É primavera! Após um longo inverno de experimentações de abordagens técnicas, testes, validações de negócios e alguma retórica, a Inteligência Artificial (IA) aplicada à Justiça desceu do telhado. Para sermos justos, a aplicação em escala já existe há uns bons dois anos na advocacia privada, não só no Brasil, como no mundo.
Para as instituições públicas (Judiciário, Procuradorias e Ministérios Públicos), o tempo entre a concepção e a implementação tem sido mais lento. Ainda bem! A IA traz consigo receios e implicações de ordem ética, moral e jurídica que devem ser considerados antes de sua disseminação geral. Pela primeira vez na história, tecnologias, técnicas e artifícios permitem, em conjunto, a real substituição de atividades humanas de alta complexidade cognitiva. Portanto, é natural o temor de que agentes autônomos possam tomar decisões no lugar de assessores, magistrados, defensores, procuradores e promotores.
Essa preocupação também endereça eventuais temores quanto à legalidade dos atos judiciais derivados. Ainda que executadas por agentes humanos, recomendações ou sugestões de uma IA costumam ser questionadas pela alegação de não atendimento dos princípios constitucionais da publicidade ou transparência.
Aqui na Softplan, estabelecemos desde cedo que a IA deve atuar como um apoio às atividades dos especialistas na Justiça. Ou seja, ampliar a capacidade de análise dos tomadores de decisão; jamais os substituir. Precisávamos então desenvolver soluções que eliminassem ou minimizassem as limitações cognitivas humanas, sem comprometer, no entanto, a natureza discricional dos tomadores de decisão.
Para além das questões éticas, precisamos levar em consideração outros fatores além das técnicas computacionais. A cientista de dados Cathy O’Neil traz no livro Weapons of Math Descrutction inúmeros exemplos de como erros de design em soluções de IA muito bem-intencionadas podem enviesar recomendações, comprometendo o poder de análise dos tomadores de decisão.
Recentemente, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux externou essa mesma preocupação em um ensaio sobre Inteligência Artificial no Direito. Ele chama a atenção para os “vieses algorítmicos, que ocorrem quando as máquinas se comportam de modos que refletem os valores humanos implícitos envolvidos na programação, então, enviesando os resultados obtidos".
Um dos caminhos para entender esse fenômeno está na teoria da economia comportamental, proposta pelos professores Daniel Kahneman e Amos Tversky. Eles conseguiram estruturar o conhecimento sobre vieses cognitivos em forma de ciência. Com isso, conseguimos fazer um paralelo entre como nossa forma de pensar influencia os algoritmos capazes de processar e gerenciar grandes volumes de dados (por exemplo: todas as informações jurídicas contidas no acervo de processos digitais da Justiça brasileira).
Portanto, sabemos que o desenvolvimento de soluções de IA precisa reconhecer, contemplar e controlar esses vieses. A forma de fazer isso é envolvendo os especialistas de negócio; no caso, os magistrados, assessores, promotores, procuradores, técnicos judiciários, na concepção; validação e monitoramento dessas soluções. Os especialistas participam como curadores tanto dos inputs (garantindo a entrada de dados de treinamento sem viés e irrefutavelmente verdadeiros), quanto dos outputs (supervisionando, curando e avalizando os resultados).
Atualmente, existem inúmeros especialistas e interlocutores de altíssimo nível no judiciário. Profissionais como
O fim do longo inverno coincide com o lançamento da sexta geração tecnológica do Sistema de Automação da Justiça (SAJ 6), que tem justamente a Inteligência Artificial como uma de suas premissas. Por isso, a Softplan está alinhada com as diretrizes éticas e de governança formalizadas pela União Europeia para o desenvolvimento IA. Na primeira versão, lançada em abril de 2019, a supervisão, rastreabilidade e explicabilidade (oversight, traceability e explainability) são apontadas como os principais requisitos para uma solução confiável.
No SAJ 6, a Inteligência Artificial, muitas vezes combinada com recursos de automação (Robotic Process Automation), será ubíqua. Ou seja, não teremos um produto delimitado a desempenhar determinada tarefa. Na verdade, permeará os diversos módulos e soluções, automatizando tarefas e resolvendo problemas de pequeno e grande porte.
Importante conceituar aqui a IA como uma solução de matemática-computacional que pode ter diferentes níveis de complexidade. Alguns puristas fecham a cara para uma IA que não seja dotada de aprendizado de máquina. A IA a que me refiro neste artigo tem uma conceituação mais livre. No mínimo, precisa lidar com: elementos textuais presentes em linguagem natural não-estruturada, extraídos a partir de critérios objetivos de classificação por um conjunto de regras que, se não fosse a IA, o trabalho de extração e classificação teria que ser feito por um ser humano.
Um bom exemplo que ilustra a aplicação real dos conceitos e práticas elencadas até aqui é nossa aplicação de IA para proposição de vinculação de processos judiciais em andamento a temas de precedentes (repercussão geral e recursos repetitivos). Um piloto dessa solução foi apresentado no último mês por Thiago Facundo, diretor de Tecnologia da Informação do Tribunal de Justiça do Amazonas, no Expojud.
Essa solução está em testes aqui na Softplan desde 2018. Um ano depois, temos a segurança de que a nossa abordagem é capaz de gerar um resultado de alta precisão ao mesmo tempo em que atende aos preceitos de ser explicável, rastreável, permitir dupla curadoria e resolver um problema real dos tomadores de decisão.
Os alicerces da Inteligência Artificial no Direito se revelam sólidos e firmes neste final de inverno. Eles fundamentam a confiança e ansiedade das instituições da Justiça em adentrar uma longa e florida primavera, repleta de soluções que desabrochem e façam a diferença na vida das pessoas.
____________________
*Tiago Melo é analista de negócios na Softplan.