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O coronavírus e a mitigação da capacidade colaborativa do contribuinte: razões para se postergar deveres instrumentais e para se afastar as respectivas penalidades

Diante da declaração de pandemia ocasionada pela disseminação do coronavírus, pretende-se avaliar os fundamentos constitucionais e legais que orientam a persistência – ou não – da necessidade de cumprimento das obrigações acessórias (deveres instrumentais) vinculadas ao Direito Tributário e o possível afastamento das penalidades pecuniárias.

8/4/2020

Foi aprovado pelo Senado Federal, no dia 20.3.20, o decreto de estado de calamidade pública (PDL 88/20) enviado pelo Governo Federal. No mesmo sentido, nesse mesmo período foram publicados decretos pelos diversos governos Estaduais e Municipais impondo, nesses casos, não apenas medidas orçamentárias, mas, também, medidas de isolamento individual, restrições de circulação e de funcionamento de estabelecimentos, todas elas com o objetivo de evitar e combater a propagação da pandemia ocasionada pelo coronavírus (covid – 19).

Diante desse cenário, faz-se oportuno e necessário avaliar a persistência da obrigação de declarar tributos sujeitos ao lançamento por homologação, especialmente o IRPF, e a viabilidade de os entes fazendários aplicarem as sanções previstas para o caso de descumprimento desses deveres instrumentais. Com esse objetivo, pretende-se avaliar, de forma muito sintética, os fundamentos normativos que obrigam os contribuintes a prestarem informações ao fisco; suas razões subjacentes; e a finalidade das penalidades previstas pelo seu descumprimento, a fim de permitir uma reflexão acerca da aplicação dessas normas diante do cenário atual.

Refere-se, preliminarmente, que a partir do desenvolvimento da técnica e do aumento da complexidade na composição das bases tributáveis, os entes fazendários passaram a exigir dos contribuintes, além da obrigação substancial de recolher o tributo, a obrigação formal de identificar e informar tempestiva e corretamente as bases tributáveis. Assim, ao longo das últimas décadas, houve um deslocamento da sistemática e dos procedimentos necessários para a liquidação e pagamento do tributo para o setor privado, cujo cumprimento é assegurado por meio de variadas sanções administrativas e penais. Tal fenômeno não é exclusivo de nosso sistema, mas trata-se de tendência com ressonância de âmbito mundial em relação aos diversos entes fazendários1.

Diante dessa crescente atribuição de responsabilidade aos contribuintes, autores como Leandro Paulsen, Éderson Garin Porto e outros2 identificaram que, além da capacidade contributiva, prevista de forma expressa no artigo 145, §1º da Constituição Federal, haveria a necessidade de se sustentar a existência da chamada capacidade colaborativa, a qual está atrelada aos deveres de colaboração e à capacidade colaborativa individual.

Em Portugal, propagando pesquisa no mesmo campo, o doutrinador Saldanha Sanches entende por "deveres de cooperação ou de colaboração (Mitwirkungspflichtcompliance) o conjunto de deveres de comportamento resultantes de obrigações que têm por objeto prestações de informações de conteúdo não diretamente pecuniário com o objetivo de permitir à Administração que realize a investigação e determinação dos fatos fiscalmente relevantes"3.

Os deveres de cooperação ou colaboração relacionam-se a toda obrigação vinculada a comportamentos de conteúdo não diretamente pecuniário, mas que estejam associadas à obrigação principal no sentido de instrumentalizar o seu cumprimento. Assim, enquanto que para se avaliar a capacidade contributiva vinculada ao dever de pagar tributos indica-se como relevante as manifestações de riquezas; sob a perspectiva do dever de colaboração e da respectiva capacidade colaborativa é relevante a identificação da potencialidade de o contribuinte aportar informações ou de agir de outro modo para o seu bom funcionamento4.

Estabeleceu-se em nosso sistema, por disposição do art. 136 do CTN, que a responsabilidade dos contribuintes pelo cumprimento das obrigações tributárias (substanciais e formais) é objetiva, independendo da intenção do agente ou da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato, ou seja, o descumprimento das obrigações instrumentais imporiam a incidência da penalidade independentemente da existência de dolo ou culpa do agente. Entretanto, diante da possibilidade de se constatar como razão subjacente das chamadas obrigações acessórias a necessária existência de capacidade colaborativa, é possível identificar, também, um limite à essa exigência, o qual pode ser traçado pela identificação da efetiva capacidade dos contribuintes prestarem as informações requisitadas pelo fisco sem que sejam excessivamente onerados.

Em casos como o presente, que é inédito em nossa história, onde se está combatendo uma pandemia por meio de normas que impõem a necessidade de isolamento físico entre as pessoas, há evidência de que a capacidade de prestar informações ao fisco torna-se, presumivelmente, reduzida, devendo ser mitigada a possibilidade dessa exigência. Tal constatação afeta, de forma necessária, a aplicação das respectivas penalidades, pois as multas pelo não cumprimento das obrigações acessórias têm natureza punitiva e cominatória, tendo a pretensão de induzir coativamente ao cumprimento dos deveres instrumentais e, também,  prevenir o ilícito fiscal5, sendo que, no caso, o descumprimento dos deveres instrumentais não decorreria nem de desídia, nem de ato ilícito, mas unicamente do  cumprimento da obrigação de isolamento decorrente de legislações emergenciais, afastando-se a atitude da razão subjacente que as normas punitivas pretendem combater.

Além disso, tal atitude por parte do contribuinte teria amparo constitucional pela aplicação do Princípio da Proporcionalidade no conflito entre o direito fundamental à saúde e o dever de financiamento do Estado de Direito, por meio da aplicação dos juízos valorativos de: i) adequação; ii) necessidade e iii) proporcionalidade em sentido estrito. Nos limitamos a referir o postulado/princípio da proporcionalidade brevemente posto que sua plena apreciação necessitaria de aprofundamento que ultrapassa o objeto e o espaço destinado à presente exposição.

Refere-se, por outro lado que caso o contribuinte optasse por cumprir parcialmente seus deveres instrumentais e entregar uma declaração incompleta, como por exemplo uma declaração de IRPF sem a indicação de todas as receitas que recebeu no último ano-calendário, tal atitude poderia ser enquadrada como ilícito penal, nos termos do  art. 2º, I, da lei 8.137/90, que institui como crime o ato de fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo. É certo que para o enquadramento do ilícito penal far-se-ia necessária a evidência do dolo, porém não se pode negar esse risco de enquadramento pelo fisco do contribuinte que prestar informações incompletas.

Portanto, considerando que a relação Fisco – Contribuinte não se restringe ao pagamento de tributos - vinculado à capacidade contributiva - mas também ao cumprimento dos deveres instrumentais vinculados à capacidade colaborativa, no presente caso, em face da pandemia que impõe o isolamento dos indivíduos,entende-se que há uma inegável mitigação da capacidade colaborativa do contribuinte, a qual permite sustentar a impossibilidade de aplicação de multas decorrentes de eventual não cumprimento de obrigações tributárias instrumentais.

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MASSIGNAN, Fernando Bortolon. Deveres colaborativos da fiscalização tributá­ria. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2016.

PAULSEN, Leandro. Capacidade Colaborativa.Princípio de Direito Tributário para obrigações acessórias e de terceiros. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

PORTO, Ederson Garin. A Colaboração no Direito Tributário. Por um novo perfil de relação obrigacional tributária. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2016

SANCHES, José L. Saldanha. A reforma fiscal portuguesa numa perspectiva Constitucional. Ciência e Técnica Fiscal, Lisboa: Ministério das Finanças, n. 354, p. 44-45, abr./jun. 1989.

SLIWKA, Ingrid Schroder.O princípio do não-confisco em matéria tributária – Aspectos doutrinários e jurisprudenciaisRevista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 15, mai. 2006. Acesso em: 20 de março de 2020.

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1 SANCHES, J. L. Saldanha; GAMA, João Taborda da. Sigilo bancário:uma crônica de uma morte anunciada.In: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; GUIMARÃES, Vasco Branco (Coord.). Sigilos bancário e fiscal: homenagem ao jurista José Carlos Moreira Alves. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 269-290.

2 PAULSEN, Leandro. Capacidade Colaborativa.Princípio de Direito Tributário para obrigações acessórias e de terceiros. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014; PORTO, Ederson Garin. A Colaboração no Direito Tributário. Por um novo perfil de relação obrigacional tributária. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2016 e o como fruto da dissertação de Mestrado MASSIGNAN, Fernando Bortolon. Deveres colaborativos da fiscalização tributá­ria. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2016.

3 SANCHES, Saldanha.  A quantificação da Obrigação Tributária:Deveres de Cooperação, Autoavaliação e Avaliação Administrativa. 2. ed. Lisboa: LEX,. 2000, p. 57.

4 PAULSEN, Leandro, p. 31.

5 SLIWKA, Ingrid Schroder.O princípio do não-confisco em matéria tributária – Aspectos doutrinários e jurisprudenciais. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 15, mai. 2006. Acesso em: 20 de março de 2020.

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*Fernando Bortolon Massignan é advogado-sócio do Zanella Advogados.

 

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