidade da federação e os acontecimentos excepcionais de agravo à saúde.

O anexo da Portaria 204, de 17 de fevereiro de 20163, do Ministério da Saúde relaciona as doenças, agravos e eventos de saúde pública que devem ser informados às autoridades sanitárias – Lista Nacional de Notificação Compulsória4.

É dever do cidadão comunicar às autoridades sanitárias acontecimentos, comprovados ou presumidos, de doença transmissível e obrigação dos médicos e profissionais de todas as categorias que atuam na área da saúde, inclusive responsáveis por instituições hospitalares e ambulatoriais públicas ou privadas, entidades de cuidado coletivo, serviços de hemoterapia, unidades laboratoriais, instituições de ensino e pesquisas, enfim, de qualquer pessoa que saiba ou tenha suspeita de alguém que tenha contraído aquelas doenças.

Trata-se de dever legal cuja inobservância configura infração sanitária.

Considerando que a notificação compulsória tem por finalidade levar ao conhecimento das autoridades sanitárias o surgimento de enfermidades que podem prejudicar ou ameaçar a saúde da população, essa importante ferramenta dá à administração pública elementos para empregar medidas protetivas à coletividade e assim reduzir, prevenir, conter a propagação pelo contágio e, até, erradicar doenças. Essa é a razão pela qual incorre em penalidades administrativas, civis e penais quem descumprir o dever de notificar5.

O Código de Ética Médica (CEM) possui disposições expressas no sentido de que é vedado ao médico deixar de colaborar com as autoridades sanitárias ou infringir a legislação pertinente6.

No tocante ao sigilo profissional, o CEM estabelece ser vedado ao médico revelar fato de que teve conhecimento no decorrer do exercício da profissão, à exceção por justa motivação, dever legal ou consentimento do paciente7. Considerando que diante das responsabilidades ético-legais e sociais do médico, está claro que as doenças de notificação compulsória enquadram-se na hipótese excepcional de permissão da ruptura do sigilo.

O ato de comunicar a doença de notificação compulsória não fere as regras éticas. Porém, o médico não poderá ir além da revelação do diagnóstico. Seu dever restringe-se, tão e só, em comunicar o fato à autoridade sanitária. Por conseguinte, está impedido de encaminhar o prontuário do paciente com a notificação8.

Constatado o descumprimento do dever jurídico de noticiar a doença, a autoridade comunicará a falta cometida ao Conselho Regional de Medicina do lugar onde o profissional exerce a atividade, sem prejuízo de outras medidas. Uma vez que o Código Penal considera crime contra a saúde pública a omissão ao dever da notificação, levará ao conhecimento da autoridade policial para promover a instauração do inquérito ante o delito praticado9.

Ao comunicar a doença, o médico não incide na violação do segredo profissional porque a figura típica de tal crime é violar segredo sem justa causa, o que não ocorre nesta hipótese10. Contudo, se negligenciar e deixar de comunicar, recai sobre ele as consequências da infração penal pelo delito de omissão de notificação de doença.

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1 Lei n. 6.259, de 30 de outubro de 1975 – Dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, e dá outras providências.

2 Decreto n. 78.231, de 12 de agosto de 1976 – Regulamenta a Lei n. 6.259, de 30 de outubro de 1975, que dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, e dá outras providências.

3 Portaria n. 204, de 17 de fevereiro de 2016 – Define a Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional, nos termos do anexo, e dá outras providências.

4 Redação dada pela PRT GM/MS n. 264 de 17.02.2020 – 1 – a. Acidente de trabalho com exposição a material biológico, b. Acidente de trabalho: grave, fatal e em crianças e adolescentes; 2 – Acidente por animal peçonhento; 3 – Acidente por animal potencialmente transmissor da raiva; 4 – Botulismo; 5 – Cólera; 6 – Coqueluche; 7 – a. Dengue – Casos, b. Dengue – Óbitos; 8 – Difteria; 9 – a. Doença de Chagas Aguda, b. Doença de Chagas Crônica; 10 – Doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ); 11 – a. Doença Invasiva por "Haemophilus Influenza", b. Doença Meningocócica e outras meningites; 12 – Doenças com suspeita de disseminação intencional: a. Antraz pneumônico, b. Tularemia, c. Varíola; 13 – Doenças febris hemorrágicas emergentes/reemergentes: a. Arenavírus, b. Ebola, c. Marburg, d. Lassa, e. Febre purpúrica brasileira; 14 – a. Doença aguda pelo vírus Zika, b. Doença aguda pelo vírus Zika em gestante, c. Óbito com suspeita de doença pelo vírus Zika; 15 – Esquistossomose; 16 – Evento de Saúde Pública (ESP) que se constitua ameaça à saúde pública (ver definição no art. 2º desta portaria); 17 – Eventos adversos graves ou óbitos pós vacinação; 18 – Febre Amarela; 19 – a. Febre de Chikungunya, b. Febre de Chikungunya em áreas sem transmissão, c. Óbito com suspeita de Febre de Chikungunya; 20 – Febre do Nilo Ocidental e outras arboviroses de importância em saúde pública; 21 – Febre Maculosa e outras Riquetisioses; 22 – Febre Tifoide; 23 – Hanseníase; 24 – Hantavirose; 25 – Hepatites virais; 26 – HIV/AIDS - Infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana ou Síndrome da Imunodeficiência Adquirida; 27 – Infecção pelo HIV em gestante, parturiente ou puérpera e Criança exposta ao risco de transmissão vertical do HIV; 28 – Infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV); 29 – Influenza humana produzida por novo subtipo viral; 30 – Intoxicação Exógena (por substâncias químicas, incluindo agrotóxicos, gases tóxicos e metais pesados); 31 – Leishmaniose Tegumentar Americana; 32 – Leishmaniose Visceral; 33 – Leptospirose; 34 – a. Malária na região amazônica, b. Malária na região extra-Amazônica; 35 – Óbito: a. Infantil, b. Materno; 36 – Poliomielite por poliovirus selvagem; 37 – Peste; 38 – Raiva humana; 39 – Síndrome da Rubéola Congênita; 40 – Doenças Exantemáticas: a. Sarampo, b. Rubéola; 41 – Sífilis: a. Adquirida, b. Congênita, c. Em gestante; 42 – Síndrome da Paralisia Flácida Aguda; 43 – Síndrome Respiratória Aguda Grave associada a Coronavírus a. SARS-CoV, b. MERS- CoV; 44 – Tétano: a. Acidental, b. Neonatal; 45 – Toxoplasmose gestacional e congênita; 46 – Tuberculose; 47 – Varicela - caso grave internado ou óbito; 48 – a. Violência doméstica e/ou outras violências, b. Violência sexual e tentativa de suicídio.

5 Lei n. 6.437, de 20 de agosto de 1977 – Configura infrações à legislação sanitária federal, estabelece as sanções respectivas, e dá outras providências. Art. 10 - São infrações sanitárias: (...) VI – deixar, aquele que tiver o dever legal de fazê-lo, de notificar doença ou zoonose transmissível ao homem, de acordo com o que disponham as normas legais ou regulamentares vigentes: pena - advertência, e/ou multa;

Código Penal – Art. 268 – Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.

6 CEM – Capítulo III – Responsabilidade Profissional – É vedado ao médico (...) Art. 21 Deixar de colaborar com as autoridades sanitárias ou infringir a legislação pertinente.

7 CEM – Capítulo IX – Sigilo Profissional – É vedado ao médico (...) Art. 73 Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.

8 Resolução CFM nº 1.605/2000 – Art. 2º – Nos casos do art. 269 do Código Penal, onde a comunicação de doença é compulsória, o dever do médico restringe-se exclusivamente a comunicar tal fato à autoridade competente, sendo proibida a remessa do prontuário médico do paciente.

9 Código Penal: art. 269 – Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

10 Código Penal: art. 154 – Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa. Parágrafo único – Somente se procede mediante representação.

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*Décio Policastro é sócio do escritório Araújo e Policastro Advogados.

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