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Comunicações entre juízes e promotores no direito comparado

Sem entrar na questão da aceitabilidade de provas obtidas ilegalmente ou de sua veracidade, este artigo levanta a hipótese de que as acusações com base nessas divulgações aparentam estar sendo apresentadas por quem usa óculos com lentes do direito vigente nos Estados Unidos e não daqueles que dispõem de visão da tradição jurídica brasileira.

16/7/2019

As divulgações de comunicações que teriam ocorrido entre o (então) juiz de primeira instância (hoje ministro) Sergio Moro e promotores públicos trouxeram ao debate nacional a questão da permissibilidade dessa prática no direito brasileiro. Sem entrar na questão da aceitabilidade de provas obtidas ilegalmente ou de sua veracidade, este artigo levanta a hipótese de que as acusações com base nessas divulgações aparentam estar sendo apresentadas por quem usa óculos com lentes do direito vigente nos Estados Unidos e não daqueles que dispõem de visão da tradição jurídica brasileira.

Nos países, como os Estados Unidos, onde o direito tem origem no chamado Direito Comum (Common Law) inglês, os juízes exercem papel passivo, quase inerte, em comparação com o de seus homólogos em países de base no Direito Romano1, como o Brasil. Essa característica tem origem sobretudo na relevância do sistema de júri na Inglaterra, característica essencial dos países que sofreram influência primordialmente do direito inglês.2 Um dos principais resultados dessa evolução histórica foi o estabelecimento dos dois principais sistemas processuais existentes no plano mundial. Esses métodos distintos de julgar são chamados, na terminologia anglo-saxã, respectivamente de “adversarial” (países de Common Law) e “inquisitorial”3 (maior parte dos demais países).

No processo “adversarial”, o papel do juiz estadunidense é muito menos proeminente do que o de um juiz brasileiro que atua em primeira instância. Isso se deve, desde a Magna Carta, ao direito a julgamento por jurados. Diante de um tribunal de júri, o promotor público estadunidense acusa o réu de ter cometido crimes definidos em lei. Tendo como seu “adversário” o advogado de defesa, a promotoria tenta convencer os jurados da culpabilidade do réu “além de uma dúvida razoável”.4 Se os jurados concluírem pela culpabilidade do acusado, o juiz se limita a impor a pena.5 Durante o julgamento, as provas são obtidas oralmente, não havendo autos para jurados examinarem ou mesmo, na maioria dos casos, sequer para os juízes.6 Os que acompanham os julgamentos de casos de homicídio no Brasil têm familiaridade com esse procedimento. A principal diferença, no entanto, é que, nos Estados Unidos, essas práticas abrangem todos os casos, tanto penais quanto civis. O alto custo e complexidade desse procedimento levou ao desenvolvimento do sistema generalizado de negociação de penas por meio de colaboração premiada (plea bargaining), que hoje resolve a quase totalidade dos processos penais nos Estados Unidos.7

Por outro lado, no processo “inquisitorial”, tal como visto pelas lentes de alguém formado em Direito exclusivamente no Common Law, os juízes de primeira instância em países da Europa continental (e dos  países que destes sofreram influência) exercem funções “excessivas”, em especial as de investigação.8 Os portadores desses óculos notam que, nos países que não têm por base o Common Law, os juízes têm o objetivo mais amplo de buscar a justiça9 e não apenas de arbitrar entre duas partes (promotoria e defesa).10 Revelando certa surpresa, listaram os poderes que qualificaram de “extensos” de juízes franceses, entre os quais os de instruir a polícia a reunir provas adicionais.11 Opinaram que, em países de direito não anglo-saxão, o papel do advogado limita-se primordialmente ao de propor ao juiz que faça perguntas adicionais.12 Com igual espanto, uma autora americana observou que, no sistema “inquisitorial”, por representar o Estado no inquérito, o juiz tem o poder de investigar o caso, convocar testemunhas e definir o escopo da investigação.13 Concluiu que, nesses países, o juiz se envolve profundamente na perseguição do caso, dando como exemplo dessa atuação, o fato de um juiz alemão poder ampliar ou reduzir o âmbito da denúncia.14

Em consequência dessas características, no contexto processual “adversarial”, as regras sobre comunicação entre juízes e promotores ou advogados são, de fato, em geral mais rigorosas do que nos países de sistema “inquisitorial”. Empregando expressão latina, os juristas estadunidenses denominam de ex parte as comunicações que ocorrem quando o juiz se encontra somente com uma das partes na “controvérsia”.15 É de se notar, no entanto, que ainda que rigorosas essas regras, admitem muitas exceções, entre as quais, conversas ex parte para “agendamento, finalidades administrativas ou emergências que não tratem de matérias substantivas ou questões de mérito”.16 Essas exceções compreendem igualmente comunicações sobre mandados de prisão preventiva, de busca e apreensão e instalação de escutas telefônicas autorizadas por lei.17 Além disso, as regras admitem algumas conversas ex parte no gabinete do juiz (in camera) quando se encontra privadamente com o promotor para intercambiar provas e informações jurídicas (discovery)18, que vão desde revelações de fatos novos até questões de segurança nacional.19 Um autor concluiu que a questão de conversas ex parte (assim como comentários públicos sobre casos): “não desqualificam [o juiz]... a não ser que tenham ido longe demais”.20

No Brasil, a influência do Common Law, que no passado se limitara à criação de tribunais de júri e à instituição de habeas corpus, tem se ampliado na área penal nas últimas décadas, com destaque para a adoção de colaboração premiada para certos crimes. Não obstante essas influências, o sistema jurídico brasileiro se conserva fiel a suas raízes. Uma análise dos dispositivos que regem a questão da imparcialidade dos juízes demonstra oscilação entre o método “inquisitorial” e o “adversarial”.

Assim, o art. 254 do CPP (1941) determina que o juiz deve dar-se por suspeito se tiver aconselhado qualquer das partes. Por outro lado, o artigo 35 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LC 35 (1979) determina que o juiz trate com urbanidade os membros do Ministério Público e atenda aos que o procurarem, a qualquer momento, quando se trate de providência que reclame a possibilidade de solução de urgência.

Na mesma linha, o art. 93, inciso IX, da Constituição Federal (1988 com redação dada pela EC 45, de 2004) determina que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão “públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”, mas permite que a lei limite a presença, em determinados atos, “às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.

O art. 8 do Código de Ética da Magistratura (2008) determina, de um lado, que o magistrado imparcial deve buscar as provas e a verdade do fato; de outro, determina que mantenha equidistância das partes. Em linha oposta, o art.3º da lei 12.850 (2013) determina que, em qualquer fase da persecução penal, será permitida a cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal.

Recentemente (maio de 2019), o STF reiterou jurisprudência no sentido de que “a exigência do art. 93IX, da Constituição impõe seja a decisão exaustivamente fundamentada. O que se busca é que o julgador indique de forma clara as razões de seu convencimento 21. Esse parece ser, portanto, o balizamento a ser seguido em meio regras de direito de base românica que tem sofrido alguma influência do Common Law, mas que permitem e até mesmo demandam que o magistrado se envolva no processo de investigação e obtenção de provas robustas para que possa julgar. Em resumo, vista pela lente do direito brasileiro atual, o impedimento de comunicações entre juízes e promotores públicos, assim como no direito estadunidense, não é absoluto e comporta exceções, devendo estas serem examinadas à luz dos fatos e atos desenvolvidos em cada caso, cabendo ao juiz deixar claro nos autos as razões de seu convencimento.

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1 Gerald E. Lynch, “Our Administrative System of Criminal Justice”, Fordham Law Review, Vol. 66, n. 6, Artigo 3, 1988, p. 2119, afirma que, no sistema jurídico anglo-americano, os juízes atuam como um árbitro passivo que resolve disputas entre partes, mas não busca ativamente selecionar ou controlar as questões ou conduzir o processo para atingir um processo preciso e justo.

2 R. C. Van Caenegem, The Birth of the English Common Law 63 (Cambridge University Press, 2nd ed., 1988) observou que a decisão de o Rei inglês conceder aos júris o poder de declarar o veredito constituiu uma inovação que permaneceria no Common Law particularmente em questões criminais.

3 Não se pode deixar de notar a conotação negativa do termo “inquisitorial” por ser o mesmo empregado para descrever os vergonhosos processos ocorridos na Espanha e em Portugal para perseguir judeus.

4 Lynch, supra nota 1, p. 2118.

5 Lynch, supra nota 1, p. 2117.

6 Lynch, supra nota 1, p. 2119.

7 Erica Goode, “Stronger Hand for Judges in the ‘Bazaar’ of Plea Deals”, The New York Times, 22 de março de 2012, afirma que 97% dos casos criminais estaduais terminam em colaboração premiada, com os réus admitindo culpa em troca de penas menores.

8 A França, que conta com juízes de instrução, é considerada o país epítome dessas funções investigativas do sistema “inquisitorial”.

9 Felicity Nagorcka, Michael Stanton and Michael Wilson, “Stranded between partisanship and the truth? A comparative analysis of legal ethics in the adversarial and inquisitorial systems of justice”, Melbourne University Law Review, 2005, Vol. 29, p. 455, chamaram atenção para o Artigo 353 do Código de Processo Penal francês que dispõe dever o juiz “buscar na sinceridade de sua consciência que impressão a prova deixou no seu raciocínio”.

10 Id, p. 456, observa que o a responsabilidade do juiz é buscar a verdade material.

11 Id., p. 457, com base no Art 51 do Código de Processo Penal francês.

12 Roberta K. Flowers, “An Unholy Alliance: The Ex Parte Relationship Between the Judge and the Prosecutor”, Nebraska Law Review, Vol. 79, N. 2, Artigo 3, 2000, p. 264.

13 Id., p. 265.

14 Id, p. 264.

15 Para quem provem do sistema romano, a referência a um processo criminal como sendo uma “controvérsia” causa igual espécie.

16 Flowers, supra nota 13, p. 277.

17 Id, p. 270, citando Bennett L. Gershman, The New Prosecutors, 53 U. Prrr. L. REv. 393 (1992)que identifica ainda outras exceções, entre as concessão de mandados de extradição (de um Estado americano para outro); intimação de testemunhas e requisição de documentos, bem como citando Stephen Lubet, Ex parte Communications: An Issue in Judicial Conduct, 74 JUDICATURE 96, 101 (1990) que inclui ainda julgamentos in absentia do réu

18 Discovery, nos países de Common Law, é procedimento que antecede o julgamento de uma ação pelo qual uma parte pode obter provas da outra por diversos meios, entre os quais interrogatórios, pedidos de apresentação de documentos e solicitações de testemunhos. Fed. R. Crim. P. 16(d)(1) permite que o juiz examine sozinho prova apresentada por uma das partes.

19 Flowers, supra nota 13, p. 279, baseando-se em United States v. Lee, 648 (9th Cir. 1981).

20 James J. Alfini et al, Judicial Conduct an Ethics 5-1 (4a. edição 2007), p. 179. No mesmo sentido, Leslie W. Abramson, Judicial Disqualification Under Canon 3C of the Code of Judicial Conduct 27, 29-30 (2a. edição, 1986).

21 Exceção de Suspeição Criminal 5021192-71.2018.4.04.7000),

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*Fernando Mello Barreto é embaixador (aposentado); Bacharel em Direito pela USP; Mestrado em Direito pela Columbia University; Doutorado em Direito pela University of Connecticut.

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