Migalhas de Peso

Porque a hora é de pensar sobre como implementar o juízo das garantias

Registre-se que essas considerações não têm a menor pretensão de por termo às discussões sobre tão relevante e complexo assunto. Ao contrário, colocam-se muito mais como provocações para o debate que inevitavelmente ocorrerá e que deverá contar com a participação de todos aqueles que operam o nosso Sistema de Justiça Criminal.

27/12/2019

Há cerca de quinze anos defendia em minha dissertação de mestrado, intitulada “a investigação criminal garantista”, a criação da figura do “juiz das garantias”. Ali afirmei:

... Assim, as medidas investigatórias que acarretem no acesso à casa ou na violação do sigilo das comunicações não podem prescindir da análise e adesão de um juiz.

Com relação aos “grandes ataques” da investigação, o constituinte considerou o membro do Judiciário como o único capaz de conferir legitimidade à medida. Não porque o considerou mais preparado1 ou mais imunizado em face de pressões externas2, mas porque sua atuação tem por característica a inércia, indispensável a conferir-lhe maior capacidade psicológica.

O Juiz inerte receberá as considerações do investigador e avaliará o acerto do raciocínio levado a efeito por esta autoridade. Assim, sem dúvida, o direito do indivíduo restará mais garantido, quer pela só necessidade de convencimento sucessivo de duas autoridades, quer pelo fato de a última agir livre de quaisquer pré-juízos.

Ocorre, no entanto, que a participação do julgador – ou seja, do juiz do futuro processo – na fase investigatória preliminar afeta as bases do princípio acusatório, que, como se viu, objetiva a consecução de um julgador terceiro, equidistante e livre de quaisquer eventuais pré-juízos.

A exigência de perfeita separação entre acusador e julgador implica no distanciamento deste da investigação preliminar, que configura manifestação e decorrência lógica da acusação. Afinal, o julgador que recebe a acusação pronta tem mais aptidão para um julgamento equidistante do que aquele que, de alguma forma, o ajudou na sua elaboração.

Não é necessário muito esforço para admitir afetação do estado psicológico de um juiz, perante o qual é submetida uma acusação que tem por base elementos obtidos após sérias restrições à intimidade e à liberdade que ele próprio determinou.

Basta pensar no caso de haver o magistrado, durante a investigação preliminar, decidido pela presença de requisitos a justificarem o encarceramento do acusado e permitirem uma verdadeira “devassa” nos seus registros bancários, fiscais e telefônicos.

Não seria absurdo intuir, pela mesma lógica que idealizou o sistema acusatório, que estaria de certa forma (ainda que inconscientemente) vinculado ao acerto e à utilidade da medida que deferiu, parecendo razoável considerar dificultoso admitir que tudo não passou de uma ilusão, de uma alucinação.

Forçoso concluir, pois, que a colocação de medidas investigatórias nas mãos do Julgador vai contra o ideal garantista, já que viola o princípio acusatório.

Assim, para compatibilizar a necessidade de reforço da proteção contra restrições arbitrárias no âmbito da investigação preliminar com a integridade das feições acusatórias do processo, necessária se faz a instituição da figura do “juiz das garantias”, diverso daquele que, no processo, decidirá sobre a aplicação da pena.

No referido trabalho, que tinha por objetivo desenhar um modelo de investigação adequado aos axiomas do garantismo de Ferrajoli, não me debrucei sobre as dificuldades relacionadas a eventual implementação/operação do novo modelo.

O advento da lei 13.964/19, todavia, impõe a imediata reflexão sobre tal questão e aqui tentarei fazê-la com base nos pontos levantados por aqueles que se colocavam contra a instituição do modelo do juízo das garantias.

1. Precisaríamos aumentar o número de juízes criminais?

A necessidade de aumento do número de juízes decorre da já excessiva carga a que está submetida o juiz brasileiro, mas a adoção do Juízo das Garantias não incrementa o volume de trabalho. A alteração não gera nova demanda (como aquela gerada pela implementação das audiências de custódia, p. ex.). Necessário apenas redistribuir o trabalho que antes cabia a apenas um juízo/juiz, mediante uma reorganização de competências.

2. E nas comarcas com apenas um juiz?

Poder-se-ia atribuir, ao juízo da «Comarca A», as competências do “juiz das  garantias” para as investigações (e admissibilidade da acusação) sobre fatos que deverão ser processados e julgados pelo juízo da «Comarca B» e vice-versa.

As dificuldades decorrentes da distância poderão ser contornadas perfeitamente com a tecnologia já implementada na maior parte do Judiciário Brasileiro. Nada mais justifica a não adoção do processo eletrônico, em uma de suas diversas versões/plataformas já testadas, aptas a viabilizar fácil acesso ao Judiciário pelo Promotor de Justiça e/ou Defensor, sendo certo que o juiz das garantias via de regra não fará audiências3.

3. E como se faria para não arranhar a garantia do Juiz Natural, que é do investigado/acusado e também da coletividade?

Ao invés de escolha de juízo(s) determinado(s) para receber as competências do “Juiz das Garantias”, porque já ocupados, melhor talvez um caminho impessoal: I) a investigação poderia ser registrada nos sistemas do Foro sem a distribuição ou vinculação a qualquer juízo e o juiz distribuidor exerceria a competência prevista no inciso IV do artigo 3º-B4, a qual, registre-se, não gera o impedimento previsto no artigo 3o- D do Código de Processo Penal, que é expresso ao vincular tal consequência à efetiva prática de atos5; II) requerida autorização para alguma diligência com reserva de jurisdição ou oferecida a denúncia, a petição respectiva seria distribuída entre os juízos com competência criminal (ou entre aqueles com competência criminal específica – crimes contra a vida, p. ex.); III) admitida a denúncia, o “juiz das garantias” encaminharia o feito para nova distribuição, da qual não participaria; iv) havendo apenas um juízo com uma determinada competência específica, este seria excluído da primeira distribuição (para funcionar na investigação e/ou fazer a admissibilidade da acusação), à semelhança do que se defendeu no item 3 supra.

4. E nos tribunais, notadamente nos menores?

A mesma lógica: no caso de competência originária, aquele relator que funcionou como “juiz das garantias”, perderia tal condição após eventual recebimento da denúncia. No caso de competência recursal, nos Tribunais com um único órgão com competência criminal, poderia ocorrer o mesmo. Caso haja mais de uma Turma e/ou Câmara com competência criminal, dar-se-ia o “impedimento”, para o julgamento da apelação, do próprio órgão que exerceu (via recurso) o controle sobre a atividade do “juiz das garantias”.

5. A atuação na investigação ou admissibilidade da acusação antes da vigência da lei 13.964/19 gera o impedimento previsto no novo artigo 3º-D do Código de Processo Penal?

Parece certo que não. Primeiro, porque o legislador, ao invés de optar por incrementar o rol dos impedimentos previstos no artigo 252 do CPP, usou uma redação prospectiva, deixando claro que o impedimento decorrerá da atuação na investigação ou admissibilidade da acusação após a instituição do novo modelo6. Segundo, porque, tratando-se de impedimento superveniente, este não poderia atingir o juiz já legitimamente vinculado ao processo. Terceiro, porque a questão se relaciona também com a garantia do juiz natural, notadamente com o corolário da perpetuatio jurisdictionis, impondo-se a ultratividade da lei anterior. Quarto, porque isso implicaria na redistribuição de absolutamente todos os processos penais em curso no Judiciário brasileiro, inclusive aqueles com instrução finalizada.

A questão se resolve, pois, com base no tempo da prática do ato que exaure a competência do “juiz das garantias”: o recebimento da denúncia/queixa (CPP-399). Se a decisão que recebe a denúncia tiver sido proferida antes da vigência da lei 13.964/19, uma vez que a fase de instrução já se iniciou sem a necessidade de redistribuição7, prorroga-se a competência do respectivo juízo, sem que retroaja a alteração legislativa para invalidar tal vinculação. De outro lado, a partir da vigência da mencionada norma, ao receber a denúncia, o juiz deverá adotar a providência prevista na lei nova: remeter o feito à redistribuição, da qual obviamente não participará.

Registre-se que essas considerações não têm a menor pretensão de por termo às discussões sobre tão relevante e complexo assunto. Ao contrário, colocam-se muito mais como provocações para o debate que inevitavelmente ocorrerá e que deverá contar com a participação de todos aqueles que operam o nosso Sistema de Justiça Criminal.

___________

1 já que, se seguindo a recomendação garantista, fixou os mesmos requisitos para o ingresso nas carreiras do Ministério Público (acusador) e da Magistratura.

2 já que conferiu idênticas garantias aos ocupantes de ambas as funções.

3 A exceção daquela prevista no novo 3o-B, VII, do CPP.

4 IV - ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal;

5 Percebe-se, ademais, que há nítido erro material do texto legal, ao falar nos atos previstos nos artigos 4o e 5o, quando na realidade o feixo de competências está relacionado no novo artigo 3o-B do CPP.

6 3º-D. O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências dos arts. 4º e 5º deste Código ficará impedido de funcionar no processo.

7 Art. 399.  Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente. 

___________

*Fernando Braga é juiz do TRF5. Ex-procurador da República. Professor da Esmafe5 e da Enfam. Mestre em Direito (UFC - 2005). Doutorando em Direito (UFPE – 2019/...). Parecerista da Revista Brasileira de Ciências Criminais

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