Migalhas de Peso

Da legalidade da cobrança de percentual pelo uso do aplicativo pelas plataformas digitais

O desafio não consiste em simplesmente enquadrar ou não esses trabalhadores na CLT, mas repensar o Direito do Trabalho em plena Quarta Revolução Industrial.

1/8/2019

Com o advento mundial de novas tecnologias voltadas ao uso de aplicativos de economia compartilhada acabou surgindo uma nova classe de trabalhadores, inclusive no Brasil. Eles próprios alimentam vasta rede diversificada de prestação de serviços.

Tomando o exemplo das plataformas de mobilidade urbana, em especial Uber, 99, Cabify, Lady Driver, dentre outros, a relação principal se dá entre motorista e passageiro. A plataforma é mera coadjuvante com intuito de facilitar a necessária aproximação entre eles. Mesmo porque, é ela quem detém a tecnologia do aplicativo.

Inúmeras são as vantagens trazidas pelas novas tecnologias dos aplicativos:

A repressão legislativa às iniciativas modernas de ordenamento espontâneo do transporte nega “ao cidadão o direito à mobilidade urbana eficiente”, contrariando o mandamento contido no art. 144, § 10, I, da Constituição, incluído pela emenda constitucional 82/14. Desconsidera o potencial impacto positivo das novas tecnologias no trânsito, na demanda por vagas de estacionamento em grandes centros e no número de acidentes automobilísticos por uso de álcool, sem contar os inúmeros e já detalhados benefícios aos consumidores. Ignora, igualmente, medidas alternativas e recorrentemente apontadas por especialistas para o enfrentamento de problemas de mobilidade e urbanísticos, as quais, por serem isonômicas, não resultam em restrição arbitrária às liberdades constitucionais de iniciativa (art. 1º, IV, e 170) e profissional (art. 5º, XIII). Por isso mesmo, a norma proibitiva ora impugnada carece de fundamentação racional.

      (Excerto do voto do min. Luiz Fux. ADPF 449. Grifos e negritos da Reclamada)

Tais plataformas são consideradas empresas no segmento de mobilidade urbana, mas não são empresas de transporte, pois não atuam com esta finalidade, como já reconhecido pelo STF:

O modelo de negócio controvertido neste processo, ti'pico da chamada economia de compartilhamento, envolve três partes: (i) o proprieta'rio/possuidor de um vei'culo privado; (ii) a pessoa interessada em ser transportada; e (iii) uma plataforma digital que aproxima o motorista e o passageiro. Ate' o surgimento dos intermedia'rios digitais, os agentes preestabelecidos no mercado - os taxistas - na~o manifestavam resistência ao transporte privado de passageiros, regulado pelo art. 730 do Código Civil.

(Excerto do voto do min. Luís Roberto Barroso. RE 1.054.110/SP. Grifos e negritos da Reclamada)

Esta é a lógica da economia compartilhada e, por isso, é cada vez maior o número de motoristas cadastrados nos aplicativos, seja para melhorar seus rendimentos, seja para ser sua fonte de renda principal.

Conforme leciona Antonio Carlos Aguiar, empresas de aplicativos como a Reclamada, são apenas plataformas digitais, “uma ferramenta de software”, pois a Reclamada não é proprietária “de nenhum dos carros que atendem os seus clientes”, e prossegue, o que faz “é possibilitar e, verdadeiramente, um ‘encontro’ de interessados e cobra por isso1”.

A dinâmica dos aplicativos é a de um marketplace, conceito atribuído a um ambiente virtual onde se viabiliza a oferta de bens e serviços. Em um sistema desta natureza, fornecedores e consumidores se cadastram e o gestor do marketplace é encarregado de promover o encontro da oferta com a demanda. Desta maneira, observa-se que a função dos aplicativos nada mais é que a intermediação de corridas, unindo passageiros e motoristas, por meio de suas plataformas virtuais.

De um lado, o usuário motorista se cadastra na plataforma da Reclamada, acessando a plataforma do aplicativo por meio do próprio aparelho de telefone celular; de outro lado, os usuários passageiros se cadastram mediante a instalação do aplicativo também em seus aparelhos de telefone celular. É a ligação entre o mundo offline com o mundo online.

A remuneração para os aplicativos de mobilidade urbana se dá como ocorre em diversas outras empresas que prestam serviço de marketplace como Groupon, Amazon, Airbnb, IFood. A remuneração não é paga pela plataforma, mas pelo usuário que a utiliza.

Não se trata, portanto, de uma remuneração atribuída ao aplicativo para que o motorista seja colocado à disposição do passageiro, pois as empresas não fornecem o transporte. A taxa cobrada, de ambos os usuários (motoristas e passageiros) se refere ao produto comercializado pela plataforma, qual seja, a tecnologia colocada à disposição que possibilita conectar passageiros e motoristas.

Portanto, não se trata de hipótese de violação à convenção 181 da OIT, a qual estabelece, em seu art. 7º, a proibição de cobrança de quantias dos trabalhadores, por agências de empregos privadas, até mesmo porque os aplicativos não podem ser considerados como agências2, pois a relação entre motorista e passageiro não é de emprego.

De se pontuar que referida convenção não foi ratificada pelo Brasil, mas ainda que se alegue eventual aplicação por força do art. 8º da CLT, os debates não possuem fundamento, como demostrado.

Não obstante, tampouco há respaldo para a incidência dos preceitos da lei 6.019/74, que trata do trabalho temporário e prestação de serviços, no tocante à vedação do art. 18 quanto à cobrança de qualquer importância do trabalhador temporário.

Ora, além de inexistir relação de emprego entre a plataforma e o motorista, não estão presentes na espécie as hipóteses autorizadoras do contrato de trabalho temporário, eis que a plataforma não tem intenção de substituir empregados efetivos (os aplicativos não possuem empregados na função de motorista) e tampouco se trata de demanda complementar de serviços.

Tal sistemática vale não apenas para as empresas de mobilidade urbana, mas para todas as plataformas que utilizam o mesmo marketshare com seus usuários.

Forçar teses conspiratórias no afã de desqualificar a relação de parceria entre as partes, implica em distanciar-se da realidade.

Não significa dizer que tais trabalhadores estejam desprovidos de qualquer guarida da lei, mas isso não os torna protegidos sob a égide celetista ou de qualquer legislação aplicável aos que detenham relação de emprego.

Esse entendimento, vem, ainda, a ser corroborado pelo decreto 9.792, de 14/5/19, no tocante ao reconhecimento dos motoristas de transporte remunerado privado individual de passageiros, como microempreendedor individual, e responsável pelo recolhimento de sua contribuição junto ao INSS3.

Tais relações não podem ser apreendidas pelo simples binômio trabalho subordinado-autônomo.

É necessário evitar preconceitos e a polarização entre um lado conservador avesso a mudanças e outro que não enxerga a importância de regulamentação para as novas tecnologias4.

Por tudo isso, o desafio não consiste em simplesmente enquadrar ou não esses trabalhadores na CLT, mas repensar o Direito do Trabalho em plena Quarta Revolução Industrial.

_________________________

1 Aguiar, Antonio Carlos. Direito do Trabalho 2.0. Digital e Disruptivo. São Paulo: LTr, 2018, p. 37.

2 Para efeitos da Convenção, o artigo 1º estabelece que: “a expressão «agência de emprego privada» designa qualquer pessoa singular ou coletiva, independente das autoridades públicas, que preste um ou mais dos seguintes serviços referentes ao mercado de trabalho:

a) Serviços que visam a aproximação entre ofertas e procuras de emprego, sem que a agência de emprego privada se torne parte nas relações de trabalho que daí possam decorrer;

b) Serviços que consistem em empregar trabalhadores com o fim de os pôr à disposição de uma terceira pessoa, singular ou coletiva (adiante designada «empresa utilizadora»), que determina as suas tarefas e supervisiona a sua execução;

c) Outros serviços relacionados com a procura de empregos que sejam determinados pela autoridade competente após consulta das organizações de empregadores e de trabalhadores mais representativas, tais como o fornecimento de informações, sem que no entanto visem aproximar uma oferta e uma procura de emprego específicas.”

3 Art. 1º  Compete exclusivamente aos Municípios e ao Distrito Federal regulamentar e fiscalizar o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros, além das exigências previstas na lei 12.587, de 3 de janeiro de 2012, a inscrição do motorista como contribuinte individual do Regime Geral de Previdência Social.

Art. 2º  A inscrição como segurado contribuinte individual será feita diretamente pelo motorista de transporte remunerado privado individual de passageiros, preferencialmente pelos canais eletrônicos de atendimento do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS.

Parágrafo único.  O motorista poderá optar pela inscrição como microempreendedor individual, desde que atenda aos requisitos de que trata o art. 18-A da lei complementar 123, de 14 de dezembro de 2006.

Art. 4º  O motorista de transporte remunerado privado individual de passageiros recolherá sua contribuição ao Regime Geral de Previdência Social por iniciativa própria, nos termos do disposto no inciso II do caput do art. 30 da lei 8.212, de 24 de julho de 1991.

4 DELGUE, Juan Raso. Inteligência artificial e o uso de aplicativos – limitações necessárias. Palestra ministrada no VIII Congresso Internacional de Direito do Trabalho da Academia de Direito do Trabalho. São Paulo. 04 out. 2018.

_________________________

*Tatiana Guimarães Ferraz Andrade é advogada, sócia de Ferraz Andrade Advogados.

 

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