Com o desenvolvimento do moderno constitucionalismo, o vértice dos ordenamentos jurídicos nacionais passa a ser ocupado pela Carta Constitucional. A partir de uma longa e perene evolução histórica, a Constituição ultrapassou o seu papel fundamental de promover a organização do Estado e de instituição do sistema jurídico, desempenhando, também, a função de garantidora de direitos fundamentais dos cidadãos submetidos à ordem jurídica que inaugura1.
Ao iniciar o ordenamento jurídico, a Constituição eleva-se à condição de sua norma suprema, impondo-se a todas as normas a ela hierarquicamente inferiores. A supremacia constitucional, aliada à assimilação da Carta como realidade normativa2, engendra a necessidade de criação de instrumentos para a defesa do seu papel primordial: cuida-se do controle de constitucionalidade.
No Brasil, para além do controle político pertinente à elaboração de leis e outras espécies normativas, a supremacia constitucional é substancializada a partir da jurisdição constitucional3. O controle brasileiro tem a particularidade de operar de modo abstrato – por meio de ações diretas, ajuizadas no Supremo Tribunal Federal (STF), com esse único objetivo, possuindo efeitos erga omnes –, e também de maneira incidental e concreta – ou seja, a declaração de inconstitucionalidade é autorizada ao Poder Judiciário, como um todo, no julgamento dos casos concretos, com efeitos inter partes, nos quais a satisfação do direito da parte dela depende.
O controle de constitucionalidade incidental – realizável por todo o Poder Judiciário – ganha papel ainda mais relevante por estar ao alcance de todos os que têm capacidade para ingressar em juízo, em contraste com o controle direto, que se submete a um estrito rol de legitimados a propor, como é o caso do presidente da República e dos governadores, dentre outros.
A forma incidental e concreta de controle de constitucionalidade opera, sinteticamente e via de regra, da seguinte forma: (i) a Constituição confere à parte determinado direito ou garantia, que é por ela exercido; (ii) sobrevém determinada lei – ou norma infra-legal – que lhe derroga ou impede o exercício de tal direito ou garantia; e (iii) a parte ingressa em juízo requerendo a declaração de que possui o direito ou a garantia, com fundamento na inconstitucionalidade da referida norma infraconstitucional que lhe limita. Para tanto, requer, na sua demanda pessoal, a declaração incidental da inconstitucionalidade, a qual, se deferida, operará efeitos para si, relativamente ao exercício do direito constitucionalmente assegurado.
Na perspectiva jurisdicional, para deferimento ou indeferimento do pedido da parte, o mecanismo funciona sem limitações extraordinárias de ordem processual ao se tratar da declaração de inconstitucionalidade de atos infralegais. A declaração de inconstitucionalidade de leis, por sua vez, em que pese não sofra limitação processual no julgamento por juízos de 1ª instância, encontra tal restrição quando a demanda chega aos tribunais.
O limite está expresso no artigo 97 da Constituição Federal, que prescreve que “somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”. A operacionalização dessa regra constitucional encontra-se estampada nos artigos 948 a 950 do Código de Processo Civil de 2015: o denominado “incidente de arguição de inconstitucionalidade”4.
Em síntese, a senda processual que materializa o limite é trilhada da seguinte forma: o caso concreto em que se arguiu a inconstitucionalidade de lei é submetido ao órgão fracionário do Tribunal competente para o julgamento da demanda. Se a arguição for rejeitada, prosseguirá o julgamento, considerando-se o fato de que a lei é constitucional. Se a arguição for acolhida, a questão será submetida ao plenário ou ao órgão especial do respectivo Tribunal.
Como forma de evitar subterfúgios à cláusula de reserva de plenário, o STF editou a súmula vinculante 10, segundo a qual “viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”.
Tais limitações são bem sistematizadas processualmente no ordenamento jurídico brasileiro, privilegiando a segurança jurídica, ao se considerar que a declaração de inconstitucionalidade de leis é uma medida excepcional. Com a cláusula de reserva de plenário, evita-se, por exemplo, que um Tribunal local desenvolva jurisprudência no sentido de que determinada lei é inconstitucional, sem que a questão tenha sido apreciada por todos os seus membros. A senda para a declaração incidental da inconstitucionalidade de uma lei é, como se observa, demorado, o que se coaduna com a gravidade da invalidação de uma espécie normativa legislada.
A questão pode tornar-se obscura, no entanto, quando órgãos fracionários de tribunais se deparam com pedidos de natureza liminar e/ou cautelar fundados na alegação de provável inconstitucionalidade de lei a impedir o urgente exercício de direito do jurisdicionado que pleiteia a medida. O que poderia consistir numa providência trivial acaba, por vezes, dando azo a uma indevida miscelânea com o procedimento da declaração de inconstitucionalidade da lei.
Em termos mais concretos, cuida-se da situação em que um jurisdicionado é impedido de exercer determinado direito devido à existência de uma lei inconstitucional – ou ainda, em que uma lei inconstitucional obriga o jurisdicional a realizar alguma prestação, como o recolhimento de um tributo, por exemplo. Para combater a violação ao seu direito, ingressa em juízo, demonstrando, além da inconstitucionalidade da lei que estorva o seu direito – ou que lhe impõe obrigação indevida –, a existência de um perigo de dano a justificar a concessão de uma tutela de urgência que lhe garanta, desde logo, o exercício do seu direito ou a cessação da exigência estatal indevida.
Assumindo que assista razão jurídica a esse jurisdicionado e na eventualidade de o magistrado de 1º grau possuir entendimento diverso ou até mesmo se equivocar, a tutela de urgência pleiteada não será concedida, pelo que será interposto Agravo de Instrumento, com a finalidade levar a medida urgente à apreciação do respectivo Tribunal.
No Tribunal, após a distribuição, um órgão fracionário – tal como uma turma ou uma câmara de julgamento –, ficará, via de regra, responsável por julgar tal Agravo. Neste momento, há um risco de o referido colegiado entender necessária a aplicação do procedimento do incidente de inconstitucionalidade, sob a justificativa de não se violar a cláusula de reserva de plenário. Nesse sentido, observem-se os entendimentos prevalecentes nos seguintes julgados:
CONSTITUCIONAL. - AGRAVO DE INSTRUMENTO - LEI 4.922/12 DO MUNICÍPIO DE CARIACICA - LICENÇA MATERNIDADE - [...] - PRAZO EM DESACORDO COM AS REGRAS CONSTITUCIONAIS - DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE INCIDENTAL - RESERVA DE PLENÁRIO - INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE INSTAURADO. [...] 2. Muito embora seja flagrante a inconstitucionalidade do art. 115 da lei 4.922/12, considerando a necessidade de se observar o princípio da cláusula de reserva de plenário [...], a matéria constitucional deve ser submetida ao Plenário desta Corte. 3. Incidente de Inconstitucionalidade instaurado. (TJ-ES, AI 0021104-57.2016.8.08.0012, Rel. Des. Carlos S. Fonseca, 2ª C., J: 22.08.17).
CORTE ESPECIAL. ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE EM SEDE DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE TRANSMISSÃO CAUSA MORTIS. LEI 10.260/89. INCONSTITUCIONALIDADE. PRECEDENTES DO STF. [...]. II. Contenda recursal sobrestada até que a Corte Especial julgue a prejudicial de inconstitucionalidade. Proclamada a inconstitucionalidade da norma pelo órgão competente, devolvem-se os autos, em regra, para o órgão fracionário para o julgamento do mérito do recurso. (TJ-PE, Arg. Inc. 30307 PE 00303073, Rel: Frederico R. de Almeida Neves, J: 12.01.09, Corte Especial).
A nosso ver, o principal problema na adoção dessa técnica é olvidar-se da urgência do caso concreto submetido à apreciação do colegiado. Em situações relevantes e realmente urgentes, o procedimento garantidor da reserva de plenário – isto é, o incidente de inconstitucionalidade – não é compatível com a melhor aplicação do direito.
É necessário considerar que a medida requerida em caráter urgente muitas vezes não pode aguardar o moroso desdobramento do incidente de inconstitucionalidade – em outras palavras, há um risco do perecimento do direito do jurisdicionado, pela demora do trâmite do incidente.
Além disso, deve-se ter em mente que a apreciação jurisdicional da questão não se cuidará do julgamento definitivo da demanda. Tanto é assim que a medida jurisdicional, nesses casos, funda-se não na certeza do direito do jurisdicionado, mas no preenchimento dos requisitos da probabilidade do direito – em específico, da probabilidade de determinada norma ser inconstitucional – e do perigo de dano.
A medida de natureza urgente a ser adotada pelo Judiciário, nesse sentido, não pode sequer declarar a inconstitucionalidade da lei, mas tão somente lhe suspender a eficácia. Não por outra razão, o próprio STF admite a apreciação de medidas liminares – fundadas na probabilidade de inconstitucionalidade de lei – por órgão fracionário. Veja-se:
AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO. DECISÃO CAUTELAR MONOCRÁTICA QUE AFASTA A APLICAÇÃO DA LEI 9.452/09 E CONCEDE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS ORDINÁRIOS. ALEGAÇÃO DE CONTRARIEDADE À SÚMULA VINCULANTE 10 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 1. Decisão proferida em sede cautelar: desnecessidade de aplicação da cláusula de reserva de plenário estabelecida no art. 97 da Constituição da República. 2. Agravo regimental ao qual se nega provimento. (STF, Rcl 8.848-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, Pleno, J: 17.11.11).
Bastante elucidativo é o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em que se concluiu que o incidente de inconstitucionalidade é compatível apenas com a tomada de decisões de caráter definitivo – e não com o deferimento de liminares:
INCIDENTE DE ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. RESERVA DE PLENÁRIO. ARTIGOS 97, DA CRFB/88, E 948 E 949, DO CPC. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO ARTIGO 97, DA CRFB/88 QUANDO NÃO SE TRATAR DE DECISÃO DEFINITIVA. Incidente de arguição de inconstitucionalidade arguido em decorrência da submissão, à 18ª Câmara Cível, de agravo de instrumento contra decisão liminar. Somente quando estamos falando de decisão definitiva acerca da constitucionalidade da lei enfrentada, a exigência da reserva de plenário se faz presente. [...] Precariedade das decisões proferidas em tutela provisória de urgência, que não se destinam a analisar definitivamente o mérito da ação, o que dependeria da apreciação e declaração (ou não) da inconstitucionalidade da lei impugnada. O objetivo das decisões proferidas em tutela provisória de urgência é tutelar situações em que há perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo. Ou seja, na análise da tutela de urgência, diante da existência de fumus bonis juris e periculum in mora (juízo de probabilidade) concedem-se os efeitos necessários para que não haja prejuízo, caso a lei seja declarada inconstitucional. A decisão tem caráter precário, ou seja, regula o processo até que chegue à sentença, momento em que pode ser confirmada, ou não. E, justamente por assim o ser, não pode declarar a lei inconstitucional, já que se trataria de uma declaração provisória de inconstitucionalidade, o que não encontra previsão legal. [...]. INCIDENTE QUE NÃO SE CONHECE. (TJ-RJ, Incidente Arg. Inconstitucionalidade 00023408220188190000, Rel. Des. Antonio Carlos N. Amado, J: 05.11.18, Pleno e Órgão Especial).
Em que pese a questão estar assentada na jurisprudência do STF, que reconhece a desnecessidade de aplicação da cláusula de reserva de plenário na apreciação de questões urgentes – como liminares e cautelares –, é visível que alguns colegiados, país afora, insistem na necessidade de instauração do incidente de inconstitucionalidade – que materializa a referida cláusula. Tal orientação, no entanto, mostra-se frontalmente incompatível com a natureza das tutelas de urgência, na medida em que retarda a apreciação de questões inadiáveis fundadas na probabilidade de uma determinada lei ser inconstitucional.
É importante, nesse sentido, trazer a lume o desenvolvimento doutrinário e da jurisprudência do STF, para que a questão torne-se mais assentada, encontrando aplicação unânime pelos tribunais a assimilação de que a análise de medidas de urgência fundadas em provável inconstitucionalidade de lei prescinde da aplicação da cláusula de reserva de plenário. A adoção equivocada da técnica de julgamento – confundindo-se a declaração de inconstitucionalidade com a suspensão liminar, e concreta, da eficácia da lei provavelmente inconstitucional – acentua o risco de se perpetrarem iniquidades em desfavor de jurisdicionados cujos direitos – no caso, de envergadura constitucional – podem perecer. Afinal, como já dizia Ruy Barbosa, “a justiça atrasada não é justiça, senão injustiça, qualificada e manifesta”5.
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1 FERREIRA MENDES, Gilmar; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de direito constitucional. 9 ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2014, c. 10, i. I.1.
2 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Bol. Fac. Direito U. Coimbra, v. 81, p. 233, 2005.
3 DA SILVA, Jose Afonso. Tribunais constitucionais e jurisdição constitucional. Revista Brasileira Estudos Políticos, v. 60, p. 495, 1985.
4 DELGADO, José Augusto. O incidente de argüição de inconstitucionalidade da lei tributária no âmbito do recurso especial. In: NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coordenadores). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, v. 11, p. 159-167.
5 BARBOSA, Ruy. Elogios acadêmicos e orações de paraninfo. São Paulo: Ed. da Revista da Língua Portuguesa, 1924, p. 381.
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*Antonio Carlos Guimarães Gonçalves é sócio de Demarest Advogados.
*Carlos Alberto Rosal de Ávila é advogado de Demarest Advogados.