Há meses, a pandemia de uma nova espécie de vírus corona gera mortes em série nos vários continentes e abala as estruturas do mundo. As estruturas deste mundo se abalam porque não são forjadas na lógica jurídico-democrática de garantia de direitos fundamentais para todos, e sim em uma biopolítica1 pela qual a vida humana tem preço – um preço que não é alto.
Na biopolítica, inverte-se a proposta aristotélica do zoon politikon. O homem, este ser vivente capaz de agir politicamente na antiguidade, vê sua vida se transformar, na modernidade, em apenas um dos objetos, entre tantos, da política exercida sempre por meio da arte de governar (politicar) em defesa da sociedade2, um ente anônimo, pressuposto e em cujo nome muito se anuncia e tantos se anunciam a si próprios.
Nesta arte de politicar, o Estado se deixa guiar pela lógica da economia, não desde fora, como espaço anômico de liberdade negativa, mas desde dentro, como sua razão legitimadora. Na razão econômica regente do Estado, não há recursos para um sistema público de saúde capaz de acolher a todos. Por essa mesma razão, instalam-se nas cidades modernas renovados campos de concentração, como espaços de pura tomada de decisões políticas soberanas, nos quais os direitos fundamentais nada fundamentam e os viventes se tornam matáveis3, por ação ou omissão estatal, sem que as mortes configurem homicídios nem sacrifícios.
Se não há sistema público de saúde, com profissionais, insumos e aparelhos para todos que dele necessitem, o que resta a fazer diante de uma epidemia como a do vírus corona é "achatar a curva" da contaminação, de modo a não sobrecarregar as insuficientes instalações médicas disponibilizadas pela razão econômica de Estado.
Convém lembrar, entretanto, que a Constituição do Brasil de 1988 não adota a primazia epistêmica da economia sobre os direitos fundamentais, nem elege a economia para funcionar como razão de Estado, por isso assegura a todos o direito à saúde, gerando um dever correlato ao Estado de promovê-la universal, gratuita e igualitariamente (artigos 6.º e 196). A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (artigo 170) funcionaliza a economia à dignidade da pessoa humana, impedindo, por princípio, que se precifique a vida de qualquer cidadão, desimportante sua idade, condição social ou capacidade para o trabalho. A Ordem Econômica Constitucional impõe, assim, que as leis orçamentárias (do plano, de diretrizes e anual) contemplem as verbas suficientes à preservação da vida digna. Por conseguinte, práticas governamentais brasileiras que insistem em ignorar o direito à saúde e o papel da economia a serviço de direitos fundamentais, além de inconstitucionais, multiplicam os efeitos funestos, tanto para as pessoas, quanto para a economia, da epidemia do vírus corona. E chega-se à atual situação jurídica, política, econômica e sanitária, inteiramente perturbadora, a que os brasileiros assistem, apreensivos, de seu confinamento voluntário.
Mas há o depois. O cenário de enfrentamento da crise econômica, que certamente sucederá a crise sanitária, abrirá aos detentores de mandato eletivo no Brasil duas alternativas: primeira, cumprir e efetivar a Constituição de maneira inédita, desta feita em relação à Ordem Tributária (artigos 145 e seguintes); ou, segunda, menosprezá-la mais uma vez, como desditosamente se faz há décadas em relação ao direito à saúde e à Ordem Econômica.
O desapreço pela Constituição, quando não o simples desconhecimento de seu conteúdo, leva os veículos de mídia a dar publicidade a cogitações, atribuídas a parlamentares, em torno de medidas inventivas desabridamente inconstitucionais. Parece estar-se à espera de que da mente prodigiosa de um ministro de Estado, indexada à razão econômica e biopolítica, possa brotar uma solução mais justa, legítima ou producente do que a encartada na própria Constituição. Ledo engano... Eis que surgem as fatídicas "propostas" da suspensão do contrato de trabalho na iniciativa privada sem contraprestação pecuniária em favor do trabalhador, aparentemente abortada, e da redução de remunerações de servidores públicos, a pretexto de expressar ou estimular uma simbologia ética gestada nas conveniências bovaristas dos gabinetes da capital federal. Essas "propostas", além de estarem na contramão do mundo em relação aos efeitos esperados na economia, vulneram os artigos 7.º, IV e VI, e 37, XV, da Constituição do Brasil, com natureza de direitos fundamentais, logo não suprimíveis, nem mesmo mediante proposta de emenda à Constituição – PEC, por força do artigo 60, § 4.º, IV, do mesmo texto.
Como consta nos excelentes artigos de Élida Graziane e Rafael Costa e Renato Barbosa, não é preciso rasgar a Constituição novamente para enfrentar a crise econômica do breve porvir. Ao contrário. É imprescindível amparar-se mais na Constituição, essa ilustre desconhecida também quanto à regulamentação da Ordem Tributária.
Há pelo menos quatro institutos tributários, previstos na Constituição, ao alcance dos mandatários eleitos para reduzir as desigualdades sociais e os efeitos do cataclismo sanitário. Nenhum deles depende sequer de PEC. Basta lei complementar para instituir (1) empréstimos compulsórios (artigo 148, I), que dispensam a anterioridade ânua quando decorrentes de calamidade pública, podendo gerar arrecadação célere (90 dias); (2) imposto sobre grandes fortunas (artigo 153, VII), que, depois de 32 anos de vigência da Constituição, segue sendo a única exação não instituída; (3) imposto residual de competência da União (artigo 154, I), desde que não incidente sobre os mesmos fatos geradores de outras exações, e, no âmbito da Seguridade Social, (4) contribuições residuais também de competência da União (artigo 195, § 4.º). Dar enfim concretude ao princípio constitucional da capacidade contributiva (artigo 145, § 1.º), instituindo os impostos, empréstimos compulsórios e contribuições acima para os contribuintes mais abastados, é o norte jurídico e econômico ofertado pela Constituição.
A estimativa de arrecadação com esses quatro institutos supera, com folga, a expectativa de gasto extraordinário com o enfrentamento da pandemia, avaliada em cerca de 400 bilhões de reais pelo presidente da Câmara dos Deputados. Além dessas quatro medidas constitucionais, quem mais entende pragmaticamente de arrecadação no país propõe e prevê arrecadação de 272 bilhões de reais apenas com medidas legais complementares. Vale conferir, a respeito, o claríssimo artigo da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil.
Deixem-se, pois, de lado as simbologias e ideologias. Não é hora de politicar, nem de se agarrar a promessas quiméricas de um paraíso econômico na terra como sub-produto de uma inegociável austeridade fiscal à custa de vidas humanas. Essas promessas já foram desmentidas em seus propósitos e resultados pela história recente no país e no mundo. O quadro exige medidas juridicamente inquestionáveis e economicamente efetivas, na construção de um novo mundo, pós-pandemia. A Constituição as estabelece. Nunca é tarde para melhor conhecer a Constituição... e, sobretudo, cumpri-la.
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1 FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
2 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
3 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Coleção Estado de Sítio. Tradução de Iraci D.Poleti. São Paulo: Boitempo, 2008. _______________. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua. 2ª. ed. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010
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*Vinícius Diniz Monteiro de Barros é doutor e mestre em Direito Processual pela PUC Minas. Pós-doutorando em Filosofia e Psicanálise pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Minas Gerais – FAJE. Professor da PUC Minas. Defensor Público Federal em Belo Horizonte/MG.